O mundo começa a ficar estranho. Ou melhor: o meu mundo. Há dias, num grupo de gente na casa dos 40 anos, falei de Pedro Moutinho, antigo locutor da rádio portuguesa, com importantes incursões na RTP. Ninguém, repito, ninguém tinha ouvido falar nele, nem remotamente.
Acho impressionante o modo como se processa o apagamento na memória coletiva de certas páginas da nossa vida contemporânea, com óbvio efeito no grau de informação, e formação, de gerações mais recentes. Imagino que deva ser uma questão de prioridades.
Pedro Moutinho foi uma figura muito conhecida da rádio e da televisão, até ao 25 de abril. Era um dos melhores locutores portugueses, estando a sua imagem como repórter consagrada no famoso relato do Porto-Sporting que integra o filme "O Leão da Estrela" (onde o Sporting ganha, diga-se de passagem...). Fora casado com outra famosa voz da rádio portuguesa, Maria Leonor, de quem entretanto se separara, num "anti-romance" muito falado, à época. Curiosamente, Maria Leonor fora colega da escola primária da minha mãe. Ao tempo, creio que o Pedro era já casado com uma senhora que trabalhava na embaixada britânica, sendo tido, aliás, como um homem sempre com grande sucesso junto do setor feminino.
Com a Revolução de abril, alguém terá um dia descoberto que o Pedro teria estado inscrito, por algum tempo, na Legião Portuguesa. Isso levou ao seu afastamento da Emissora Nacional e ao consequente desemprego.
Foi Carlos Eurico da Costa (que era oriundo de uma área política bem oposta), jornalista, escritor e publicitário, quem o acolheu na empresa que dirigia, a Ciesa-NCK. Foi aí que o conheci. Eu e o Pedro fomos, por alguns meses, a base do “Serviço de Leitura Seletiva”, um trabalho de "clipping" que organizava, por temas, notícias e comentários políticos e económicos, publicados nos imensos e variados jornais que o 25 de abril tinha feito emergir. O produto da nossa leitura e subsequente escolha era, depois, recortado, fotocopiado e entregue aos assinantes por estafetas ao final da manhã de cada dia útil.
Este serviço viria a ser complementado pela edição, por vários anos, da “Análise da Informação”, um trabalho semanal escrito, de natureza jornalística, de que também fiz parte como redator, desde o seu início, com o jornalista José Silva Pinto (fundador de "O Jornal") e Francisco Vale (que hoje dirige a "Relógio de Água"), por mais de quatro anos. Em ambos os casos, tratou-se de negócios que acabaram por ter bastante sucesso, junto de empresas e de embaixadas estrangeiras. Teve, aliás, um papel importante para a subsistência da empresa, num tempo em que a publicidade não vivia os seus melhores dias.
Este serviço viria a ser complementado pela edição, por vários anos, da “Análise da Informação”, um trabalho semanal escrito, de natureza jornalística, de que também fiz parte como redator, desde o seu início, com o jornalista José Silva Pinto (fundador de "O Jornal") e Francisco Vale (que hoje dirige a "Relógio de Água"), por mais de quatro anos. Em ambos os casos, tratou-se de negócios que acabaram por ter bastante sucesso, junto de empresas e de embaixadas estrangeiras. Teve, aliás, um papel importante para a subsistência da empresa, num tempo em que a publicidade não vivia os seus melhores dias.
À época, eu estava colocado no Estado Maior General das Forças Armadas, no palácio da Ajuda. Trabalhava de manhã na Ciesa-NCK, a poucas centenas de metros, onde entrava às oito da manhã, e, à tarde, "fazia a tropa" no EMGFA, de onde saía depois das sete da tarde. Para quem vivia em Santo António dos Cavaleiros e ainda passava um boa parte da noite em cafés, com amigos, era uma vida cansativa, mas muito divertida.
Eu também andava, por esses tempos, a fazer as várias provas do concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Recordo-me que, quando lhe referi isso, o Pedro me perguntou: "Você tem fortuna pessoal, meu caro?". A questão era estranha e apenas retórica: se tivesse, concerteza não viveria a acumular tarefas profissionais. Ao que logo acrescentou: "É que eu sempre ouvi dizer que, lá pelas Necessidades, pagam muito mal e só para lá entra quem tem bens próprios". De facto, como vim a verificar, e por muito tempo, terá sido um pouco assim.
Eu também andava, por esses tempos, a fazer as várias provas do concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Recordo-me que, quando lhe referi isso, o Pedro me perguntou: "Você tem fortuna pessoal, meu caro?". A questão era estranha e apenas retórica: se tivesse, concerteza não viveria a acumular tarefas profissionais. Ao que logo acrescentou: "É que eu sempre ouvi dizer que, lá pelas Necessidades, pagam muito mal e só para lá entra quem tem bens próprios". De facto, como vim a verificar, e por muito tempo, terá sido um pouco assim.
O Pedro Moutinho não tinha um feitio fácil, principalmente nessas primeiras horas do dia. Ia depois adocicando com a passagem do tempo, tornando-se um companheirão para o final da manhã, quando "despegávamos". Contava histórias magníficas, que tenho pena de não ter registado.
(Lembro-me apenas de uma. Um dia, foi chamado à PIDE porque, numa reportagem sobre a chegada à estação de Santa Apolónia do presidente da República, Américo Tomaz, vindo de Madrid, identificara o seu chefe da casa civil, general Humberto Pais, por... Humberto Delgado! Verdade seja que esta seria a sua única medalha de "anti-fascismo", ele que, com coerência, nunca renegou as suas convicções fortemente conservadoras.)
Numa daquelas matinais horas, em que estava com um feitio impossível, o Pedro perguntou-me:
- Diga-me lá, Francisco! Você acorda bem disposto, de manhã?
Disse-lhe que não, que, em regra, acordava "irritadiço" e me custava a "arrancar" o dia.
O Pedro não quis ouvir outra coisa e, com o seu magnífico e bem timbrado vozeirão, felicitou-me:
- É isso mesmo! Você é uma pessoa normal! Acordar, para si como para mim, é um ato de violência, uma coisa anti-natural. O que eu nunca compreendi são aqueles maduros que acordam bem dispostos, que cantam no banho e que começam o dia felizes. Imagine! Não passam de uns anormais!
E a nossa amizade e compreensão mútua aumentaram, a partir de então.
Pedro Moutinho morreu em 1999, com 80 anos anos. O "Google" quase não tem imagens suas. Apenas do seu homónimo fadista.