segunda-feira, maio 05, 2014

Pela hora da "troika"

Às vezes, percebemos que outros dizem melhor do que nós aquilo que pensamos. Um dos mais lúcidos observadores da vida portuguesa contemporânea, Viriato Soromenho Marques, sintetizou há dias no DN precisamente o que penso sobre a nossa situação económica e financeira, num artigo intitulado "Mais perdas do que ganhos". Aqui fica, com a devida vénia, como era uso dizer-se:

Depois destes três anos de voragem, todos temos a obrigação de estabelecer um balanço do "programa de ajustamento". Na minha leitura, os ganhos são frágeis e conjunturais, enquanto as perdas são estruturais, e algumas até irreparáveis. O equilíbrio das contas externas é a nota positiva, mas uma análise mais fina revela que ele só ocorreu devido a uma redução das importações, em virtude da contração da procura interna. Por outro lado, a redução da despesa pública, como na saúde e na educação, ultrapassou em muitos casos a linha vermelha da entropia de instituições e serviços. A redução do défice foi obtida através de uma austeridade mais baseada no aumento dos impostos do que em cortes inteligentes da despesa. Os falhanços estruturais são imensos. Desde logo uma dívida pública que não cessa de aumentar (e a redução da dívida foi o motivo deste programa!), e cuja gestão futura se assemelha a uma roleta russa. O aumento vertiginoso do desemprego e a explosão da emigração criam problemas sociais permanentes e alienam recursos humanos válidos e insubstituíveis por um período que só poderá ser de longa duração. A redução do PIB e o aumento da pobreza demorarão anos a ser compensados por taxas anémicas de crescimento. Uma trajetória que arrisca a deflação, aumenta ainda mais os custos do crédito e do investimento, que seriam indispensáveis para o aumento da competitividade. Como coroa do desaire, a gestão danosa dos ativos públicos, através de privatizações que lesam o interesse nacional, reduzem o Estado a uma entidade virtual, incapaz de se assumir como um criador de estratégias que compensem a total dependência em que o País se encontra de decisões alheias. E o facto de este cândido balanço não ser unânime revela que, mesmo no plano da ética pública, nenhuma lição parece ter sido aprendida.

"Las veladoras"

Faz parte do circuito turístico obrigatório de Havana uma passagem pela moradia onde viveu Ernest Hemingway. Embora o escritor, cujas simpatias progressistas eram conhecidas, não tivesse por ali permanecido muito tempo em pleno período castrista, a sua "Finca Vigia" (curiosamente, a residência do presidente do governo regional da Madeira também se chama "Quinta Vigia") surge subliminarmente inserida na geografia afetiva de que a Revolução cubana se reivindica. Note-se, de passagem, que quinta, casa e recheio foram nacionalizados depois da queda de Fulgêncio Baptista, como a muitas outras propriedades iria acontecer em Cuba.

Há anos, durante uma visita que o meu colega embaixador português em Havana tinha preparado para nós à "Finca Vigia", estava incluído um "tour" pelo interior da casa que, não sendo muito grande, tem a curiosidade de manter alguma "memorabilia" do escritor, em especial alguns milhares dos seus livros, coisa que me divertiria observar, porque por aí ficaria a ter uma ideia daquilo que interessava a quem tão magnificamente escrevia.

Chegados à propriedade, nos arredores da capital, deparou-se-nos um inesperado problema. No dédalo burocrático que o sistema cubano ainda mantinha (e desconfio que manterá), dentre a documentação que o meu colega apresentou à responsável, faltava uma autorização de uma qualquer entidade da área cultural. Sem essa assinatura ou esse carimbo, estava definitivamente comprometida a possibilidade de entrada.

Simpática, a senhora fez algumas diligências telefónicas, desfez-se em desculpas, mas ordens eram ordens. Aliás, esclareceu, talvez para suavizar a nossa desilusão, que as autorizações para visitas ao interior eram muito raras, contando-se não mais do que uma dezena por ano. Mostrou-nos, a propósito, um livro de honra onde figurava a assinatura de uma "muy importante personalidad" que tinha, meses antes, tido esse privilégio. Tratava-se no embaixador da Macedónia junto das Nações Unidas, curiosamente um colega que eu conhecia bem.

Bom, se não era possível a visita, far-se-ia uma volta a pé à moradia, olhando-se o seu interior através das portas envidraçadas e das janelas, a maioria das quais estavam abertas. Não sendo a mesma coisa, ficava-se com uma perspetiva generosa da casa. A nossa guia foi-nos acompanhando, com grande amabilidade, apontando as diversas áreas da habitação e chamando a atenção para alguns pormenores da decoração e equipamento.

À medida que a visita prosseguia, fui-me apercebendo de que, no interior da casa, se movimentavam três outras senhoras, que nos sorriam e se iam afastando, como para não perturbar a nossa visão. De camiseta branca e saia travada muito curta (uma "moda" que eu já tinha visto reproduzida noutros mundos do "socialismo real", mesmo se, como era o caso, estava algo inadequada ao perfil físico das senhoras), não pareciam desempenhar um trabalho muito evidente.

Não sem alguma disfarçada ironia, mas com real curiosidade, perguntei o que faziam aquelas pessoas. A resposta foi pronta: "Son las veladoras", respondeu-me a nossa guia. Inquiri o que eram as "veladoras" e foi-me explicado que a sua função era acompanhar as visitas ao interior da casa, pela qual "velavam", servindo simultaneamente de guias. "Mas não me disse que, no ano passado, apenas houve meia dúzia de visitas autorizadas ao interior da casa". Sim, claro, foi-me confirmado. "Então, nesse caso, o que é que elas fazem?" Pelo olhar do meu colega embaixador e da sua mulher dei-me conta que talvez tivesse excedido a minha quota razoável de curiosidade inquisitiva. A minha interlocutora, contudo, não se descompôs e logo respondeu: "Lo que hacen? Pues allí están para acompañar a los visitantes. Quando los hay, por supuesto!"

Nestes tempos em que dizemos um "até jà" à "troika", cujas sábias políticas nos trouxeram uma taxa de desemprego que vai ficar nos anais da nossa História e no sacrifício forçado de muitas e muitas famîlias, pergunto-me se o "benchmark" cubano de políticas ativas de combate ao desemprego não deveria inspirá-los.

(Roubei a foto a Ana Marques Lopes, do FaceBook)

domingo, maio 04, 2014

O Mondrões e as flores

Dizem-me que hoje é dia da Mãe. Nunca percebi por que luas deixou de ser a 8 de dezembro, como aprendi em criança. Nessa Vila Real da minha infância, duas ruas disputavam então o título das mais bonitas passadeiras de flores da cidade, que os vizinhos faziam pela Páscoa: a rua Avelino Patena e a rua Alexandre Herculano. Tenho a "glória" única de ter nascido na primeira e ter vivido na segunda. As restantes ruas da cidade, onde também se faziam passadeiras, nunca estiveram à altura de competir com aquelas duas artérias. Com os anos, as passadeiras deixaram de se fazer. E é pena.

Os desenhos da rua Alexandre Herculano (na imagem) eram da autoria do senhor Lima, proprietário do Café Imperial. Com fama de comunista, sempre mal encarado e desagradável para os seus clientes, o homem só enchia o seu café na noite de Consoada, onde tradicionalmente se alojavam os "hereges" que insistiam em tomar uma bica profissional ou os viciados, a caminho da missa do Galo. Os seus desenhos das passadeiras eram, contudo, dificilmente batíveis (neste caso pelo desenho do senhor Claro, que orientava a rua Avelino Patena).

Para a composição das passadeiras, ia-se na semana anterior pelos montes, em busca de flores. Integrei essa operação algumas vezes. "Briefadas" pelo senhor Lima, um grupo de senhoras avançava de carro para zonas rurais tidas como podendo proporcionar as cores das pétalas desejadas pelo "designer". Eram levadas pelo Mondrões, um motorista reformado que morava lá na rua e cuja contribuição para o empreendimento era conduzir um grande automóvel emprestado à organização. O Mondrões era de poucas falas, resmungão, pouco aberto a aceitar comentários sobre o modo como dirigia. Contavam as senhoras, durante as noites em que no "Ninho" (uma instituição de educação de crianças, também da rua), se fazia a separação das flores, que a condução do Mondrões proporcionava momentos de grande emoção, fruto do estado de quase permanente embriaguês em que o homem andava. Mas a história foi-lhe justa: não há nota de qualquer acidente ocorrido.

É ainda sobre o Mondrões que corria na minha rua um episódio célebre. Um dia, na tasca do Morrinha, também lá pela rua, ao Mondrões foi dado a provar um vinho branco cuja pipa acabara de chegar do produtor. Pedia-se a sua abalizada opinião. O homem, porém, tinha acabado de emborcar uma dose idêntica de vinho tinto, pelo que o seu estómago terá tido um ligeiro incómodo. É então que o Mondrões, mirando o ventre proeminente, tem um "diálogo" com os dois vinhos: "Ou vos aguentais os dois aí dentro, ou vamos os três para o chão!"

sábado, maio 03, 2014

Veiga Simão

Em 1972, ao tempo em que era presidente da Assembleia Geral da Associação de Estudantes do ISCSPU (isso mesmo, com um "U"), tendo sido recentemente reeleito para o mesmo cargo, recebi um ofício do Ministério da Educação Nacional, que era dirigido a mim, na qualidade de presidente cessante, no qual se referia que, por despacho ministerial, toda a lista associativa eleita tinha sido "homologada" (a "homologação" era obrigatória antes da entrada em funções), com a exceção dos nomes de Fausto Bordalo Gomes Dias (esse mesmo, o Fausto, cantautor) e... de mim próprio. Estávamos na "primavera" marcelista. Três anos antes, em início de 1969, uma outra lista associativa, de que eu também fazia parte, fora "não homologada", sendo ministro Hermano Saraiva. Desta vez, o ministro era Veiga Simão, que hoje morreu.

As voltas da vida são muito curiosas. Fui embaixador junto da ONU, lugar que Veiga Simão viria a ocupar. Fui embaixador no Brasil, lugar que Hermano Saraiva também ocupou. Os dois ministros da Educação que não "homologaram" duas das eleições democráticas em que eu fora eleito viriam a ser sucedidos por mim naqueles postos.

Em 1997, Veiga Simão foi convidado por António Guterres para ministro da Defesa. Lembro-me que, para mim e para outros colegas de governo, alguns dos quais também antigos dirigentes académicos, a nomeação de Veiga Simão constituiu uma surpresa e "não caiu" muito bem. Mas, vistas as coisas com serenidade, não havia razão para tal. Veiga Simão já havia sido ministro da Indústria de Mário Soares, fora deputado pelo PS, tinha ocupado postos importantes na administração pública democrática e a sua elevada qualificação técnica era consensual. Além disso, o seu comportamento político depois do 25 de abril revelou que, tal como algumas outras figuras da administração caetanista, tinha aderido com indiscutível sinceridade às ideias democráticas. Daí a poder ser visto por alguns de nós como "one of us" ia, contudo, alguma distância.

Em substituição de Jaime Gama, acompanhei Veiga Simão a duas reuniões ministeriais da defunta UEO (União da Europa Ocidental), uma vez a Roma, outra a Bremmen. As delegações eram compostas pelos responsáveis dos Negócios estrangeiros e da Defesa de cada país, devendo tomar a palavra um após o outro. Sendo ministro, Veiga Simão chefiava naturalmente a delegação portuguesa. Porém, como logo se verificou desde o início da reunião de Roma, os responsáveis governamentais dos Negócios estrangeiros tomavam a palavra antes dos da Defesa. Deixei que fosse Veiga Simão a ter a perceção de que, não obstante eu ser secretário de Estado e o "número dois" da delegação, cabia-me falar antes dele. Sem entusiasmo mas com garbo, vergou-se à regra que estava a ser seguida à volta da mesa e disse-me para avançar. Assim fiz. No final, recordo-me da estranheza, não isenta de algum prazer, com que terminei a minha intervenção: "e agora, cedo a palavra ao meu colega Veiga Simão, ministro da Defesa do meu país". Como iam longe os tempos da minha "não homologação"! 

Um dia perguntei a alguém que conhecia bem o percurso político de Veiga Simão o que é que verdadeiramente impressionava na personagem. A sua grande inteligência, a abertura à modernidade e o seu entusiasmo, foi a resposta que retive. Julgo que um forte sentido de serviço público seria de acrescentar, com justiça, àquela descrição.  

sexta-feira, maio 02, 2014

Maria Barroso

Faz hoje 89 anos uma senhora por quem tenho, de há muito, um grande respeito: Maria de Jesus Barroso. É uma das figuras públicas portuguesas que, ao longo de todos estes anos, nunca me desiludiu. Combatente contra a ditadura, mulher coragem em tempos pessoais e políticos muito difíceis, mostrou-se sempre, ao lado de Mário Soares, com uma dignidade de que o país se deve orgulhar, consagrando-se como uma personalidade com uma dimensão cultural e cívica que é muito rara entre nós. Escrevo isto com o à-vontade de quem está longe de ser um seu íntimo ou mesmo próximo. Mas não posso esconder a admiração que sinto pela sua coerência e a sua verticalidade.

Parabéns, doutora Maria de Jesus!

O meu tacho

Já estava à espera, confesso! Fui convidado pelo engº José Bento dos Santos para integrar um grupo de trabalho, que não implica qualquer custo para o Estado e que não terá a mais leve remuneração, para desenhar uma proposta com vista à promoção da gastronomia portuguesa no estrangeiro. Conhecendo eu "do que a casa gasta", já aguardava as ironias do costume. E, também devo confessar, estava até curioso em fazer "saltar a tampa".

Pois é! Com mais dez comparsas ("confraria governamental dos bons garfos", diz um blogue finaço, afiando o título), vou tentar ajudar a dar expressão internacional a uma das riquezas culturais do nosso país.

Por comentários neste blogue, fica claro que esta minha "cedência" é já considerada por alguns como um sinistro conluio com a maioria que nos (des)governa. Felizmente, o ridículo não mata e, neste caso, também não engorda...

Ana Sousa Dias

Por onde anda Ana Sousa Dias? Que é feito de uma das mais cultas e capazes jornalistas televisivas, que no seu programa "Por Outro Lado" fez um fascinante inventário falado do país, com algumas magníficas conversas, que valeria a pena estarem disponíveis em video, como testemunho vivo de uma geração portuguesa? 

Ao final da noite de ontem, na RTP Memória, assisti a um interessante diálogo com Jorge Sampaio, em 2004, com uma serena condução de conversa que constitui a prova provada de que a inteligência, quando posta ao serviço da informação e da cultura, se substitui com larga vantagem à agressividade inquisitiva e à busca pispineta da polémica e da graçola fácil.

Repito: por onde anda Ana Sousa Dias?

quinta-feira, maio 01, 2014

Paris, hoje

Há muitos anos, estando em Paris numa manhã do primeiro dia de maio, estou certo que não perderia o espetáculo que sempre é a manifestação sindical e popular que, da Nation até à Bastille, congrega o descontentamento, sob "pancartes" cheias de apelos aos "landemains qui chantent". A capital francesa foi em tempos a inesquecível "Meca" dessa revolta que atravessou uma parte da geração a que pertenci, que nos fazia vir de Lisboa por aqui em busca de emoções e de livros proibidos, que mobilizava a nossa curiosidade nos comícios da Mutualité, que nos levava a ir visitar a obra que Niemeyer desenhou na place Colonel Fabien, para sede dessa estrela ultracadente que hoje é o PCF. Nesse tempo a que o 25 de abril pôs termo, cruzávamos por aqui as nossas esperanças com quantos tinha decidido não ir à guerra, entre uma "demi" e um café avaliávamos as hipóteses de sobrevivência do regime luso, comprávamos o "Le Monde" como substituto da liberdade de informação de que não dispúnhamos "lá em baixo". 

Nesta manhã chuvosa deste primeiro dia de maio, numa esplanada junto à Pont d'Alma, perto da "chama" dourada que revoadas de estrangeiros equivocados continuam a pensar que tem alguma coisa a ver com o túnel que passa por debaixo, onde a princesa Diana perdeu a vida, na existência sempre em férias que grande parte da realeza e adjacências teima em levar, dou comigo a pensar que o mundo mudou muito. Embora a revolta popular continue, não obstante a "manif" ter agora, com o desemprego crescente, razões maiores para gritar palavras de ordem contra a ordem, a Europa mudou e a França terá até mudado mesmo muito mais do que ela. Anteontem, o governo socialista francês conseguiu ver aprovado no parlamento um plano "de rigueur", uma expressão detestada no vocabulário político deste país, mesmo pela direita. Um primeiro-ministro que tem um mês de exercício de poder ousou obrigar o seu partido a colar-se à evidência dos factos e anunciou, qual Dylan, que "the times they are a-changing", originando com isso uma defecção de cerca de quatro dezenas dos seus colegas, que leem de outra forma o resultado das recentes eleições municipais e já se prepararam para cavalgar politicamente a "abada" histórica que o sufrágio europeu deste maio por aqui vai ser o inferno para o governo Hollande. 

Medidas as distâncias, quase que pode dizer, ironicamente, que, em Portugal, as coisas correm em sentido inverso, com a esquerda a aproximar-se inexoravelmente do poder. "Interesting times", apetece-me dizer, embora ("cruzes"!) longe do significado da maldição chinesa que crismou a famosa expressão.

quarta-feira, abril 30, 2014

O "número"

As negociações sobre os fundos europeus acabam sempre naquilo que se convencionou designar como o "envelope nacional", isto é, o montante que, no final do dia, vai corresponder a cada país, a "fatia" do orçamento que cada Estado pode reivindicar como "ganho" na batalha diplomática que, todos os sete anos, tem lugar no seio da União. O "número" final é um dado essencial para se convencer a opinião pública de que se "ganhou a guerra": é comparado aos valores obtidos noutros orçamentos plurianuais anteriores, segundo especiosos critérios que cada governo adota para se vangloriar da qualidade da sua negociação, procurando os melhores argumentos para contrariar as prováveis críticas das oposições. Tanto se pode medir o "envelope" com os anteriores, em termos absolutos, como, quando dá jeito, se pode usar como medida os impactos que essas ajudas terão sobre o PIB. E, sem exceção, nas derradeiras semanas, deixam-se cair para a comunicação social "terríveis" expetativas para, no final, "derrotá-las" com fragor, numa luzida vitória virtual... A Comissão e a presidência de turno, que fecha a negociação, estão quase sempre dispostas a ajudar os Estados a "maquilhar" os menos bons resultados, com a atribuição de ajudas "laterais" que dificultam a contabilidade dos analistas, bem como pela introdução de "facilidades" casuísticas que magnificam alguns números. O essencial é que cada Estado possa regressar "a casa" com uma "vitória"! Um bom exemplo desta criativa coreografia foi a negociação há um ano levada a cabo pelo atual governo português, cuja "jonglerie" argumentativa, somada a uma descuidada leitura da oposição, disfarçou um resultado que não passou de sofrível.

Um dia, contarei por aqui a minha versão daquilo que foi a negociação das "perspetivas financeiras", para o período entre 2000 e 2006, na qual tive algumas responsabilidades, quando no governo. Hoje, vou um pouco mais atrás para referir um episódio que ocorreu durante a fixação do chamado "pacote Delors II", o segundo quadro financeiro de que Portugal beneficiou. Foi-me contado há pouco, por uma testemunha presencial, num jantar em Paris.

As negociações iam longas, nessa última noite de Bruxelas. O dia fora complicado, os tais "envelopes" nacionais subiam ou desciam, na boataria dos corredores, de acordo com a capacidade negocial dos Estados e com a evolução da boa vontade da Comissão, cujo poder era, à época, decisivo. A certo passo, foi decidido fazer uma pausa nas negociações, "para consultas". As delegações desceram a escada em caracol do edifício do Berlaymont (onde na altura funcionava o Conselho de ministros e hoje tem sede a Comissão), recolhendo às respetivas "salas". A expetativa mantinha-se grande. O "número" do "envelope" português mantinha ainda várias versões, umas mais simpáticas que outras. De repente, entrou na nossa sala (é sempre mais do que uma sala mas diz-se "a sala") um funcionário português, um técnico geralmente muito bem informado. A indicação que trazia suspendeu todas as conversas: "Os espanhóis já têm um "número". É "x" ". A ser verdadeira, era muito importante essa referência, porque isso nos ajudava a medir melhor o que estavam a preparar para nós como proposta. Alguém, mais cético, inquiriu como é que o funcionário tinha sabido. A resposta ficou nos anais: "Foi um contínuo que andava pela sala espanhola a servir cafés que ouviu o "número". É português..."

terça-feira, abril 29, 2014

Blogómetro

Nunca percebi bem o que valem estas estatísticas, mas para alguma coisa devem servir. Há dias, chamaram a minha atenção para a posição do "Duas ou três coisas" no "Blogómetro", que mede a leitura dos blogues portugueses.

Passei por lá ontem. E que vi eu? Este "pobre" blogue pessoal a ser mais consultado que "vedetas" da blogosfera tais como "5 dias", "Corta-fitas", "Estado Sentido", "Mesa Marcada", "Abrupto", "Aspirina B", "De Rerum Natura", "Portugal dos Pequeninos", "Da Literatura" e coisas assim. Mas, claro, bem abaixo desses "papas" que continuam a ser "Blasfémias", "Aventar", "31 da Armada", "Jugular" e "Delito de Opinião".

Esta coisa da leitura do que escrevemos vale tanto como os "spreads": varia com os humores dos mercados. Mas lá que sabe bem ter a certeza de que não estamos a falar "p'ró boneco", lá isso sabe! Por isso, e uma vez mais, muito obrigado a quem nos procura.

As praxes das jotas

Leio que o CDS, motivado pelo escandaloso caso ocorrido em Braga, estaria disponível para agravar o enquadramento legislativo das "praxes", indo agora bastante mais longe do que aquilo que, com o PSD, acordara há meses, depois do sórdido episódio do Meco.

Porém, a bancada laranja, que tão pressurosa se mostrou na submissão a referendo (!) da questão da co-adoção, parece recuar agora em colocar um travão mais nos desmandos dessa canalha que se delicia, numa vingança travestida de "acolhimento" dos novos alunos, em atos de humilhação e rebaixamento, em muitos casos sob o olhar, no mínimo complacente, das autoridades académicas.

Por que é que isto acontece, por que razão a maioria se divide neste tema? Ora, ora! Porque há duas ou três eleições à vista, porque as "jotas" (e o CDS, na matéria, ainda vai nos tempos do "táxi") temem perder votos nesse mercado estudantil, cada vez mais embrulhado de luto. E os socialistas, por onde andam neste tema? Firmes na condenação dessas práticas, ecoando aquilo que a Europa avançada já determinou a propósito dessa encapada reacionarice? Pois isso! 

Seria interessante, de facto, ver o nosso parlamento tomar uma posição, frontal e clara, que, de uma vez por todos, pusesse com dono as famigeradas "praxes". Talvez sugerindo que, em sua substituição, os estudantes aproveitassem o tempo para estudar. E, de passagem, que proibissem a obscena "sponsorização" das "queimas das fitas" pelas empresas de bebidas alcoólicas, que atulham os serviços de urgência hospitalares de comas alcoólicos. Há um défice de coragem e um superávite de interesses.

Geografias



A tentação de afirmar que tudo mudou com o 25 de abril é muito forte no que toca à política externa. Da ditadura obsoleta, politicamente isolada, sustentáculo de uma presença colonial perdida historicamente no tempo, emergiu, de um dia para o outro, uma súbita esperança democrática e de libertação, feita de alegria florida nas ruas. Uma esperança em que, contudo, alguns no mundo não deixaram de vislumbrar certos riscos.

O facto de não ter surgido, na convulsão política pós-Revolução, uma séria proposta no sentido de Portugal abandonar a NATO revelou a consciência subliminar de que o país tinha condicionantes geopolíticas a que não podia escapar. A geografia prevaleceu, mas também mudou: umas vezes mudou ela própria e nós com ela, outras vezes fomos sujeitos involuntários dessa mudança.

Mudou no plano físico, com o fim das fronteiras e com os acessos a tornarem-nos menos periféricos, num choque de modernidade que foi uma fantástica revolução silenciosa. Mudou fortemente no plano político, com a integração europeia a determinar um quadro de responsabilidades que nos veio a tornar parceiros de um projeto mais vasto, eticamente sustentado, com uma coerência que incorporámos na nossa própria matriz de afirmação. Mudou com a recuperação da plena normalidade com a nossa vizinhança imediata, com a descoberta de uma vocação mediterrânica que levou à fixação de um interessante laço com um mundo islâmico, que passou a ver em nós um interlocutor atento. E mudou também com muitos outros mundos, de que o fim da ditadura e do colonialismo nos aproximou.

Uma nova geografia "de afetos" conduziu ao gradual estabelecimento de um quadro institucional prioritário com Estados que falam a nossa língua e com os quais tentamos reconduzir-nos a uma cooperação equitativa, depois daquilo que foi uma longa e traumática relação colonial. E alterou também o nosso posicionamento no quadro multilateral, onde nos foram abertas oportunidades para o exercício de cargos e para a execução de acções internacionais relevantes, tal como "exportar segurança", com intervençoes de mérito em operações de paz, através das nossas Forças Armadas.

Numa dimensão mais humana, a partir do 25 de abril, foi possível estabelecer um modelo de enquadramento democrático da nossa diáspora, garantindo-lhe um papel na vida política interna e procurando torná-la um actor da nossa dimensão externa. E, mais tarde, convertemo-nos em receptores de imigrantes, sendo hoje reconhecido positivamente o modo como acolhemos as "muitas e desvairadas gentes" que nos enchem as ruas de diversidade.

Fomos pelo mundo, mas nunca saímos do Atlântico, porque ele é a constante que nos sobredetermina. Muito para além do ridículo seguidismo das Lages, em 2003, ele continua a ser um quadro estruturante para a preservação dos nossos interesses estratégicos. Sem abandonar o investimento no projeto europeu em que nos empenhámos, sem descurar a CPLP e várias outras dimensões, temos todo o interesse, enquanto país, em saber recolocar-nos no centro da nova relação transatlântica que se desenha. Isso será feito quando voltarmos a ter uma política externa, à altura das nossas múltiplas geografias  depois do patético interlúdio de silêncio internacional que estamos a atravessar. Não tardará muito.


(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

O sorriso do Álvaro

São tantos os mortos! Passam os dias e não passa quase um dia sem que não sejamos surpreendidos pela morte de alguém que conhecemos. Um amigo dizia-me que, num mesmo dia, fora a três missas celebrando a morte (ou a passagem do sétimo dia da morte) de alguém. Isto está a ficar pela hora da morte, podia dizer-se, se tivesse graça.

Ontem, olhava as notícias da desaparição de Vasco Graça Moura quando uma cara risonha, na fotografia de um jornal, chamou a minha atenção. Era um homem de riso aberto, franco, por detrás do qual pressenti as gargalhadas que esse mesmo sorriso sempre coroava. Era o Álvaro Garcia de Zúñiga. Tinha sido enterrado nessa tarde.

Conhecemo-nos em São Paulo, há já uns bons anos. Era uruguaio, mas o mundo era a sua terra de adoção. Com a Teresa, com o registo mais sereno da Teresa, o Álvaro fazia um par curioso, ele mais histriónico e agitado, de quem busca sempre o mundo, como se ele sempre lhe fugisse. Ela num rodopio de projetos, sempre a caminho de. Encontrámo-nos depois por aí, em alguns sítios do acaso, quase sempre sem nunca termos combinado nada. A última vez, lembro-me, foi em Paris, onde ele e a Teresa nos convidaram para um debate, creio que num convento próximo da Gare du Nord.

O Álvaro era encenador, escritor, músico. Era um homem cheio de ideias, culto, criativo. Com o seu eterno sorriso e o seu português pedido de empréstimo, ele para quem as línguas eram um instrumento de cuja mistura fazia nascer as coisas, transmitia sempre uma boa onda, com a Teresa a seu lado, no seu sorriso giocôndico, procuradamente sereno. Agora, a terra fugiu debaixo dos pés à Teresa, como alguém dela me dizia, há poucas horas. Onde? Num velório, claro!

O nosso abraço sentido, Teresa.

segunda-feira, abril 28, 2014

"Primeiro de maio vermelho"


                     Foto de uma parede na praça da Alegria, em Lisboa (27.4.14)

Hoje, vistas as coisas à distância, tudo nos parece ridículo, mas, há 40 anos, a ameaça feita pelo MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) de fazer um "1º de maio vermelho", com alguma possível violência à mistura, assustou o Movimento das Forças Armadas (MFA). Alvo crescente da repressão policial, o MRPP fora já responsável, nos meses antes de Abril, por algumas ações de rua, dedicadas à luta contra a guerra colonial, com confrontos relativamente fortes.

O anúncio dessa movimentação no Dia do Trabalhador havia sido feito ainda antes do 25 de Abril, mas todos estávamos conscientes que os "eme-erres" haviam interpretado o golpe militar como um mero rearranjo de "forças da burguesia", sem qualquer impacto nos "interesses profundos das classes trabalhadoras". E o facto de insistirem em organizar uma forte movimentação no dia 1 de Maio, não obstante ter entretanto ocorrido o movimento democrático do 25 de Abril, não sossegava alguns militares.

Não cabe aqui, por ora, fazer o historial do MRPP, um grupo criado em 1970 e com uma génese diferente da dos restantes movimentos que, em Portugal, se reclamavam do maoísmo. Muito ativo no meio académico, com particular expressão em Lisboa, dispunha de uma simpatia clara em sectores da imprensa, bem como em algumas estruturas sindicais de serviços. Conhecido por um grafismo colorido, que se espalhava por folhetos, jornais clandestinos e por muitas paredes, o MRPP era, visivelmente, a principal força política que não saudara a Revolução.

A circunstância de ter o Partido Comunista Português como um alvo prioritário da sua ação, antes e após o 25 de abril, levaria algumas forças bem mais conservadoras a ver o MRPP com alguma simpatia tática, que ficou bem patente nos primeiros anos da Revolução de abril. A posterior evolução política de alguns antigos membros do MRPP viria a provar que essa aliança tinha também algo de potencialmente estratégico. 

Mas voltemos ao 1º de Maio de 1974. O ambiente de confiança que o 25 de abril criara no país poderia ser afetado, na perspetiva de alguns dos militares por ele responsáveis, se acaso o MRPP viesse a promover algumas ações violentas. A confiança pública na Revolução e a própria estabilidade que o país pretendia projetar externamente poderiam ficar em causa se viessem a ocorrer incidentes graves. Que fazer, então? Talvez  seja difícil de acreditar nos dias de hoje - depois do que efetivamente se passou em Portugal, no dia 1º de maio de 1974 - mas uma ideia inicial, que chegou a ser pensada em meios militares, foi tentar encontrar uma maneira de evitar que os portugueses saíssem de casa nesse dia... 

Com o objetivo de tentar discutir a utilização da RTP com esse objetivo, um determinado setor do MFA convocou uma reunião para a Escola Prática de Administração Militar (EPAM), no dia 27 de Abril. Nela reuniu um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" chefiado pelo capitão Teófilo Bento, que interinamente chefiava a televisão, com António Reis e eu próprio a acolitá-lo. Pela sala espalhavam-se figuras como Luís de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luis Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que cerca de duas dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística (ficarei muito grato a quem puder ajudar a completar esta lista).

O debate foi longo, as propostas choveram sobre o modo como a televisão podia vir a ser utilizada para "trabalhar" os primeiros tempos da Revolução. Porém, a ideia de a tornar um instrumento para evitar a saída às ruas no 1º de maio foi, ao que me lembro, rapidamente abandonada. Era, de facto, uma mera questão de bom senso...

Para a história, convém apenas notar: o MRPP lá comemorou, a partir do Rossio, o seu "1º de maio vermelho". Com muitos slogans e sem violência. E o 1º de maio de 1974 acabou, para todo o Portugal, por ser uma coisa bem diferente, como todos recordam.

(Adaptação de um post publicado neste blogue em 27 de abril de 2010)

domingo, abril 27, 2014

Vasco Graça Moura (1942-2014)

Vasco Graça Moura, que hoje desaparece, foi uma figura maior da cultura portuguesa, um brilhante obreiro da nossa língua, uma personalidade que nunca fugiu ao confronto das ideias - ele que as tinha fortes e bem estruturadas. Havia em Graça Moura uma curiosa dualidade, que ele sustentava, parecia-me, com algum prazer. Por um lado, o poeta, o tradutor, o ensaísta e o romancista (esta é a minha ordem pessoal desses seus méritos criadores), o espírito com laivos de genialidade de um intelectual sensível, possuidor de uma cultura quase renascentista, do melhor que Portugal produziu nas últimas décadas. Mas, no outro lado do espelho, havia o actor cívico (escrevo "actor" com "c", em homenagem ao opositor do Acordo Ortográfico que VGM foi), comprometido, usuário brilhante de uma escrita polémica, onde ressoava um quase caceteirismo cívico, muito ao gosto novecentista. Se VGM era um príncipe da escrita e na cultura, era também, num assumido contraste, um ferrabraz na política, embora, falado pessoalmente, estivesse sempre muito distante da ferocidade adjectivada dos seus artigos. O homem que esteve com Sá Carneiro e dele se afastou (e que dele se mantinha bem crítico) era, contudo, o mais improvável turiferário de uma figura como Cavaco Silva, depois de ter arrastado a asa a esse ridículo projeto de moralismo político que deu pelo nome de PRD. Ora se  havia coisa que, de VGM, ressaltava à distância esse era o seu desprezo profundo pela mediocridade, pela pusilanimidade, pelo oportunismo, pelo Portugal mesquinho dos que não conseguem deixar de ser bem "pequeninos". Como é que, dentro de si, ele compatibilizava os olhares, críticos ou complacentes, sobre tudo isto? Talvez nunca o venhamos a saber. Embora tivesse falado muitas vezes com VGM, estava muito longe de o conhecer bem. Muita coisa nos separava politicamente e outras opções, noutros domínios, não contribuíam para nos aproximar, pelo que sempre tivemos uma relação pessoal marcada apenas por uma educada cordialidade. Mas tinha por ele um grande respeito e uma forte consideração intelectual. Há semanas, dei aqui conta de um seu excelente ensaio "A identidade cultural europeia". Esta minha última homenagem a VGM é uma sugestão para que o leiam, porque nele está o essencial da sua visão para Portugal e para esta aventura continental a que o destino nos impele. Porque Vasco Graça Moura era, essencialmente, um patriota português e isso não se improvisa: sente-se e sofre-se.

Carta a um amigo

Pois é, meu caro, não estamos de acordo. E nem o facto de ambos termos andado de cravo ao peito na sexta-feira passada, sob o sol dessa bela festa que foi a comemoração dos 40 anos de abril, nos coloca necessariamente lado-a-lado, acabado que foi esse dia 25.

Percebo a tua revolta, entendo que já não possas mais ver "essa gente", concordo em que eles foram bem mais longe do que a decência democrática deveria permitir, que já deveria ter havido, há muito, eleições legislativas para retificar a legitimidade política que já se pressentiu que perderam. Estou contigo em considerar que este governo foi uma das mais nefastas ocorrências da nossa vida desde o 25 de abril, por todas as razões que ambos bem sabemos e que o povo português continua a pagar na pele. Concedo, com facilidade, que quem tem competência constitucional  para tal, já há muito deveria ter tomado a decisão de "pôr fim a isto", de uma vez por todas.

Mas, vais-me desculpar, "eles" - e quem os sustenta por "lá" - estão no poder porque o povo português assim o quis. E a isso chama-se democracia. Eu sei que vais arguir que isso é "democracia formal", mas esse é também sinónimo de democracia. Mas "eles" também "lá" estão porque tu e os teus amigos - o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda, assim, com todas as letras, para que fique bem sublinhado o que vocês procuram fazer esquecer - votaram, bem ao lado da direita, para derrubar o governo socialista. É verdade, meu caro, tu e Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã, estiveram de mão dada com Passos Coelho e com Paulo Portas para afastar José Sócrates. Não gostavam dele? Claro que estavam no pleníssimo direito democrático de derrubar o seu governo. Mas agora, desculpa lá!, gostam mais "destes"? É que convém que o povo português nunca esqueça o que se passou em 2011: foi o voto da "esquerda da esquerda", de que tu fazes parte, quem abriu as portas a esta direita que está no poder. Foi o voto dessa "esquerda da esquerda", ávida pela possibilidade de vir a ter uns deputados mais em S. Bento (não se sabe bem para que efeito útil), que estendeu uma passadeira vermelha (ironicamente, "vermelha") a quem se propunha ir (e foi!) "além da troika". Estão satisfeitos?

Nas últimas semanas, vi-te entusiasmado a ecoar algumas proclamações ameaçadoras de derrube da ordem constitucional, da necessidade de um "outro caminho", para "pôr com dono" este governo, que tem trazido a divisão e a maior incomodidade de sempre à política portuguesa em democracia. Vi-te ao lado dos que pensam que "eles" têm de sair, "a bem ou a mal". Nestas comemorações de abril, por entre cravos, vozes iradas e corações quentes, vislumbrei-te em aplausos aos apelos à revolta, a um "novo 25 de abril".

Tem juízo, pá! Esta ordem constitucional, com todos os muitos defeitos que tem (e que ela própria tem forma de corrigir), foi aquela que resultou da luta pela qual eu e muitos outros arriscámos a nossa liberdade no dia 25 de abril de 1974. Por causa dela, há agora um papelinhos brancos, nos quais podes colocar uma cruz no sítio certo (ia dizer "no sítio seguro", mas temi outras interpretações), que deves dobrar em quatro e meter numa caixa, nuns determinados dias. O primeiro é dentro de cerca de um mês, o segundo, infelizmente, deve ter de esperar mais uns tempos. Queres um conselho: vota bem! Vota em quem tenha uma possibilidade real de mudar a vida aos portugueses, não em quantos apenas servirão para aumentar os decibéis do protesto, mas não irão ter o menor papel na decisão dos caminhos do futuro. És livre, claro, de votar em quem quer fazer sair Portugal do euro e até da União Europeia, o que somaria mais empobrecimento àquele que os portugueses já têm - e que só defendem esta insensatez pela confortável certeza de que nunca ascenderão ao poder para a poder executar.

Até lá, podes e deves, se assim o entenderes, continuar ir para a rua clamar o teu desagrado, ser solidário com quem sofre as políticas oficiais, fazer as greves que bem entenderes, expressar-te livremente como quiseres, em tudo quanto for sítio possível. Mas hoje a Revolução, meu caro, já não está na ponta de uma G3, está no boletim de voto. Ou, como se dizia em 1975, "o voto é a arma do povo". O resto é nostalgia serôdia e falta de espírito democrático. Sei que não deverás ter gostado muito de ler esta carta, mas escrevi-a no usufruto das minhas "mais amplas liberdades", para utilizar uma expressão que talvez seja cara à tua memória de abril. 

Recebe um abraço, apesar de tudo, solidário. E viva o 25 de abril, sempre!

sábado, abril 26, 2014

Um tempo preciosista

Placa ontem inaugurada na antiga EPAM

A questão tinha surgido ainda antes do 25 de abril. Em reuniões de milicianos ocorridas em vários locais de Lisboa, alguns de nós, politicamente mais radicais, alimentávamos dúvidas sobre se o "movimento dos capitães", que então se desenhava e sentíamos cada vez mais próximo da ação, comportava os "mínimos" ideológicos que então considerávamos indispensáveis: uma orientação socializante e, muito em especial, uma atitude inequívoca face ao fim da guerra colonial.

A implicação de alguns de nós no golpe foi, assim, condicionada e até, em alguns casos, reticente. Temíamos estar a dar aso e colaboração a uma qualquer "quartelada", com um resultado político duvidoso, que acabasse por se afastar das nossas ideias.

Na noite do 25 de abril, a intervenção de Spínola na televisão não nos sossegou, talvez antes pelo contrário. A mim, a leitura do programa do Movimento das Forças Armadas deixou-me algo alarmado. É que as ambiguidades sobre o processo político subsequente, sobre a questão colonial e mesmo sobre a PIDE/DGS eram mais do que muitas. Mal imaginávamos nós - mas devíamos ter imaginado, claro! - que esse texto fora produto de laboriosos compromissos e que era o denominador comum possível.

Lembro-me que, logo no dia 26, quando o novo comandante da unidade, coronel Marcelino Marques, se apresentou aos oficiais, eu tomei a palavra, em nome de um grupo de milicianos, para inquirir sobre o verdadeiro sentido da expressão, contida no programa do MFA, onde se falava de uma "política ultramarina conducente à paz", muito longe da disposição para encetar negociações com os movimentos emancipalistas africanos, que reputávamos essencial.

Esse terá sido o primeiro de vários momentos de alguma conflitualidade que eu haveria de titular, durante o tempo que se iria seguir, descontente com o caráter "recuado" da prática política do MFA. Poucas semanas após o golpe militar, no discurso que proferi, durante o juramento de bandeira dos cadetes, fiz uma forte crítica ao comportamento do MFA perante uma greve na TAP, numa implícita denúncia da recente detenção de dois colegas. Alguns jornais ressaltaram essa minha voz dissidente. Por virtude dessa tomada de posição, fui chamado ao Estado-Maior do Exército, onde me foi sugerida uma mudança de unidade, porque a minha continuidade na EPAM começava a tornar-se incómoda. Essa saída acabaria por acontecer, uns dias depois, quando me dissociei de uma punição dada a um soldado-cadete, já não sei bem porquê. Por isso, lá para o fim de maio ou início de junho de 1974, acabei por ser "empurrado" para a Comissão de extinção da ex-PIDE/DGS e LP. Só ontem, dia 25 de abril de 2014, regressei à EPAM.

Hoje, olhando para trás, confesso que não posso deixar de sorrir. Ou melhor, de rir um pouco de mim mesmo nesse tempo. 

sexta-feira, abril 25, 2014

As figuras de abril

Nunca se apreciaram excessivamente entre si, mas Melo Antunes e Mário Soares são, sem a menor dúvida, as duas personalidades que, para mim, melhor representam a liberdade que o 25 de abril nos trouxe.

O herói


Quando abrimos a porta, o "Ramos" dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O "Ramos" era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o "Ramos" montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do "Ramos", que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o "Ramos" relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao "Ramos".

Chegado o grande momento, o "Ramos" afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O "Ramos", com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizemos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao "Ramos", fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo "Ramos", sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O "Ramos" só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o "Ramos" virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o "Ramos", claro.

O comandante (historieta que dedico ao António)

António Alves Martins

As ordens, nessa manhã de há precisamente 40 anos, tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.

Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.

- Ora bolas! E agora, o que é que fazemos? - voltando-se para o António Alves Martins e para mim, que o acompanhávamos na parada.

Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.

Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.

- Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós - disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.

Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.

- Você está doido, então eu ia lá prender o homem!. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.

O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.

- O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. Não era o "Ramos" que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?.

Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.

- Ó meu comandante, é que houve uma revolução…, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.

O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:

- Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!.

O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.

É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:

- Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!.

O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois meros aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.

Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:

- Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?.

O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:

- Coronel? Então já não sou comandante?.

A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:

- Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?.

Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.

- Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?! - lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.

Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:

- O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices.

Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto!, o que disse estava dito. O António sorria, deliciado. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:

- Então eu estou preso, é isso?, disse, num tom muito menos arrogante.

- Mais ou menos. Vamos andando, então - cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.

Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado. E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.

Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.

A cabine


A cabine no dia 25.4.14

Estava-se nas primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974. Todo o pessoal que dormia no quartel tinha sido acordado e mandado formar no escuro da parada. De megafone na mão, o capitão que liderava a revolta, anunciou que a unidade ia integrar um movimento militar que tinha como finalidade “acabar com a ditadura”, competindo-lhe atacar um determinado objectivo. 

Os soldados, quase todos ensonados, alguns ainda a despistar a hipótese de se tratar de um mero exercício, ouviram em silêncio as palavras do capitão: quem quisesse alinhar que fosse buscar a sua arma, os restantes podiam voltar para a cama. 

Mas já ninguém conseguiria dormir. Ouviram-se alguns comentários e apartes mais entusiastas, de milicianos com tarimba das lutas do associativismo universitário, alguns dos quais já previamente contactados, para o que viria a ser uma das primeiras operações militares que o Movimento das Forças Armadas iria efectuar nessa madrugada.

O pessoal foi mandado destroçar e, em pequenos grupos, regressou, cochichando, às camaratas, em busca da arma ou do travesseiro para a vigília. 

Foi então que um soldado, discretamente, se aproximou da cabina telefónica que existia num canto da parada. Abriu a porta e, nessa altura, alguém, mais atento, atirou-lhe um berro: 

- Eh! pá, o que é que vais fazer?.

O rapaz olhou, meio apalermado, largou a porta da cabina já entreaberta e disse, com toda a candura, que só queria avisar a família, não fossem ficar em cuidados quando ouvissem as notícias. 

- Nem as penses! Pira-te daí!, ouviu logo. 

Desapareceu de imediato, rumo à camarata. Alguém entrou na cabina e arrancou o fio do telefone. 

Como se faria hoje uma revolução, na era dos telemóveis?

quinta-feira, abril 24, 2014

Retratos do 24 de abril (4)


Miguel Portas

Há dois anos, a 24 de abril de 2012, desapareceu Miguel Portas. Conhecia-o pela leitura do que ele escrevia, por alguns programas de televisão e por correspondência por email que trocámos, vai para dez anos. Um dia, quis falar comigo pessoalmente sobre a Europa (como já referi aqui). Queria conhecer a minha perspetiva sobre o papel efetivo que Portugal poderia desempenhar nesse contexto.

Tivémos um longo e agradável almoço, rodeados por muitos olhos do MNE que prescrutavam, no espaço da "Tasca da Armada", ali em Alcântara, nesse tempo de "chumbo" de 2003, a conversa entre um embaixador então muito pouco ortodoxo e um conhecido deputado do Bloco de Esquerda. Depois, a vida de cada um trocou-nos as voltas. Nunca mais nos voltámos a encontrar, embora trocássemos breves mensagens.

Miguel Portas deixou natural saudade em quantos o conheceram bem, mas igualmente em outros que, como eu, apenas apreciávamos, à distância, a sua figura de homem livre, nada sectário, ansioso da vida que, por um azar, lhe iria fugir breve.

Nesta data, deixo o nosso abraço sentido à Helena e ao Paulo.

Retratos do 24 de abril (3)


O regresso das praxes?

A tragédia ontem ocorrida em Braga, envolvendo vários estudantes, que resultou em três mortos e diversos feridos, decorreu final de atos de praxes ditas académicas. 

Depois do Meco e de tantos outros incidentes que levaram à morte, à incapacitação e a repetidas violências e humilhações sobre estudantes, só a cobardia das autoridades, públicas e universitárias, justifica que se deixe prolongar este medievalismo. Por aqui, ainda continuamos no 24 de abril.

EPAM

Amanhã, dia 25 de abril, pelas 11.30, terá lugar a cerimónia de afixação de uma lápide no edifício da antiga Escola Prática de Administração Militar, na avenida das Linhas de Torres, 179, ao Lumiar, onde hoje funciona o Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC). 

Trata-se de assinalar, nestes 40 anos do 25 de abril, aquela que foi a primeira unidade militar a sair para a rua nessa data, sob a chefia do capitão (hoje coronel) Teófilo Bento, que também vai estar na ocasião. É uma pena que figuras importantes nessa movimentação da EPAM, como Manuel Geraldes ou António Reis, ausentes no estrangeiro, não possam estar conosco. Foi a sua determinação e a sua liderança, nomeadamente na condução da operação de tomada das instalações da RTP, nessa madrugada, que contribuiu para o sucesso da operação.

Serão muito bem vindos nesta celebração todos quantos andaram pela EPAM e pelas subsequentes "guerras" na RTP, depois dessa data. Quatro décadas passadas, seria uma alegria reencontrá-los.

O meu dia 24 de abril

O meu dia começou cedo. Ido de Santo António de Cavaleiros, onde vivia desde que casara, poucos meses antes, entrei de carro na Escola Prática de Administração Militar (EPAM) onde, às 9 horas iniciei a primeira aula de "Acção Psicológica" aos ensonados soldados-cadete. Às 11 horas, recolhi à biblioteca que orientava (além de "oficial de Ação Psicológica" da unidade, era coordenador do próprio curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade, bibliotecário e também diretor do jornal da unidade, "O Intendente"). Foi aí que fui procurado pelo António Reis.

Um parêntesis para explicar que o António Reis, hoje um consagrado historiador e professor universitário, era o contacto privilegiado dos milicianos da unidade com os oficiais do quadro, para o conjunto de movimentações político-militares que, desde há meses, acompanhávamos. Conhecia o António dos tempos da luta da oposição democrática, onde ele tinha tido um papel destacado, nomeadamente como candidato oposicionista por Santarém. Para surpresa de muitos de nós, em especial para meu grande espanto, António Reis surgira, meses antes, integrado na especialidade de Ação Psicológica, que eu orientava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (que, nessa altura, já era designada por DGS), tinha algumas lacunas e só semanas mais tarde, já muito próximo da data da Revolução, mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde iria ser Atirador de Infantaria. Esta determinação tinha sido por nós sonegada ao comando da unidade, através de cumplicidades burocráticas internas, pelo que não viria a ter qualquer efeito prático até ao 25 de abril. O António pôde, assim, assumir o importante papel que desempenhou nesse dia.

Regressemos à biblioteca. Com um ar conspirativo, nesse final de manhã, o António pediu-me para reunir alguns oficiais milicianos já previamente "apalavrados". Juntámo-nos na sala e ele informou que o golpe militar estava previsto para essa noite. Ficámos tensos, confrontados com a gravidade da informação recebida. Só mais tarde iríamos saber o que de cada um de nós se esperava. Aos pedidos de detalhes que colocámos, nomeadamente no tocante à dimensão da ação militar (o fracasso da tentativa de golpe de 16 de março ainda estava muito "fresco"), o António adiantou explicações naturalmente vagas.

Depois, só me recordo da tarde, já após a saída da unidade. Encontrei-me com António Franco, hoje embaixador aposentado, que tinha feito a especialidade de Ação Psicológica comigo, mas que fora requisitado pelo MNE. Tomámos um café no snack-bar "2000", ao Campo Pequeno, e revelei-lhe a iminência do golpe. Não havia nenhuma razão especial par eu cometer essa indiscrição, mas esse gesto (que hoje posso ver como algo irresponsável) foi espontâneo, face a um amigo em que eu confiava em absoluto.

Dei a informação também ao meu pai, que estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, o meu pai alimentava uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares derrubarem o regime que ele sempre detestara. Recordo-me o comentário depreciativo que ele fez sobre "a tropa", à saída do hotel "Suíço Atlântico", onde fomos juntar-nos com um tio meu, então deputado do regime... Acabámos todos a jantar em casa de outros familiares, nos Olivais. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um grande amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par dessa forte possibilidade, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.

Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. Pretextei algo para regressar a casa. À saída da exposição, ao deparar com o Bentley que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse para a minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho hoja me disse vier a acontecer, a partir de amanhã o Américo Tomaz não volta a entrar neste carro". E mais não adiantou. O dia 24 de abril de 1974 estava a terminar. 

Falando de acordos

Ontem, na CNN Portugal, a propósito dos instrumentos jurídicos que, seguramente, estariam a ser preparados para a deslocação - afinal, ainda...