terça-feira, julho 06, 2021

Maria José Nogueira Pinto


A vida é feita de coisas improváveis. Mesmo de amigos improváveis. Sou amigo, vai para meio século, de Jaime Nogueira Pinto. Conhecemo-nos no serviço militar, onde as nossas profundas divergências políticas não só nunca conduziram a homéricas discussões como nos levaram mesmo a construir um insólito patamar de constante diálogo, sempre assente no respeito, no humor e no sabermos rir-nos de nós mesmos. Alguns de quantos nos julgam conhecer nunca perceberam isto, mas nós, sem nunca combinarmos nada, concordamos em não ter de dar satisfações de seita a ninguém.

Foi através do Jaime que conheci a Maria José. Longe iam os anos em que ambos tinham andado pelo exílio, fugidos àquilo que, por cá, eu defendia. Fomo-nos conhecendo melhor, fomo-nos vendo por Lisboa e pelos locais onde a vida me ia levando. Com a habilidade amável de quem se esforça por compreender o outro, acabou por ser com facilidade que gizámos, com a Maria José e com o Jaime, um terreno de sólido entendimento, feito de alguns importantes valores partilhados, que tínhamos por essenciais para a construção daquilo que viria a ser uma bela amizade.

Um dia, chegados a Lisboa, a caminho de um jantar em que eles também deveriam ter estado, a Maria José e o Jaime quiseram falar connosco. Soubémos então das notícias da saúde da Maria José. A partir daí, nos tempos complexos que se sucederam, tudo seguiu um percurso de que, publicamente, algo é conhecido.

Passam hoje dez anos desde que a Maria José desapareceu e, no final de um dia de despedidas e homenagens, a fomos deixar num cemitério do Oeste. Às vezes, o tempo da morte é injusto para as vidas que terminam. Não terá sido esse o caso. A morte da Maria José foi um momento que convocou uma rara comoção, muito para além de algumas barreiras. A dignidade com que ela soube aproximar-se do fim anunciado, na serenidade com que escolheu olhar de frente o destino, marcou, para sempre, a sua imagem, mesmo para quantos a não conheciam.

Neste dia, deixou um forte abraço ao Jaime, aos filhos e a toda a família, especialmente à Maria João.

Andorra e os humores de Sarkozy


Há histórias que só o tempo permite que sejam contadas. Esta é uma delas.

Um dia, ao tempo em que era embaixador em Paris, pediu para me fazer a tradicional visita de cortesia o recém-chegado embaixador de Andorra. Era uma pessoa que já tinha conhecido noutras circunstâncias, pelo que tinha um especial gosto em revê-lo.

Andorra é um dos mais pequenos Estados europeus, encravado entre a Espanha e a França. Há por lá, desde há muitos anos, uma importante comunidade portuguesa. Isso chegou a levar Portugal a abrir um dia uma efémera embaixada na sua capital, Andorra-a-Velha.

Devo começar por confessar que tenho um “fraco” por Andorra. Sempre achei admirável a sabedoria de resistência daquele pequeno Estado, na difícil equação que deve ser a sua relação com os dois poderosos vizinhos.

Esta afetividade vem de longe. Para algumas pessoas da minha geração, a Rádio Andorra foi uma estação que marcou o imaginário, nos anos 60 do século passado. Com uma seleção musical magnífica, nos seus programas em francês e espanhol, a Rádio Andorra, desaparecida em 1981, chegou a ser um marco no panorama radiofónico europeu. A frase "Aqui, Radio Andorra!" é uma das memórias fortes que conservo das madrugadas da minha juventude. Na primeira vez que fui a Andorra, fiz questão de visitar os seus estúdios. Mas, para minha grande desilusão, já não encontrei por lá Maria de los Angeles, a voz maviosa que apresentava os programas que enchiam as minhas noites de Vila Real.

Mas voltemos a Paris e ao colega andorrenho que me visitava. Notei-o um tanto abalado e pouco otimista, nesse início de funções. E, como me revelou, tinha razões para isso.

Dois ou três dias antes, quando apresentava a suas cartas credenciais a Nicolas Sarkozy, este tinha parado em frente a ele e, de uma forma brusca e nada elegante, sob o olhar de todos os outros novos embaixadores, disse-lhe: “Eu não aceito as cartas credenciais de um embaixador de Andorra!” A sala terá gelado. E Sarkozy, antes de consumar o ato de recusa, explicou: “Essas cartas credenciais vêm assinadas por mim. Não as recebo! Não tem sentido!” E passou à frente, deixando o embaixador andorrenho com as cartas na mão e numa situação muito delicada.

Por que razão Nicolas Sarkozy tomara essa atitude? 

Andorra é um país que tem, como chefes de Estado, na qualidade de “co-príncipes”, o presidente francês e o bispo da cidade espanhola de Urgel. É uma decorrência da História, que não cabe aqui desenvolver.

As cartas credenciais são missivas formais que o chefe de Estado de um país remete ao seu homólogo do Estado que vai receber o embaixador, indicando ser essa a pessoa que aí o vai representar. Os embaixadores, se bem que escolhidos pelos governos, são, formalmente, representantes dos titulares máximos dos Estados.

Acontece que o presidente francês acaba por ser chefe de dois Estados. (A rainha britânica também é chefe de Estado de vários países da Comunidade Britânica). E esse “co-príncipe” de Andorra, que não tem poder executivo e só é uma figura formal, deve co-dirigir as cartas credenciais dos enviados andorrenhos a todos os chefes dos Estados onde o governo soberano do país deseje acreditar os seus embaixadores. Como é o caso do chefe de Estado francês. Por acaso, ele próprio! 

Ao colocar em causa, como o fez, a legitimidade do embaixador andorrenho, Sarkozy, com a sua aparente “birra”, estava a questionar a própria existência de uma embaixada de Andorra em Paris - aliás uma das poucas que este país tem no exterior. No fundo, com esse seu gesto, Sarkozy contestava a existência de uma soberania que ocupa um lugar de membro pleno da ONU e que tem um estatuto especial nas suas relações com a União Europeia, embora dela não seja membro - como o não são pequenos Estados como Mónaco, São Marino ou a Santa Sé.

O meu colega ficara bastante abalado com a cena, e tinha razões para isso. O facto dela se ter passado diante de vários colegas tornara-a mais penosa. Como se tinha resolvido o assunto? Depois de uma parlamentação discreta com funcionários do Eliseu, acabou por entregar as cartas credenciais ao serviço do protocolo, assim se sanando o incidente, “fazendo de conta” de que nada se tinha passado e dando as cartas por recebidas.

Dei-lhe, naturalmente, a minha solidariedade e comunguei do comentário de que o comportamento de Sarkozy fora, no mínimo, de grande indelicadeza, independentemente da questão política de fundo. 

Mas fiquei sempre a pensar no assunto. Sabia-se que Sarkozy frequentemente “se passava”, com explosões de fúria, mas, sendo ele um jurista e tendo-o pessoalmente visto atuar em diversas ocasiões, não me parecia pessoa para ter uma leviandade desta dimensão em questões de Estado. A França não é uma “república de bananas”!

Meses mais tarde, relembrei o incidente, durante um almoço, a alguém da estrutura diplomática do Eliseu. A história, como constatei, era amplamente conhecida. E foi-me então dito que o presidente francês fizera aquele “número” deliberadamente, para mostrar a sua irritação com algumas reticências que o executivo andorrenho estaria à época a colocar na resolução da questão dos “paraísos fiscais”, um tema que então mobilizava bastante a França e que levara a uma tensão idêntica com Mónaco. Segundo me foi explicado, a cena que tinha apanhado o meu amigo e colega de Andorra seria, afinal, um “recado” às autoridades do seu país. Seria?

Falar da América


Na série “Atlantic Talks”, “podcasts” editados pela FLAD e dirigidos pelo jornalista Filipe Santos Costa, falamos sobre o tempo de Biden na política americana e a relevância desta nova presidência para os aliados e adversários da América, além de outros temas.

Pode ouvir aqui.

segunda-feira, julho 05, 2021

Déjà vu


Foi num hotel de Tashkent, capital do Usebequistão. A minha passagem por ali, em 2004, como embaixador português junto da OSCE, em Viena, coincidiu com o cocktail de despedida do representante da organização no país. Havia sido convidado para a festa. O ambiente estava divertido, com muitas garrafas a abrirem-se e uma barulheira que se pressentia ir prolongar esse fim de tarde pela noite.

Eu, contudo, não estava disponível para ficar por ali muito tempo. Sentia-me bastante cansado, depois de uma longa jornada. Por aqueles dias, seguindo uma prudente regra que me tinha sido aconselhada em Viena, antes da minha partida para aquelas paragens, para evitar surpresas com as comidas locais, beberricava um pouco de vodka, algumas vezes ao dia, a começar no pequeno almoço! O meu fígado teria ainda de aguentar uns dias mais esse regime, até porque a “receita” estava a funcionar. Companheiros meus de viagem, menos crentes nas virtudes profiláticas da vodka, tinham tido já problemas. Eu evitara-os por completo. Tinha, assim, um alibi íntimo para ir experimentando vodkas, bebida de que gosto muito. Pura, gelada, sem misturas.

Ainda antes de “sair à francesa” da festa, e até para poder comer alguma coisa que me parecesse menos perigosa, fui em busca de um balcão onde servissem uma vodka. Aí chegado, tive o embaraço da escolha. Havia três ou quatro marcas, todas locais, e eu não conhecia nenhuma. (Informo que há magníficas vodkas na Ásia Central!)

Ao meu lado, um cavalheiro, grande e com ar eslavo, apontou para uma das garrafas, para que o empregado o servisse. Perguntei-lhe, em inglês, se aquele era o melhor vodka, ele confirmou e assim iniciámos uma curta conversa. Era russo, empresário, já vivia por ali há décadas, podia imaginar que então com funções menos privadas, desde os tempos em que o Usebequistão fazia parte da União Soviética.

O país mantinha uma boa relação com Moscovo, embora as facilidades militares concedidas aos americanos, para apoio à ação no Afeganistão depois do 11 de setembro, tivessem provocado algumas reticências por parte da Rússia. Mas esse fora o preço pago pela ditadura local para tentar diluir a pressão internacional que se projetava sobre o seu sinistro regime.

O russo com quem eu falava, porém, não comentou nada disso. E o que eu pretendia perceber dele era algo mais simples: como é que a comunidade russa no Usebequistão vivia aquele novo tempo, que tipo de relação mantinha com a sociedade local, depois da mudança ocorrida com a independência do país. E perguntei-lhe pelo seu caso pessoal: como se sentia agora por ali, que expetativas tinha quanto ao seu próprio futuro.

O homem falou-me com o que me pareceu ser uma grande abertura dos novos equilíbrios que a independência induzira. E, a certa altura, disse qualquer coisa como isto: “Nós não sabemos bem como é que isto vai evoluir, não é muito claro se o país vai estabilizar, há várias tensões que ameaçam o regime. Eu vou tentando fazer os meus negócios, mas estou a preparar o meu regresso à Rússia. Já mandei a minha família para lá e eu próprio, mais cedo ou mais tarde, acabarei por juntar-me a ela”.

Ao ouvir aquilo tive, subitamente, um lampejo de “déjà vu”. Onde é que eu ouvira, tantas e tantas vezes, aquele tipo de discurso? 

Não foi preciso fazer um grande esforço para recordar onde: na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique. Era a narrativa típica dos portugueses que tinham feito as transições do tempo colonial para as independências, que sentiam que o vento estava a mudar, mas que se iam deixando ficar, a “ver onde paravam as modas”. O discurso de quem transitava do “tempo do colono”, como se diz na África portuguesa, para as novas e frágeis independências, era, afinal, muito parecido, naquele imenso  espaço que resultara da implosão do mundo soviético.

domingo, julho 04, 2021

Cardoso Pires


Acaba de ser publicada uma biografia de José Cardoso Pires, escrita por Bruno Vieira Amaral. Não a tinha conseguido comprar em Lisboa e no Porto. Estava esgotada onde a procurei (bom sinal!). Foi preciso chegar a Vila Real para a poder adquirir. E ter tempo para a ler.

Estou a abordar o livro como gosto de ler as biografias: iniciando a leitura pelo tempo em que conheci a pessoa e, depois, saltitando de capítulo em capítulo, sem outro critério que não seja o da curiosidade. Comecei pelo período de Londres, depois avancei pelos dias do Almanaque, passei à sua relação com Paris, através do índice onomástico. E assim vou. Tenho este vício há muito, que se há-de fazer?

O livro está muito bem escrito, com uma leveza que curiosamente lhe realça a substância, às vezes ligando extratos de textos do autor com testemunhos, não fugindo a questões aqui ou ali mais sensíveis do seu percurso. Esta obra abre-me também o apetite para reler o que já li de Cardoso Pires e, talvez, ir à procura de outras coisas. É muito bom ler trabalhos tão bem elaborados e rigorosos, como este de Bruno Vieira Amaral, cuja boa escrita tenho acompanhado noutros locais.

Conheci pessoalmente Cardoso Pires no início dos anos 70, em noites em casa de Carlos Eurico da Costa e de Maria Lúcia Lepecki. Foi com ele que me iniciei no gin do British Bar, no Cais do Sodré, ao tempo em que, com outras pessoas, criámos a Associação de Amizade Portugal-Polónia, nos idos revolucionários de 75. Depois, nos anos 80 e 90, voltámos a cruzar-nos bastante na Mesa Dois do Procópio, sob a amiga tutela do seu amigo Nuno Brederode Santos. Mas, nem de perto nem de longe, fui seu íntimo, nem sequer posso dizer que fui seu amigo. Sempre fui, isso sim!, um grande admirador da sua escrita e tinha um grande fascínio pelo seu modo de estar na vida, na política e na noite.

No Procópio, naquele tertúlia solta que o Nuno alimentava, tivémos algumas boas conversas diluídas em whisky, sobre tudo e sobre nada, como era a regra do lugar. Mas recordo, pelo pitoresco, uma noite em que, a certa altura, achei dever arbitrar uma divergência que se estava a afirmar entre José Cardoso Pires e a minha mulher, que expressavam opiniões muito opostas sobre uma determinada figura pública. Ela defendia-a intransigentemente, o José Cardoso Pires lançava “cobras e lagartos” sobre a figura. Comecei a achar estranha aquela teimosia dele, tanto mais que se tratava de uma personalidade bastante consensual. A certa altura, foi ele quem caiu em si: “Espere aí! Há aqui uma confusão! A pessoa de quem não gosto não tem esse nome, tem um nome parecido”. E lá esclareceu de quem se tratava e era um seu ódio de estimação (por acaso, era um amigo meu). Foi mais uma risota em que aquela saudosa mesa era então pródiga!

A leitura deste excelente livro de Bruno Vieira Amaral está a ajudar-me a completar o retrato humano de José Cardoso Pires.

sábado, julho 03, 2021

Apolo 70


Ainda há poucas semanas, a comunicação social saudou a existência do Apolo 70, o segundo mais antigo “drugstore” (dizia-se assim, à época) de Lisboa. (O primeiro foi o “Sol a Sol”, entre a Avenida da Liberdade e a Rua Rodrigues Sampaio).

Hoje, ficou a saber-se que o Apolo 70 terá sido fechado, por decisão judicial.

O espaço já há muito que não era o que foi. Muitas lojas estavam fechadas e a graça de outros tempos - com o cinema e o restaurante de balcão redondo - tinha desaparecido. A livraria tinha tido dias bem mais áureos, mas ainda merecia uma visita, pela sua atenção à História e aos assuntos africanos. E havia ainda bastante vida por ali. E, o que é mais importante, empregos, sustento de muitas famílias.

Desde a sua abertura, fui sempre um visitante regular do Apolo 70. Por lá se situa o meu barbeiro, o Pinto’s Cabeleireiros, que frequento desde os anos 80 do século passado, dirigido pelo meu querido amigo Joaquim Pinto, a quem, neste momento complexo, deixo um abraço de ânimo. E de esperança!

Vizeu Pinheiro


Paulo Vizeu Pinheiro tem um currículo profissional que especialmente o recomenda para o lugar que agora vai ocupar. É uma excelente escolha!

Remodelar

A oposição pede uma remodelação. Portanto, gostaria que o governo a que se opõe fosse “melhorado”, mas, sempre e só, à exclusiva luz dos seus critérios. No limite, de remodelação em remodelação “a pedido”, o governo ficaria tal e qual a oposição gostaria que ele fosse. Pode então conluir-se que, nessas condições, dispensaria ir para o poder, já que estaria por lá quem ela “pediu”? Será isso?

sexta-feira, julho 02, 2021

Vinhos “out of area”


Isto de ir almoçar ao Chaxoila, em Vila Real, e, em lugar de um excelente Douro, ser convidado a provar um (também excelente) tinto libanês é um verdadeiro sacrilégio. Mas eu acho graça a sacrilégios, que se há-de fazer?

Uma história da lusofonia


O jantar estava a ter lugar num local histórico muito famoso, nos arredores de Paris. Tratava-se da reunião dos mecenas, franceses e portugueses, de um evento cultural português, cuja inauguração teria lugar dentro de dias. Eu por ali estava, como representante oficial de Portugal em França.

Creio que não seríamos mais de 12 pessoas (13 não éramos, com certeza!). A conversa corria animada, em francês, cruzando a mesa. A certo passo, já perto do final do repasto, o principal mecenas francês, um milionário que morreu há poucos meses, disse algo que me pareceu bastante interessante.

Voltei-me então para um dos convidados portugueses, um empresário vindo expressamente de Lisboa para a ocasião, que me parecia um pouco alheado da conversa, e disse-lhe: “É muito curioso o que este senhor referiu, não acha?”.

O meu interlocutor, com um largo sorriso, respondeu: “Tem de me explicar o que ele disse. É que eu não falo uma palavra de francês. Aliãs, não consegui perceber quase nada do que foi dito durante o jantar!” Por um azar protocolar, nenhuma das pessoas ao seu lado falava português ou inglês, as únicas línguas que o homem dominava.

A vida social tem destas coisas. Hoje, sei lá bem porquê, veio-o à memória este episódio.

quinta-feira, julho 01, 2021

Pandemia

As pessoas estão “cansadas” com as restrições da pandemia? 

Imagino que sim, todos estamos, isto tem sido uma imensa “seca”. 

Contudo, a pergunta essencial que todos devemos fazer é bastante simples: as pessoas estão cansadas de viver? 

Se não estão, então cumpram as regras.

“A Arte da Guerra”


Nesta edição de “A Arte da Guerra”, António Freitas de Sousa e eu falamos sobre os resultados das eleições regionais em França, o crescente isolamento da Hungria dentro da União Europeia e os impactos do indulto concedido pelo governo espanhol na vida política interna do país.

O programa pode ser visto aqui.

Nas próximas duas semanas, o programa fica suspenso para férias.

Diana


Se fosse viva, a princesa Diana faria hoje 60 anos. 

Numa noite de 1991, em Buckingham Palace, na cerimónia anual em que a corte recebe o corpo diplomático, Diana parou junto da delegação portuguesa, na breve conversa circunstancial que a família real tinha com a representação de cada embaixada.

Notando que o cônsul-geral, Duarte Ramalho Ortigão, tinha, ao pescoço, o símbolo da Cruz de Cristo (a única condecoração portuguesa que, embora nos graus inferiores que, à época, eram os nossos, assim pode ser usada), Diana, atrevida, sopesando com a mão a insígnia do Duarte, inquiriu junto do embaixador António Vaz Pereira, que chefiava o nosso grupo: "Ambassador, you don't have it?". Vaz Pereira, que tinha ao peito outras condecorações bem importantes, respondeu, diplomático, com um largo e deliciado sorriso: "I'm working for it, Your Highness!" Diana deu uma bela gargalhada.

Fiquei “furioso”: eu tinha a mesma condecoração que o Duarte e Diana ignorou-me…

A imagem que guardamos de Diana é a da sua juventude. Como seria hoje?

quarta-feira, junho 30, 2021

O lugar da “salvação nacional”


Está a acabar o dia. Está a terminar aquela que foi, sem a menor sombra de dúvidas, a mais complexa das quatro presidências que Portugal teve de dirigir na União Europeia. Estive envolvido, como diplomata no estrangeiro, em duas delas (1992 e 2007) e, como responsável governamental pelos Assuntos Europeus, na de 2000. É com base nesse diferenciado envolvimento, cumulado com o acompanhamento à distância que fiz do trabalho neste ano de 2020, que confirmo o que atrás disse.

António Costa, Augusto Santos Silva, Ana Paula Zacarias, Rui Vinhas, Nuno Brito e Pedro Lourtie, à frente das equipas de Lisboa e de Bruxelas, merecem os nossos parabéns e o nosso agradecimento. Posso confessar uma coisa? No início deste ano, eu perguntava-me sobre se não estavam reunidas as condições para uma “tempestade perfeita”, que poderia conduzir a um tempo negativo na nossa prestação como presidência rotativa, com efeitos detrimentais na nossa imagem europeia.

A Alemanha tinha feito um trabalho notável no semestre anterior (embora eu saiba que, do lado português, há quem não veja as coisas desta forma tão benévola), a pandemia tinha re-acelerado o seu curso, com a falta de “presentismo” e o recurso à comunicação por Zoom e análogos a diminuir o impacto dos eventos, a agenda externa era assim afetada quase ao limite, alguns dossiês davam ar de se poderem atrasar, o “pacote social” para o Porto sofria algum desgaste. Por outro lado, algumas ratificações nacionais das medidas financeiras europeias não dependiam de nós.

Acresciam a tudo isso dois fatores. O primeiro era a própria natureza institucional da União: o papel de uma presidência nacional, no quadro do Tratado de Lisboa - com a existência de um presidente permanente do Conselho Europeu e uma “bruxelização” maior dos exercícios -, não é comparável ao das três presidências anteriores. O segundo era político: esta é uma Europa muito mais dividida, com diversas e por vezes conflituais culturas, não apenas estratégicas mas até filosóficas. O ambiente dentro da União “já não é o que era”.

E, no entanto, num contexto adverso, com alguns casos a serem explorados ns “politiquice” interna, com a triste colaboração de alguns parlamentares europeus, a presidência de 2020, correu bem, foi profissional, conseguiu mesmo fechar alguns processos legislativos que se arrastavam há anos. 

Portugal nunca esteve na Europa para fazer “brilharetes”. Mas enquanto uma França ou uma Alemanha se podem dar ao luxo de fazer más presidências (e nestes 35 anos vi-os titularem algumas bem más…), um país como Portugal, por um conjunto variado mas cumulativo de razões, nunca pode correr esse risco. E, mais uma vez, não o correu. E teve sucesso.

Uma palavra muito especial a Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus. Sei bem, por experiência própria, a dificuldade da tarefa que teve. Por isso, sendo o êxito da presidência devido a todos quantos mencionei - e também aos muito diplomatas e técnicos anónimos que se empenharam na tarefa - sei que a sua liderança à frente da Secretaria de Estado foi uma das chaves do sucesso. Olhando para a História, na Cova da Moura sempre esteve a “salvação nacional”…

segunda-feira, junho 28, 2021

A pandemia e os Estados frágeis


Numa parceria entre o Clube de Lisboa, a que tenho o gosto de presidir, e o g7+, uma organização que é composta por mais de 20 países que passaram por situações de conflito, organizamos, durante o dia de hoje, a 2ª Conferência bienal sobre Estados Frágeis.

A pandemia, as vacinas e a solidariedade internacional neste domínio, com o papel da comunidade internacional neste contexto, são o tema genérico desta conferência, em que participa um importante número de especialistas de vários países.

Pode aceder livremente a este debate através da consulta do site do Clube de Lisboa.

domingo, junho 27, 2021

… e mudemos de assunto, sim?


”Mas isto é um canto e não um lamento
Já disse o que sinto e agora façamos o ponto
E mudemos de assunto, sim?
E mudemos de assunto, sim?
E mudemos de assunto, sim?”

(Sérgio Godinho)

Tapadinha



O Atlético Clube de Portugal é uma simpática agremiação (quanto mais não fosse pelo facto do seu nome acabar em “de Portugal”, como só num grande clube português se encontra) criada pela fusão do Carcavelinhos com o União, nos anos 40 do século passado. Por ali perto está a sede do Cascalheira, um “clássico” nas metáforas futebolísticas…

O Atlético chegou a ter uma presença regular na categoria maior do futebol português, tendo entrado em declínio nos anos 80. Daquele clube saiu uma das grandes glórias do futebol português, Germano. E nomes como Imbeloni e Ben David, que a minha geração recorda, também andaram por ali. Lá jogou ainda, na parte declinante da sua carreira, um dos maiores guarda-redes da história do nosso futebol, Carlos Gomes.

O curioso “pombal” que a fotografia mostra são as bilheteiras da Tapadinha, num modelo que era comum a muitos estádios antigos. 

Constatei que o “Tapadinha”, um restaurante russo que já tem muitos anos, que em tempos conheci com uma bela oferta de vodkas, ainda por ali está. “Nazdarovia!”

Alcântara, um bairro com uma inigualável importância na história dos movimentos sociais em Lisboa, foi muito afetado, na sua integridade urbanística, pela renovação profunda por que a área passou, desde o desenho da Avenida de Ceuta, que está hoje sobre o “caneiro de Alcântara” (convém de lembrar que “Al Qantara”, em árabe, significa “ponte”), até aos acessos e colocação dos pilares da ponte sobre o Tejo, que descaraterizaram muito a zona.

Gosto muito de passear por aquelas ruas. Na Alcântara de hoje, ainda é possível descortinar o que deve ter sido aquele importante bairro operário.

Bolas e coisas assim

Posso dizer uma “barbaridade” futebolística? Gosto de Fernando Santos e da forma como ele conduz a seleção nacional. 

Posso dizer uma segunda “barbaridade”? Gostei sempre da forma como Luiz Filipe Scolari fez o seu trabalho. 

Pronto! Aliviei-me de sinceridade.

O silêncio é de ouro


O senhor almirante, que se tem ilustrado na feitura de escalas de vacinas e outras dimensões de natureza logística, pelas quais o país lhe está muito grato, talvez devesse ficar por ali. A frase, a ser verdadeira, é preocupante na boca de um oficial general das nossas Forças Armadas.

Cimas


Há muitos anos, quando criança, nos intervalos dos jogos de futebol no campo do Calvário, em Vila Real, lembro-me de ouvir, com a voz grave e pausada da locução da época, um anúncio aos então afamados relógios Cyma.

Essa publicidade tinha um lema que, ao que me dizem, ecoava então um pouco por todo o país: “Acima de Cyma, só Cyma!”, para sublinhar a qualidade dita insuperável desses relógios. Depois da frase, o locutor dizia o nome e endereço da casa de relojoaria de Vila Real onde se comerciavam os aparelhos.

Lembrei-me disto ontem, acabado de jantar no Cimas, sobre a estrada que liga os Estoris (uma fórmula antiga de que gosto muito) a Cascais. Este antigo “English Bar“, hoje “Restaurante Cimas”, sob a mão competente de José Manuel Cimas Sobral, continua a ser um marco impressivo da restauração portuguesa.

Agora com um novo espaço num terraço superior, que neste bom tempo substitui a bela sala de madeiras que lhe fez o nome (o restaurante, imaginem!, existe de 1952!), o “Cimas” é sempre um porto seguro de excelente restauração. É barato? Não é. Mas, posso dizê-lo, tem uma relação qualidade-preço muito boa. E todos os restaurantes de qualidade, como é manifestamente o caso deste, merecem ser destacados.

Ecoando a publicidade de outrora, apetece-me dizer, depois da magnífica experiência que tive na noite de ontem, de que deixo uma despretensiosa imagem fotográfica: "Acima de Cimas, só Cimas”!

sábado, junho 26, 2021

A diplomacia e a defesa da integridade do país

Vale a pena começar o que vos quero dizer dando algumas breves notas relativas ao modo como a nossa estrutura de representação oficial externa foi evoluindo. 

Durante muito tempo, e Portugal não foi exceção àquilo que se passava um pouco por todo o lado, a representação do Estado sediada no exterior era cometida a personalidades da confiança pessoal do titular da soberania. Às vezes, essas figuras eram colocadas numa capital específica, na qual dispunham de alguma eventual influência. Em outras vezes, pela adaptabilidade da suas qualificações ou rede de contactos, entravam em itinerância entre as escassas missões diplomáticas que o país possuía. Nunca parece ter havido, por essa altura, qualquer limite temporal para o exercício dessas funções desses enviados do soberano. 

No início, as elites nacionais relevantes para tal fim eram figuras da aristocracia, com redes de relações, familiares e outras, além de um nível de educação e cosmopolitismo necessário à frequência das cortes estrangeiras. Eram também dessa extração os plenipotenciários que transportavam a palavra do chefe do Estado para as conferências internacionais quando estas ocorriam.

Não sei se há dados que permitam avaliar se esse papel do enviados externos, escolhidos pelo titular da soberania, era pior ou melhor assumido, até porque o único juiz da qualidade dessas escolhas acabava por ser o próprio soberano, na ausência então de um qualquer outro modo de responsabilização pública.

Há também que registar a curiosidade, às vezes pouco conhecida, de, por muitos anos, serem os próprios representantes diplomáticos a suportarem o custeio financeiro das missões, o pagamento ao seu pessoal e as suas despesas correntes de funcionamento. A honra e o prestígio de representar o seu rei e o o seu país seriam, talvez, a necessária retribuição para esses gastos.

É muito interessante notar que, mesmo a partir do momento em que o poder pessoal dos reis, na gestão da coisa pública, se foi atenuando, com o fim do Antigo Regime e pela crescente intervenção da representação democrática na formação e alternância dos governos, o papel do enviado diplomático foi mantido, formalmente, vinculado ao titular da chefia do Estado.

A criação de um corpo profissional, de uma “carreira”, para sustentação funcional da máquina de representação externa do Estado, não significou, durante muito tempo, que a alguma dessas pessoas, desses funcionários, fosse cometida a responsabilidade máxima de titularidade diplomática num determinado posto. Mesmo quando - e lembremo-nos de Eça de Queiroz - começou a haver concursos para a admissão de “bacharéis” para o exercício de funções consulares ou outras, nunca, repito, nunca se colocou a hipótese dessas pessoas poderem vir a exercer o cargo de embaixador. Aos funcionários que eram recrutados para a máquina pública externa competiam funções que eram sempre inferiores às dos titulares diplomáticos de confiança pessoal do chefe de Estado, sempre obrigatoriamente seus superiores. Posso estar enganado, mas creio poder afirmar que, em Portugal, a personalidades oriundas da “carreira” só foram confiadas chefias de missões diplomáticas durante o Estado Novo.

Ainda antes, e com o advento da I República, as figuras da aristocracia que chefiavam embaixadas ou legações foram substituídas por personalidades republicanas, com algum prestígio político ou cultural. Com o rei afastado e os títulos nobiliárquicos abolidos, essa “revolução” teve algo de natural.

Embora a máquina diplomática pudesse já ter alguma profissionalização a níveis abaixo da chefia de missão, acabando isso por representar um laço de continuidade na representação do Estado junto de um determinado país, na prática, por essa época, a embaixada “era” o embaixador. Essa realidade prolongou-se por muitos anos e alguns de nós, que estivemos bastantes anos na carreira, ainda nos lembramos de que alguns postos, sobretudo unidades mais isoladas e menos visíveis, continuavam a ser estruturas quase “unipessoais”.

É também importante notar que as legações e embaixadas, as duas designações de então, eram muito poucas. Com escassas exceções, estavam maioritariamente situadas na Europa, com as mais importantes acreditadas junto das potências relevantes, em que a Santa Sé figurava como tal.

Daí que a cultura diplomática prevalecente também fosse, essencialmente, europeia. Se repararmos bem, se há algo em que o mundo ainda não se “descolonizou” foi na liturgia diplomática, nesses “rituais de entendimento”, como bem os designou o embaixador José Paulouro das Neves , que eram e continuam a ser tributários da tradição diplomática e da prática protocolar criadas na Europa. Esse “esperanto” do relacionamento internacional, de origem europeia, não foi nunca seriamente contestado.

A diplomacia portuguesa, ao longo da sua história, apontou sempre para a necessidade de manter certas embaixadas junto dos “powers that be”, embora as representações consulares, para apoio ao comércio (nesse tempo, a importância do apoio à diáspora estava longe de ser reconhecida como um objetivo), fossem comuns em várias outras paragens. Só com a multiplicação de novos Estados, na segunda metade do século XX, fruto das descolonizações e da afirmação de novas nacionalidades decorrentes da fragmentação de anteriores unidades estatais, foi necessário acorrer a outras geografias para a defesa dos interesses nacionais.

É nesse período que se constata que a algumas personalidades que faziam parte das estruturas diplomáticas permanentes era dada, pela primeira vez, a possibilidade de virem a chefiar missões diplomáticas - de início, naturalmente, as de menor importância. Para as grandes embaixadas e legações, o modelo tradicional de escolha continuava a prevalecer.

Durante muitos anos, aquilo a que agora é vulgar chamar de “embaixadores políticos” foi a regra, os embaixadores “de carreira” eram a exceção. Foi durante o Estado Novo que esta relação começou a inverter-se, em que o poder político percebeu que já estava criada uma estrutura de representação externa do Estado de uma qualidade na qual podia fazer confiança. E, dessa forma, foi-se crescentemente dispensando a busca na sociedade civil, em geral na classe política, de outras personalidades para exercer essas funções.

Com a Revolução de Abril, terá havido, inicialmente, uma tentação de preencher a representação externa do Estado com gente “de confiança” da democracia. Há rumores de que, mesmo para níveis intermédios da carreira, houve quem pensasse fazer entrar figuras políticas, com o argumento de que, por anterior impossibilidade de acesso, a uma certa geração havia sido vedado o acesso à carreira. Por outro lado, vozes havia que entendiam que a diplomacia profissional estava de tal modo conluiada ideologicamente com o regime derrubado que era necessário “saneá-la” radicalmente. Nenhuma dessas ideias prosperou. Os “saneamentos” foram muito escassos, o novo regime rapidamente percebeu que, não obstante grande parte da carreira poder ser então tida como conservadora, ela poderia ser reconvertível para o serviço da democracia. E essa perspetiva não só vingou como se mostrou correta.

Constata-se que, ao longo deste quase meio século de vida em democracia, os diversos poderes políticos escolheram um total de 31 personalidades externas à carreira para a chefia de embaixadas. Com naturalidade, a entrada dessas figuras foi mais intensa nos anos imediatamente posteriores a 1974, passando, a partir de então, a significar uma percentagem cada vez menor no conjunto dos chefes de missão. Neste dia em que lhes falo, apenas uma missão multilateral portuguesa é titulada por alguém que não entrou por concurso para a carreira diplomática. 

Não quero fazer aqui um balanço, que seria algo delicado e polémico, sobre o valor acrescentado que aquele conjunto de figuras trouxe para a ação externa do Estado, bem como para o prestígio do país. Como profissional diplomático, orgulhosamente “de carreira”, nunca tive dificuldade de reconhecer, com a maior franqueza, que houve personalidades recrutadas fora do MNE cuja qualidade acabou por ter consequências muito positivas para o trabalho da nossa diplomacia. Outras, sem deslustrarem, não trouxeram uma contribuição que se possa dizer que não pudesse ser feita pelos profissionais da “casa”. Muito poucas - mesmo muito poucas, felizmente! - se revelaram-se nefastas ou perniciosas para a imagem e serviço do Estado que haviam sido chamadas a servir. Mas assumo a arbitrariedade deste meu juízo global, mesmo sem “naming names”. Um último apontamento sobre este tema: a algumas dessas figuras escolhidas fora da carreira foi, a certa altura, dada a possibilidade de integrarem o serviço diplomático corrente, circulando entre postos, numa total equiparação aos diplomatas “de carreira”.

Gostava de voltar à questão da diplomacia que tínhamos, no final da ditadura. Quando, em 1975, entrei para o serviço diplomático, cerca de um ano decorrido desde a Revolução de Abril, tínhamos acabado de sair de um período extremamente complexo para a vida diplomática portuguesa. Todos sabemos que os tempos das duas guerras mundiais haviam sido muito exigentes para a nossa ação externa. Mas há que convir que, logo após a entrada de Portugal para a ONU, em 1955, o desafio criado pela tentativa de escapar à pressão internacional para forçar a descolonização dos territórios ultramarinos portugueses, num tempo em que as antigas potências coloniais rapidamente desapareciam pelo mundo, criou uma nova e não menos difícil trincheira diplomática. Portugal, um pouco por toda a parte, com apoios declinantes, passou a estar sob uma constante barreira de fogo político, em especial no plano multilateral, mas com incidências, mais ou menos sérias, em algumas dimensões bilaterais. Tudo havia começado com a questão da Índia portuguesa, logo seguida das situações dos domínios portugueses em África, em especial após o início, em 1961, das guerras coloniais.

Nesse muito difícil contexto, e sem trazer para aqui juízos de valor sobre a questão política que servia de pano de fundo, há que reconhecer que a diplomacia portuguesa se portou extraordinariamente bem. A nossa diplomacia fez exatamente aquilo que lhe era destinado fazer, que era levar à prática o mandato que o poder político lhe determinava. Não era à diplomacia que competia questionar a política externa do regime, podendo nós imaginar que, muitas vezes, alguns desses nossos antigos colegas se devam ter interrogado sobre se o que estava a ser feito era aquilo que melhor protegia o que interpretavam como sendo os interesses essenciais do país. Muitos, creio que a maioria, estariam sintonizados ideologicamente com a tarefa diplomática que eram levados a implementar. Outros, em bom número, eram apenas “civil servants” disciplinados. Alguns terão calado as suas dúvidas, porque os tempos políticos não ajudavam ao questionamento das orientações. Uns seriam mais competentes, outros menos. Na globalidade, o trabalho produzido, visto a esta distância, parece ter sido, em termos profissionais, de indiscutível qualidade. Não parece ter sido pela diplomacia que esse Portugal político foi derrotado na sua “guerra colonial”.

Esta dialética entre o exercício da função diplomática e as orientações da política externa leva-me ao ponto a que agora quero chegar: são os diplomatas “produtores” de política externa, nomeadamente num contexto democrático? Podem os profissionais ter como legítimo objetivo influenciar a ação externa do país, embora não tenham atrás de si a legitimidade própria dos atores políticos?

Sempre fui de opinião que os diplomatas não devem considerar-se a si próprios como meros “locutores de continuidade” de uma política externa que lhes é ditada. Entendo que os diplomatas podem e devem aportar, para a reflexão sobre a postura externa do Estado que servem, aquilo que é o fruto da sua experiência, como depositários que são da continuidade de uma cultura de ação política de que são executores, mas também cultores, ao longo dos vários ciclos políticos, na alternância que a democracia permite e promove. Devem, contudo, dar esse contributo dentro das paredes oficiais, cuidando em não serem fautores e potenciadores de divisões públicas.

Estão aqui nesta sala pessoas que representaram o Estado português durante muitos anos. Estou certo que todas elas reconhecem que, ao final de algumas décadas de representação do Estado, todos acabaram por criar uma espécie de feeling sobre o que é o interesse português, independentemente dos vários ciclos de governo.

Ao longo da minha vida de quase quatro décadas ao serviço da diplomacia, fui chefiado por 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Com escassíssimas exceções, nunca senti particular dificuldade em representar a “voz” do Estado, mesmo em ciclos políticos contrastantes. Em algumas circunstâncias, e não foram muitas, discordei da orientação decidida pelo governo de turno, em determinados assuntos. Calei essa discordância, porque entendi não ter o direito de, nesses momentos, tornar pública a minha divergência de opinião. Se então me apetecesse contestar as determinações oficiais, deveria ter saído da carreira e vocalizar a minha posição no exterior. Como essas determinações não foram ao ponto de ofender, no limite, a minha consciência e aquilo que era a minha leitura do interesse português, embora as entendesse flagrantemente erradas, calei-me. Uma delas, como adivinharão, foi a organização da Cimeira das Lajes, em 2003.

Acho que deve fazer parte da nossa postura, como diplomatas, com coluna vertebral e com sentido do interesse público, ter a coragem de dizer sempre ao poder político aquilo que pensamos. Criámos um património de memória e de defesa do interesse do pais. Mas não temos o direito de o impor. Se o poder político entender não aceitar a nossa posição, devemos fazer aquilo que ele determine. É ele quem tem a legitimidade política, por mandato democrático, para nos dar as orientações. Não temos uma qualquer legitimidade que nos permita arrogarmo-nos a ser uma espécie de guardiões do templo. Felizmente, no Portugal democrático, os ciclos políticos não têm trazido mudanças radicais à nossa postura internacional - e isso, vale a pena dizer, facilita-nos bastante a vida.

Um dia, o meu amigo João Rosa Lã, ao tempo em que era embaixador na Haia, referiu-me que a Holanda tinha acabado de publicar um livro branco com uma reforma muito significativa da sua política externa. Pedi-lhe um exemplar, por curiosidade. Não tenho dificuldade em entender que as políticas públicas de um país possam ser objeto de revisão, mesmo que radical. Mas, devo confessar, faz-me uma certa impressão que uma política externa, um quadro de prioridades no terreno bilateral e multilateral, com expressão ao longo de muitos anos, possa ser objeto de uma redefinição drástica, que, de certa maneira, afeta aquilo que já é um certo património histórico do país. Os holandeses não entenderam assim e repensaram, por essa altura, a sua política externa, a sua hierarquia das prioridades, a começar pela rede diplomática e certas políticas que lhe estavam associadas. A verdade é que de um país que, um dia, decidiu promover, pelo mundo, uma mudança do nome pelo qual era conhecido, passando de Holanda a Países Baixos, tudo é possível… Acho, contudo que seria muito difícil para nós, em Portugal, como que “parar para obras” e decidir: «Ora vamos lá repensar a nossa política externa, para ver se o nosso relacionamento deve ser mudado, com este ou com aquele país, com esta ou aquela organização», anunciando isso por escrito! Mas cada um é como é!

Não sei se já se deram conta, mas creio que só há um único elemento que foi preservado na política externa portuguesa, da ditadura para a democracia: a relação transatlântica. Com essa exceção, nenhum daqueles que hoje são considerados os eixos da nossa ação externa - Europa, língua e lusofonia - existia antes do 25 de Abril: a relação com a Europa comunitária era muito incipiente, aquilo que hoje podemos qualificar como o pilar do mundo que fala português não se colocava, obviamente, do mesmo modo. Porém, a prioridade dada à NATO, às relações com o Reino Unido e os Estados Unidos, com as Lajes de permeio, já estava bem inscrita na nossa agenda externa.

Há dias, ao comentar isto, alguém me disse, com um ar muito natural: «É muito simples perceber a razão pela qual isso se passou assim. O 25 de Abril foi feito por militares e os militares portugueses são tributários de uma cultura NATO». Nesse instante, recordei-me do momento, algo bizarro, que havia sido a presença do general Vasco Gonçalves, como primeiro-ministro, numa cimeira da NATO, em Bruxelas. Evidentemente, nós sabíamos que, a Portugal, havia sido retirado o acesso aos códigos nucleares da organização. Mas a presença de tão idiossincrática figura naquela reunião, provava, se tal fosse imperativo, a importância basilar do relacionamento transatlântico, a preservação de um elemento fundamental da nossa postura geopolítica, resultante do lugar do mundo onde continuávamos e continuamos, com ou sem Revolução.

Somos um país antigo e somos um país, em regra, com uma atitude externa bastante previsível. O mundo sabe quem somos e como, em geral, nos comportamos, perante as coisas do mundo internacional. Não está na nossa natureza mudar, radicalmente, de postura externa. A nossa dimensão, aa nossas dependências, bem como a nossa fragilidade relativa não recomendam que isso se faça, com ligeireza.

Porém, refletir sobre a nossa política externa, questionar serenamente a sua evolução, olhá-la e adaptá-la de uma forma diacrónica, isto é, não pensarmos que “isto é assim e vai ficar sempre assim”, pode e deve fazer-se. Por exemplo, numa área que julgo conhecer bem, o relacionamento com a União Europeia, devemos refletir permanentemente sobre a adequação da nossa atitude a cada tempo, tanto mais que a União, ela própria, muda constantemente de natureza e é importante que meçamos o modo como nos devemos comportar face a essas mesmas mudanças.

Por exemplo, acho que é da maior importância, sem grandes estados de alma, fazermos uma contínua reflexão sobre a nossa política de alianças dentro da União Europeia. E fazê-lo de maneira fria, como todos o fazem: umas vezes estamos com a Espanha nuns dossiês, em outros afastamo-nos, de outras vezes aproximamo-nos da Alemanha, outras da França. A defesa ótima dos nossos interesses a isso obriga e não surpreenderá ninguém que o façamos. Todos o fazem.

Um caso muito interessante, e pouco abordado entre nós, tem a ver com o relacionamento com o Reino Unido. Não quero especular muito sobre isto, mas diria, num caricatura que é um “understatement”, que Londres, por mais de dois séculos, sobredeterminou a nossa postura externa, em termos que chegaram a ser, na prática, de uma quase tutela.

Creio que em 1987, destacado para uma reunião comunitária sobre questões de desenvolvimento, a ter lugar no Luxemburgo, e perante uma agenda que teria aí uma dez pontos, recebi instruções sobre três ou quatro deles e, quanto aos outros, foi-me dito: «É seguir os ingleses». Devo dizer que, naquele instante, que nunca mais esqueci, como que gelei. Percebi que o “comodismo” diplomático podia ir ao ponto de dispensarmos ter posição própria, talvez por se considerar que os assuntos em causa não eram do nosso interesse direto, pelo que seria prudente seguir a linha de um país cujas posições, em regra, estavam próximas das nossas.

Os britânicos “raptaram”, durante muitos anos, parte significativa da capacidade decisória portuguesa na área externa, connosco a considerar, numa avaliação simplista, que, ”seguindo os ingleses”, tínhamos basicamente preservados os nossos interesses. Essa atitude representava aquilo que é, precisamente, o contrário daquilo que, mais tarde, aprendi que um país deve fazer na gestão da sua politica europeia: sair da preguiça da agenda egoísta e criar uma filosofia sobre a generalidade dos assuntos, numa coerência global de atitude.

Quando estive colocado na nossa embaixada em Londres, no início dos anos 90, dei-me conta de que comunhão dos nossos interesses com o Reino Unido era apenas, e cada vez mais, um mito. Lembro-me bem das dificuldades com a questão de Timor, em que o Reino Unido estava, quase por sistema, do outro lado da barricada. E, em muitos outros dossiês, salvo em temáticas de política externa e de segurança, em que a questão transatlântica viesse à baila, o nosso afastamento era cada vez mais significativo. Nos anos em que, depois de sair de Londres, tive responsabilidades política na área dos assuntos europeus, em tempos em que Portugal sublinhava bastante a sua postura integracionista, o Reino Unido passou a estar, crescentemente, bem distante das posições de Portugal.

E aqui regresso à questão dos interesses portugueses. Identificá-los, aculturá-los, preservá-los e promovê-los foi sempre uma das grandes preocupações que tive na minha vida diplomática, nela incluindo a passagem pela política.

Quando entrei para a diplomacia, posso agora revelá-lo, era um anti-europeu. E era-o por uma razão muito simples: vinha da esquerda e o setor da esquerda portuguesa de que eu então me sentia próximo não era, por natureza, europeísta. Porém, não sendo comunista, percebi, a certa altura, que a minha postura acabava por ser, nesse domínio, bastante similar à do PCP. E isso não só me incomodou como me levou a interrogar-me sobre a correção dessa minha posição.

O meu anti-europeísmo de então, vim a constatar, era uma reação epidérmica e algo primária, numa lógica simplista de que, no processo decisório europeu, nunca devíamos partilhar decisões. Devíamos, ferozmente, guardar para nós a capacidade de decidir em tudo quanto nos dissesse respeito. Os interesses portugueses eram sempre melhor defendidos do lado de cá do Caia. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só por acaso coincidentes com os nossos. Era uma perspetiva totalmente errada: os nossos interesses são sempre melhor defendidos numa atitude pró-ativa, envolvendo os outros e envolvendo-nos nós mesmos naquilo que são os interesses dos outros. Com o tempo, vim a entender que o conceito de independência, e a capacidade de defender essa independência, têm uma expressão muito diferente no mundo atual. Se há conceitos que mudaram com o tempo, e que dependem muito das circunstâncias, esse são a independência e a soberania.

Uma vez, nos anos 60, numa aula do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, perguntei ao professor Adriano Moreira se, duas ou três décadas depois, ele via como possível que o Ultramar português se tornasse independente. A pergunta era delicada, mas o professor Adriano Moreira teve arte para lhe dar a volta: «Se o meu amigo me conseguir dizer, hoje e agora, qual será o conceito de independência daqui a 30 anos, terei o maior gosto em responder-lhe.» Era uma fuga à questão mas, de certo modo, era verdade.

O que é hoje, para um Estado como Portugal, ser independente? Éramos mais independentes, como Estado, quando éramos um país isolado, “orgulhosamente sós”, durante os últimos tempos do período colonial, em que vivíamos debaixo de uma pressão internacional fortíssima? Ou será que somos hoje mais independentes, mais capazes de influenciar o nosso futuro, quando conseguimos atuar, dentro e com a União Europeia, afirmando-nos em múltiplas dimensões multilaterais? Temos hoje uma maior capacidade internacional ou não? Não tenho dúvidas de que, mau grado novas dependências que entretanto possamos ter criado, a nossa posição no quadro internacional é bem mais confortável do que nesse tempo tenso. E que este novo quadro, se bem que mutante e exigente, é muito mais favorável para a defesa prática dos nossos interesses.

É para mim claro que todos os contextos em que haja dinâmicas que não possamos, autonomamente, controlar, são fautores de riscos - e a participação nas instituições europeias não está isenta de perigos. Um espaço de participação em modelo de partilha de soberania tem sempre dificuldades, agravado, no nosso caso, pela nossa dimensão, pela nossa fragilidade financeira e pelo poder institucional limitado que é o nosso. Talvez por isso continuo, às vezes, a ter algum tropismo soberanista - e tive-o muito claramente quando negociei dois tratados da União Europeia. Nunca consegui ser muito concessionista, nem nunca fui atraído pelas derivas do hiper-federalismo. E continuo a ser adepto, não apenas de reservas de competência nacional muito claras, em áreas de soberania, como na preservação de uma capacidade mínima de influência no processo decisório.

Por essa razão, tive sempre muitas dúvidas, em matéria de revisão instutucional de tratados, na questão da redução do poder de voto no Conselho, em cedências no número de deputados ao Parlamento Europeu, na importância de manter um Comissário. Tive sempre imensas dúvidas em fazer concessões em relação a isso. Tanto mais que sempre vi aqueles Estados que procuram “segurar as rédeas” da União muito interessados em reforçar o seu poder. Se eles, que são, por natureza e pelo seu poder económico e demográfico, muito poderosos vivem, em permanência, mobilizados para garantirem a preservação dessa força, por maioria de razão um Estado menos forte, com mais fragilidades, situado frequentemente fora do mainstream decisório prevalecente em Bruxelas, precisa de preservar alguma capacidade de controlo da sua posição.

Neste bosquejo pela nossa postura externa, como é que a diplomacia portuguesa se tem portado? Acho que se tem portado, basicamente, bem. Sempre? Nem sempre: temos, como é natural, alguns altos e baixos. Vou ser muito franco - e julgo que abro aqui “o livro” de uma forma que ninguém antes fez. Temos gente que trabalha muito bem, como também temos gente que trabalha menos bem. Temos gente que é capaz de defender, com afinco, os interesses nacionais e outra que, não operando contra o interesse nacional, o não cultiva com o afinco com que deveria fazê-lo. Mas, em termos gerais, considero que o país está bem representado e que há hoje uma maior responsabilização, uma maior transparência naquilo que cada um faz, pelo que a meritocracia me parece mais afinada. E isso é bom.

A Europa é disso um bom exemplo. Não teria sido possível a Portugal ter um presidente da Comissão Portuguesa se o nosso país não tivesse tido, ao longo dos anos, dentro da União Europeia, um comportamento altamente responsável, eficaz, com presidências rotativas muito bem executadas, com forte sentido de responsabilidade, com pessoal respeitado, com uma presença muito ativa. Não somos “os melhores do mundo”, mas tivemos sempre, no nosso seio, gente de muito boa qualidade, que ajuda a prestigiar, pelo mundo, o nome do país.

Infelizmente, acho que não temos uma cultura, dentro da carreira diplomática, de permanente reflexão sobre o que são os interesses portugueses e a melhor maneira de os promover. Fica a ideia de que é por “osmose“ que vamos absorvendo o que interessa salvaguardar. Ora essas coisas têm que ser mais discutidas, refletidas, as pessoas têm que estar conscientes de que há uma matriz comportamental que representa os interesses do país. E deve haver maior accountability, consequências negativas para quem não leva as coisas com o indispensável rigor, efeitos positivos nas carreiras para quem é profissionalmente competente. E devemos todos estar conscientes da “linha” que nos compete defender, sem ambiguidades e, em especial, sem “achismos”. Recordo-me sempre de um raspanete que dei a um adido de embaixada a quem, um dia, escassas semanas depois de ele ter entrado no MNE, apanhei, ao telefone, em conversa com uma embaixada estrangeira em Lisboa, a dizer, com total irresponsabilidade, “Portugal pensa que…”

Há países que fazem isso muito bem. O Reino Unido, por exemplo. Vi fazerem isso agora, em tempo de Brexit, num dos seus momentos mais caóticos na sua presença internacional. A diplomacia britânica tem uma consistência e uma constância admiráveis, por mais abstrusa que seja a tarefa que lhe cumpra executar. E, ao contrário de outros países, nunca assisti, em conversas com colegas britânicos, à emissão de opiniões à margem da posição oficial do seu governo. E, acreditem, há muito que aprendi que este é o teste do algodão do profissionalismo.

Ontem, conversava com o antigo embaixador americano em Portugal, Alan Katz - que foi embaixador político, como são a maioria dos embaixadores americanos -, e perguntava-lhe: «Que ordens concretas recebeste, quando vieste para Lisboa?» Ele disse algo curiosíssimo, que eu não sabia: «As nossas ordens são-nos transmitidas pelo staff diplomático, que nos enquadra e que recebe as guidelines do Departamento de Estado. Temos uma linha geral, que representa os interesses americanos para cada país ou organização, mas, depois, é a máquina do Departamento de Estado que dá ao embaixador as guidelines concretas, conferindo desta forma uma coerência global da representação do Estado no país.»

Vamos ser francos: nós não temos, muitas vezes vezes, essa capacidade de coordenação, por forma a garantir uma coerência global de atitude, em todos os setores da máquina diplomática. E não assegurando essa coerência global, houve já pessoas que assumiram, e, alguns postos, atitudes menos responsáveis. Pode ter acontecido, aqui ou ali, um inquérito, mesmo um processo disciplinar, talvez uma transferência para outro local, mas há, entre nós, uma cultura demasiado permissiva e “compreensiva”, perante a incompetência ou a pontual irresponsabilidade. Digo isto com alguma pena: faz-nos falta uma cultura mais densa e exigente, que não ceda ao impressionismo e não se contente com resultados de qualidade média. É que, ao ceder ao facilitismo, estamos a ser injustos para com os outros, com a gente que se esforça, que trabalha muito e bem.

Um outro ponto que gostaria de referir é que a diplomacia dos dias de hoje não se reduz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em algumas áreas que não são questões de pura política externa, há um trabalho no exterior que releva já muito da política interna. O caso mais óbvio é a União Europeia, mas há outros setores multilaterais onde isso é por demais evidente. Por isso, pergunto-me se não devíamos estar mais abertos, na carreira diplomática, a trabalhar e a discutir, mais aprofundadamente, com os outros ministérios. Eu sei que conjugação interdepartamental, às vezes, é difícil. A cultura das Necessidades não está muito aberta a isso.

Usamos, no MNE, uma expressão para tratar os outros ministérios, que diz tudo: consideramo-los os “ministérios sectoriais”... É uma espécie de afirmação, reconheço que algo sobranceira, de uma função de soberania, que se entende situada no centro da ação do Estado. Há, no MNE, um orgulho em poder garantir que, nas rotações governamentais democráticas, quando chega um novo ministro, ele é servido por dossiês, com pontos de situação, sobre todos os assuntos relevantes, elaborados com todo o rigor e neutralidade política, permitindo ao novo titular entrar nas matérias com garantido conhecimento de causa. Ao que se dizia, mas não sei se é verdade, apenas os Ministérios da Defesa e das Finanças davam idênticas garantias, havendo, em geral, uma maior politização nos restantes “ministérios sectoriais”…

No nosso caso, tenho a certeza absoluta de que assim se continua a proceder. Em várias mudanças de ciclo a que assisti, e em algumas em que estive envolvido, o novo ministro tem sempre perante si, se quiser, assegurado pelo quadro diplomático e técnico em funções, uma expressão escrita e fiel daquilo que são os interesses portugueses que foram decantados ao longo desse tempo e um bom retrato das questões sobre as quais terá de decidir.

É muito bom, na política externa, não haver descontinuidade. Os diplomatas portugueses sabem que, por regra, as grandes linhas de política externa não se alteram. A imagem do país sai prestigiada deste facto.

Vou contar uma história que se passou comigo. Em 2011, precisamente no dia da posse do dr. Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, eu tinha marcada uma ida à Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento francês, para fazer uma exposição sobre a política externa portuguesa. Umas dias antes, tendo em conta que em Portugal tinha havido um “terramoto” de natureza político-partidária, o presidente da comissão telefonou-me perguntando se eu não queria adiar, para poder ter tempo para olhar para o novo programa do governo. Tive então o desplante, e o prazer, de lhe poder dizer: «Não, por mim, não quero adiar. Irei, nesse dia, explicar à sua Comissão as linhas essenciais da nossa política externa, porque tenho a certeza absoluta de que o que eu irei ali dizer será confirmado pelo novo governo. Nós não mudamos de política externa, no que são os seis eixos essenciais, quando mudamos de governo». Já aconteceu foi mudar-se o embaixador. Mas essa, embora rara, é outra história…

A continuidade virtuosa na ação externa tem, contudo, algumas nuances. O meu último posto foi como embaixador em Paris. Fui para lá em 2009, em tempos de business as usual, em termos da vida do nosso país e, por isso, também da sua ação externa. Nos dois primeiros anos, assim foi. Criaram- se novos consulados honorários, procurei assegurar mais leitorados para as universidades, mais professores para o ensino do português para os filhos dos portugueses, maior eficácia em toda a máquina do Estado que me competia supervisionar. Um dia, em 2011, rebentou a crise financeira. Tudo mudou. Houve a troika, as restrições orçamentais. Os apoios tiveram que ser reduzidos, os salários cortados, menos pessoal, menos professores, enfim, uma onda restritiva, com efeitos negativos no funcionamento e na eficácia dos serviços. O embaixador era o mesmo. Com a mesma cara com que, antes, dava conta de várias iniciativas positivas e otimistas, que exigiam recursos de toda a natureza, tive que passar a “vender” políticas de sinal oposto, restritivas, perante caras indignadas de compatriotas nossos, que achavam que estavam a ser “ofendidos” pelo Estado. Este, confesso, foi um tempo muito complexo, que marcou a última metade do meu mandato em Paris.

Nessa altura, fui também chamado a assegurar, cumulativamente, a chefia da representação na Unesco, passando a ter uma dupla tarefa que era muito difícil de assegurar. Mas era o serviço do Estado. E o Estado era o mesmo. Quem o titulava era um governo diferente, mas com legitimidade democrática indiscutível para decidir essas drásticas mudanças. A nós, podendo recomendar algumas decisões, apenas nos competia fazer, tão bem quanto possível … às vezes, coisas radicalmente contrárias às que, no passado, também nos tinham competido. É assim a condição diplomática. Cada um de nós tem de ser, como se dizia de Thomas More, A man for all seasons. 

A diplomacia portuguesa, ao longo dos tempos, tem dado mostras de ser um corpo de grande lealdade ao serviço público, com profissionalismo, patriotismo e elevado sentido de Estado. A diplomacia não tem, necessariamente, de ser vista como um exercício de cinismo, por poder ser vista a levar à prática políticas de sinal diverso. Somos executores de um exercício de responsabilidade e de representação de interesses nacionais, devendo acompanhar aquilo que os ciclos políticos e a vontade que eles legitimamente expressam. Fazê-lo bem, com sentido patriótico, é a vocação da nossa profissão. No que me toca, considero ter sido um imenso privilégio poder desempenhá-la durante quase quatro décadas.

(Conferência proferida na Sociedade Histórica de Independência de Portugal, em 24.6.21)

Pitonisa avisada

Há uns anos, numa apresentação na FLAD para políticos americanos, MRebelo de Sousa vaticinou que, depois das eleições legislativas, a direita portuguesa ia entrar num período de profunda crise. Achei então a previsão excessiva. Agora, depois do MEL e olhando hoje o “Observador”…

Uma vergonha!

Ano de eleições autárquicas é o período glorioso em que os jornais se enchem de suplementos em papel couché, onde alguns autarcas gastam o dinheiro dos contribuintes, que deveria ter sido aplicado em coisas úteis, a gabarem-se para serem reeleitos. Nenhum partido escapa a esta praga! Uma vergonha!

sexta-feira, junho 25, 2021

Comida a sério!


Manuel Gonçalves da Silva é um divulgador empenhado da cozinha tradicional portuguesa. As suas notas críticas de visita a restaurantes, num país que palmilha incansavelmente, são um instrumento precioso para quem gosta de comer “à nossa moda”.

Esta semana, a revista ‘Visão” merecia uma medalha de serviço público por trazer, sem acréscimo de preço, um livrinho em que Manuel Gonçalves da Silva nos seleciona 60 poisos culinários - de “amesendação”, como diria aquele que foi o grande “papa” deste “métier”, José Quitério.

Estamos perante uma preciosidade que vai passar a acompanhar-me, da mesma maneira que anoto sempre os excelentes textos do sucessor de Quitério no “Expresso”, Fortunato da Câmara, e de Fernando Melo, no “Evasões”, dois amigos em cujo juízo confio quase cegamente.

No “Leão da Estrela”, Laura Alves dizia a expressão que ficou famosa: “Ai a loiça!”. Ao olhar as páginas desta publicação, dei comigo a exclamar intimamente: “Ai o colesterol!” Mas só se vive uma vez! 

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Hoje, no “Expresso”, há um artigo de um professor universitário, de seu apelido Robalo Cordeiro. Terá sido uma senhora da sua família que, há anos, ao apresentar-se a alguém, terá levado à reação do interlocutor: “Vossa Excelência é um verdadeiro menu!”. 

É uma historieta bem antiga, passada com alguém famoso, cujo nome esqueci. 

Ah! E espero que não venha por aqui alguém dizer que isto é ofensivo! Sei lá! É que, nos dias de hoje, até chamar parvo a um parvo passou a ser ultrage e deixou de ser um mero reconhecimento objetivo de facto.

quinta-feira, junho 24, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, António Freitas de Sousa e eu falamos da renovação do mandato de Guterres, dos cinco anos que decorreram desde o referendo que deu lugar ao Brexit e do encontro em Putin e Biden, em Genebra.

Pode ver aqui

A posição de Portugal

Vamos falar das coisas a sério, sem demagogias?

A Europa está indignada com o facto da Hungria ter aprovado legislação interna discriminatória, em matéria de orientação sexual. A Hungria de Orbán, com um desplante que só a garantia da impunidade permite, faz, há muitos anos, o que muito bem lhe apetece e, uma vez mais, demonstra que os mecanismos comunitários continuam a ser impotentes para travar uma deriva autoritária que coloca em causa as regras a que o seu país se comprometeu aquando aderiu à União. Veremos o que irá suceder neste caso, para além da retórica.

Não nos esqueçamos do comportamento indigno do Partido Popular Europeu ( PPE) - cujos partidos membros portugueses não me ocorrem agora - que, durante anos, pôs “paninhos quentes” nas atitudes atribiliárias de Orbán, que a ele pertenceu com a bênção permanente de quem põe e dispõe no grupo, a CDU de Merkel. Órbán, até por lá tem, em Budapeste, como assessor, um antigo secretário-geral do PPE, aliás um cidadão português que por cá ocupou funções num governo que também optei por esquecer. Foi curiosamente essa mesma pessoa que, a solicitação húngara, dirigiu a campanha da búlgara Kristalina Giorgieva, contra a candidatura de António Guterres a SG da ONU, em 2016. Também não consigo recordar o nome da personagem. Hoje, a minha memória está terrível…

Um grupo de países da União subscreveu, entretanto, uma declaração em que condena a atitude d Hungria.

Portugal, presidência em exercício da União até ao final do mês, declarou que estava em perfeito acordo com o teor dessa declaração - e esse é o aspeto político mais importante a ter em conta - mas que a não subscrevia, porquanto, enquanto presidência, teria de manter uma posição de “honest broker”, dado que mais de metade dos Estados membros também não surgiram a subscrever o texto.

Repare-se que não é claro se os Estados que não subscreveram a declaração se colocam ao lado da Hungria (o que é altamente improvável, para a esmagadora maioria) ou se consideram a forma ou a oportunidade do texto menos consentânea com a maneira como entendem que o tema deve ser tratado (o que é a hipótese mais provável). E isto tem de ser ponderado.

Achei perfeitamente adequada a atitude tomada pelo governo português.

Uma declaração desta natureza não é um documento com qualquer estatuto no ordenamento jurídico da União. É uma opinião, uma afirmação de posição, aliás muito equilibrada e correta. Estou seguro que o governo português, não tem a menor objeção ao texto, como já o afirmou. Mas posso perfeitamente perceber que, enquanto presidência, não se queira associar (mas apoie politicamente, o que, repito, é o mais importante) a um documento que divide a União ao meio. Repito, trata-se de uma tomada de posição de alguns Estados. Não subscrevê-la não tem o caráter de uma “abstenção” perante uma proposta de decisão em Conselho. Aí, seria imperdoável se Portugal não tomasse posição. E tenho a certeza que, se se chegar a esse ponto, a tomará sem hesitações.

Contrariamente ao que aconteceu em 2000, quando a presidência portuguesa titulou, em nome dos “catorze” (todos os Estados membros, menos a Áustria), uma condenação à entrada de um partido de extrema-direita no governo austríaco), desta vez não houve “vinte e seis” (todos menos a Hungria) a reagir. Nessa altura, era a unanimidade menos o visado. Hoje é muito diferente. Em 2000, eu estava no centro desse “furacão” e fui eu quem foi ao Parlamento Europeu defender a posição dos “catorze”.

Esta polémica interna sobre a atitude do governo português morrerá amanhã. Seria muito mais cómodo para mim deixar passar este assunto em silêncio. Mas não deixo. Porque Lisboa teve razão na forma como procedeu. E eu não me importo rigorosamente nada de, quando acho que uma posição está correta, embora me possa pôr contra a indignação adjetivada e demagógica de uma maioria ruidosa nas redes sociais, de dizer o que penso. E o que penso é isto.

E agora, quem quiser, faça favor: “fogo à peça”.

quarta-feira, junho 23, 2021

Manequim


Saí do edifício do FBI, em Washington, e comecei a caminhar, naquela que me pareceu ser a direção de onde tinha vindo. (Mas que diabo foi o homem fazer ao FBI?). Eu não tinha ido “bem” ao FBI. (Mau, mestre!) Tinha ido visitar o museu do FBI. (Ah!). Era o mês de dezembro de 1972. (Há quase 50 anos? Estava a fazer o quê, por ali?)

Tinha ido aos Estados Unidos incluído numa excursão do Auto Clube Médico Português. Tinha havido uns lugares por preencher e a agência de viagens tinha-me sugerido que aproveitasse o bom preço. Eram as minhas primeiras férias, ao fim de um ano de trabalho como bancário, prestes a ir para a tropa. A minha geração era mais dada a viagens pela Europa, mas, por essa altura, eu já tinha visitado vários países do continente algumas vezes, duas das quais à boleia. E, pronto!, decidi ir aos States - Nova Iorque, Washington e cataratas do Niagara. Uma das torres gémeas de Manhattan ainda estava a ser construída. Mal eu sabia que ia estar por lá no dia em que ambas iriam ser destruídas.

Voltemos a Washington. A cidade tem uma geografia fácil e, talvez fiado nisso, à saída do FBI, caminhei despreocupadamente por várias ruas. De repente, olhei para uma montra e reparei que todos os manequins eram negros. Nunca tinha visto um manequim negro, em louça ou madeira. Desde a minha infância, as mulheres representadas por esses porta-vestidos eram brancas, com uns cabelos penteados “à antiga”.

Achei curioso e pensei, cá para mim: deve ser para cativarem a clientela feminina negra. (Eu sabia que a capital federal tinha uma maioria de população negra). E continuei a andar. Talvez alertado pela montra, olhei com mais atenção à minha volta e constatei que eu era o único branco no horizonte. Algumas pessoas olhavam para mim, pareceu-me que com alguma curiosidade. As montras, com os mesmos modelos de manequins repetiam-se, sempre e só de mulheres.

Nunca tendo, até então, ido a África, com o cenário das ruas de cidades como Paris ou Londres então ainda muito distantes de terem a diversidade de que hoje as habita, aquele ambiente era uma experiência única para mim. Em Portugal, a descolonização, com a subsequente imigração oriunda das antigas colónias, só iria ter lugar alguns anos depois, pelo que o panorama humano do quotidiano era dominado pela população branca, como as imagens da época bem mostram.

Nessa manhã, em Washington, eu tinha entrado num bairro de população negra. Não me apercebi que a minha presença criasse a menor reação. (Anos mais tarde, no Harlem profundo, em Nova Iorque, numa área onde fora parar por alguma imprudência, o ambiente não iria ser tão “neutro” e seria mesmo algo hostil). Apenas detetei uns sorrisos divertidos, até porque devia estar a afivelar uma cara de algum embaraço. E, como mandam as regras da orientação, regressei por onde tinha caminhado, passando de novo ao lado do FBI. John Edgar Hoover já lá não estava. Morrera no mês de maio anterior.

Por que razão trago aqui este episódio, nestes tempos em que falar de temas raciais parece cada vez mais delicado? Por uma razão simples. Na passada semana, em Viena, fui ver as montras do Dorotheum, a fantástica casa de leilões que, nem que fosse para regalo dos olhos, ia muitas vezes visitar, quando vivi na cidade, entre 2002 e 2005. E, numa das vitrines, pertencente a um lote que irá à liça dentro de dias, estava um manequim antigo, com a cara de uma mulher negra. Ao olhar para a peça, regressei, por instantes, meio século atrás, a Washington.

Mas isto é tema para um post? Sei lá! Para mim foi.

Tarde do dia de Consoada