sábado, setembro 17, 2016

Coscuvilhices


Alguém a quem determinadas informações foram prestadas, numa conversa discreta, terá o direito, mesmo que muitos anos depois, de vir a público revelá-las, sabendo claramente que, com isso, quebrou a confiança que foi posta em si? E, em especial, se a revelação dessas conversas vier a afetar a imagem de pessoas, vivas ou já desaparecidas, será eticamente aceitável publicar - nas redes sociais, na imprensa ou em livro - tais dados? A resposta parece evidente para toda a gente, mas, aparentemente, para alguns, não o é.

Todos nós, uns mais do que outros, somos depositários de alguns segredos que nos confiaram, ou de episódios delicados que testemunhámos, em contexto profissional, com a segurança ética de que nunca os tornaríamos públicos, em moldes que possam prejudicar alguém. Na vida política e diplomática, como é natural, muitas coisas se sabem, desde questões correntes a algumas histórias de alcova. A regra a seguir é muito simples: para além do "bom gosto" nos temas a abordar, daquilo a que assistimos ou nos foi dito em confidência, só pode ser divulgado o que não afete o interesse do Estado ou, ainda que minimamente, a imagem das pessoas envolvidas ou mencionadas. Nem mais, nem menos.

Não conheço ainda um livro que se anuncia trazer umas dessas historietas de "diz-que-diz-se". A confirmar-se que insere algumas revelações que já foram indiciadas, esse "tablóide encadernado" deverá ser exposto ao opróbrio público. Se não foi possível evitá-lo, ao menos que sirva de mau exemplo. Mas, quando não há vergonha, não há remédio.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Dominique Strauss-Kahn

Tenho à minha frente, num painel de debate sobre o futuro do euro, Dominique Strauss-Kahn. É muito interessante observar o seu esforçado regresso à normalidade pública, agora como consultor económico internacional. Depois do imenso escândalo que o envolveu, que arruinou as suas ambições presidenciais em França e mudou dramaticamente a sua vida, deve ter clara consciência de que é olhado de um modo especial. E isso sente-se.

Há duas notas que gostaria de deixar sobre Strauss-Kahn.

A primeira sobre o seu trabalho à frente do FMI. Relembro o que li num editorial do "The Economist", no auge do escândalo: "Whatever the man did, do not forsake his ideas: they are more important". Quero com isto relevar o espírito novo que Dominique Strauss-Kahn soube transmitir ao FMI, o modo como conseguiu modular a rigidez e a cegueira dos números, a insensibilidade social que marcou muitos dos "ajustamentos estruturais" liderados e impostos, no passado, por esta instituição de Bretton Woods. Os "developing countries" devem ter criado muitas reticências sobre a personalidade de Strauss-Kahn, mas é uma evidência que também não esqueceram o modo como ele soube adaptar positivamente a filosofia de atuação da organização. Além disso, vale a pena também ter presente a forma como Strauss-Kahn soube impor o FMI no quadro do G20, como conseguiu reforçar substancialmente os meios financeiros ao seu dispor, contribuindo também para um mais justo posicionamento relativo dos países emergentes no processo decisório dentro do Fundo. O mandato de Strauss-Kahn dentro do FMI foi um imenso sucesso, exceto o seu fim.

Apenas uma vez, e por breves minutos, me recordo de ter falado com Strauss-Kahn, nos momentos que antecederam um almoço oferecido por Lionel Jospin a António Guterres, em Matignon, creio que em 1999. Nem faço ideia do que falámos. Durante esse almoço, teve lugar uma cena algo caricata. 

A certo momento do repasto (aliás, recordo, com excelentes vinhos), achei que deveria transmitir ao primeiro-ministro português uma informação, que me parecia poder ser-lhe útil na sequência da conversa. Eu estava à esquerda de Jospin, que tinha em frente António Guterres, o qual, por sua vez,  dava a direita a Dominique Strauss-Kahn. Gatafunhei umas notas nas costas de um menu, em que devo ter escrito qualquer coisa do estilo: "Seria importante lembrar a Jospin que..." ou "A França não pode esquecer que..." ou outros comentários do género. Era uma nota para ser lida apenas por António Guterres, porque, lembro-me, tinha elementos algo sensíveis na forma como estavam apresentados. Dobrei o menu e, a um empregado de mesa que passava, pedi que o entregasse ao primeiro-ministro português, do outro lado da mesa. O homem terá entendido menos bem o que eu disse, deu a volta à mesa e passou a minha nota a... Dominique Strauss-Kahn, que estava precisamente à minha frente. 

A conversa entre Jospin e Guterres ia animada e eu não tinha a menor possibilidade de a interromper, para dizer ao ministro da Economia e Finanças francês que a nota não lhe era dirigida, mas sim ao seu parceiro do lado. Embaraçado, gesticulei discretamente para chamar a atenção de Strauss-Kahn, o qual, no entanto, se dedicava a ler, com toda a atenção, aquilo que eu tinha escrito, em letras maiúsculas, desejavelmente "for the eyes only" do meu primeiro-ministro. O governante francês deve ter percebido o essencial do texto. Quando acabou a leitura, Strauss-Kahn olhou para mim, esboçou um sorriso e passou o papel a António Guterres. Enfim, imprudências que se cometem... Não me sinto tentado a lembrar-lhe isso hoje.

Opções militares


Não sou um especialista em assuntos militares. Tendo feito, como cidadão, o serviço militar obrigatório, mantive, a partir de então, um olhar cívico sobre a evolução da instituição, refletindo sobre o que ela representa para o país.

Considerei um erro a extinção do serviço militar obrigatório, que li como a sujeição a uma agenda - oportunista, comodista e populista - de "jotas" partidárias. Achei pena que se tivesse quebrado esse vínculo do cidadão com o seu país. Era uma "chatice", obrigava a uma disciplina de "deitar-cedo-e-cedo-erguer", conflitual com os "shots" noturnos e as horas em discotecas? Talvez, mas permitia que os jovens percebessem que não nascem "na nuvem" e que o seu sacrifício poderia vir a ser necessário para a preservação da entidade nacional em que se inseriam, tivessem ou não consciência dela.

Hoje, contudo, já não penso assim. Com a especializacão para que as Forças Armadas foram evoluindo, a reinstituição do serviço militar obrigatório representaria um esforço organizacional desproporcionado face às suas potenciais vantagens. A preservação de uma ligação dos jovens à dimensão cívica nacional deveria hoje passar por outros métodos - embora detete uma quase total falta de debate sobre isso nos meios políticos. 

Nos tempos atuais, as Forças Armadas de um país com a nossa dimensão e recursos, para além deverem sustentar valências de apoio a emergências coletivas da sociedade civil, que ajudarão à sua valorização aos olhos dos cidadãos, necessitam, cada vez mais, de concentrar a sua atividade operacional em corpos especializados, ao nível dos seus contrapartes estrangeiros. Essa é a única forma de estarem à altura dos compromissos mínimos, nos quadros de alianças de que fazemos parte e, igualmente, das solicitações para intervir em operações de manutenção de paz, determinadas por mandatos legitimados pela comunidade internacional. Num passado não muito longínquo, o nosso país ganhou imenso prestígio através do envolvimento dos seus militares nesse tipo de ações. Tudo deveria ser feito para que esse perfil fosse retomado e se reforçasse, em favor da nossa projeção externa.

Aqui se insere o tema, tornado polémico nos últimos dias, sobre as condições de treino dos Comandos, que terão conduzido à morte de soldados. Independentemente de ser absolutamente essencial que se apurem responsabilidades sobre o sucedido – e rapidamente –, convém não « deitar fora a criança com a água do banho ». Os erros corrigem-se, mas devem ser evitadas reações « a quente ».

Mas é evidente que a qualidade das nossas Forças Armadas também se afere pela competência dos seus responsáveis, nomeadamente no tocante à formação de quadros. Se essa competência não resultar evidente aos olhos dos cidadãos, é a legitimidade da própria instituição militar que fica afetada. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

De Kiev


Vim à Ucrânia, pela primeira vez, há muitos anos, ao tempo em que era parte da União Soviética. Viajando numa baratucha excursão norueguesa, passei uma semana na Crimeia, nas praias do mar Negro, com a curiosidade acrescida de poder sentir, com os meus próprios olhos, o ambiente do palácio de Livadia, onde, em 1945, muito do destino que o mundo de hoje ainda anda a viver foi desenhado pelas conversas entre Stalin, Churchill e Roosevelt. Sem autorização para sair da cidade mais do que alguns poucos quilómetros, quase sem ter acesso a lojas e com escassos pontos turísticos acessíveis, pouco havia para fazer nessa estranha vilegiatura, numa cidade que já fora deslumbrante e que então sofria de uma decadência sem graça.

Uma tarde, passeando em Ialta, à beira-mar, com ar de uma oriental Riviera datada, demo-nos conta, de repente, de que imensas mulheres que connosco se cruzavam usavam sapatos vermelhos, todos do mesmo tipo. Eram dezenas, sem exagero, umas a seguir às outras. Quase por acaso, fomos dar a um grande armazém, o qual, como era de regra na URSS, muito pouco tinha à venda (ainda me arrisco a ser contraditado neste blogue por algum nostágico, que por lá tenha andado de férias pagas pelo "Komsomol"). Entrámos, escapando a uma fila de mulheres que, de forma paciente, se formava escada acima, não se percebia muito bem para quê. O mistério desfez-se, minutos depois: eram os sapatos vermelhos que "estavam a sair", expressão que, poucos anos mais tarde, muito ouviria em Luanda, nos momentos mais folgados do "socialismo esquemático" (expressão local que significava um tipo de socialismo cujo quotidiano só se podia suportar graças a "esquemas"). Nesse dia, em Ialta, como novidade, só havia à venda esses sapatos vermelhos... As belas ucranianas de hoje já não usam sapatos desses, quanto mais não seja porque muitas foram aculturadas a detestar o vermelho.

A Crimeia, e com ela Ialta, está hoje separada da Ucrânia e, "de facto", integrada na Rússia, sob protesto da comunidade internacional. A Ucrânia continua, como sempre esteve, numa trágica glória histórica, no centro das imensas e complexas regiões que são, um pouco quase por todo o lado, as fronteiras da Rússia.

quinta-feira, setembro 15, 2016

O chato

Na minha terra, dir-se-ia que aquele embaixador "não se enxergava". 

Verdade seja que, desde o primeiro momento, havia feito um esforço para garantir contactos ao mais elevado nível do ministério dos Negócios estrangeiros do país onde estava acreditado. Em si mesmo, era meritório que procurasse estabelecer um bom "networking". Só que não havia percebido que o país que representava tinha escassa importância para o Estado que o acolhia. Por isso, mandava o bom senso que utilizasse esses contactos com grande parcimónia, guardando tais vias pessoais para momentos importantes para os interesses do seu país, não banalizando o recurso aos seus muito ocupados interlocutores.

Estes, depois de uma primeira e simpática abertura, logo perceberam que o "chato" do embaixador não lhes "desamparava a loja" e, claro, começaram a mostrar-se renitentes às frequentes visitas, a declarar-se em permanência em reunião, para crescente desespero do homem. Ao fim de alguns meses, aquilo que havia sido uma lista interessante de contactos passou a não ter a menor utilidade.

Um dia, o nosso homem tinha, de facto, uma "emergência", um pedido do seu governo para efetuar uma diligência a um nível elevado. Tentou um desses seus contactos, um poderoso diretor-geral, mas este, "escaldado", disse-se sem agenda para o receber. A questão era mesmo importante e o embaixador sentia-se impotente. Porém, o máximo que o ministério lhe ofereceu foi um encontro com o jovem funcionário que se ocupava do "desk" geográfico da região em que o país se inseria. São, em geral, de diplomatas muito jovens, a quem cabe tomar notas do que lhes é dito, num mero "listening mood", sem autorização para emitirem grandes opiniões. Ora estes comentários, aquando de uma "démarche", são relevantes, configuram as primeiras reações oficiais do país contraparte, que se torna interessante comunicar de imediato às suas autoridades. Era quase uma humilhação, mas o embaixador estava apenas a beber o fel que ele próprio tinha preparado.

E, assim, no dia aprazado, lá se viu obrigado a encontrar-se com um jovem terceiro-secretário que, simpático e de bloco-notas, tomou boa nota do que lhe era dito. O jovem tinha vindo buscá-lo à portaria e, acabada a conversa, preparava-se para reconduzi-lo à saída. O embaixador, contudo, disse não ser necessário: conhecia bem o caminho e iria tomar o elevador. Ele que não se preocupasse em acompanhá-lo. O rapaz anuiu, despediu-se e viu o embaixador caminhar para a saída.

Isso era o que ele pensava! O nosso homem, dobrada a esquina do corredor, com o auxílio da memória de anteriores visitas ao ministério, havia decidido procurar o gabinete do tal diretor-geral, que se declarava persistentemente "ocupado". Fingindo estar ali "de passagem", fez uma visita ao "amigo", abrindo a porta do respetivo gabinete, interrompendo uma reunião que aquele estava a ter.

A partir daqui, as versões divergem, desde o relato de um encontro cordial, em tom benévolo, dado pelo embaixador, embora reconhecidamente sem qualquer utilidade profissional, até uma leitura dos factos um pouco menos agradável, que fou a que se espalhou nos meios diplomáticos locais, segundo a qual o diretor-geral terá tido palavras menos simpáticas, e até alteradas, face ao que entendeu ser o abuso cometido, encarregando de imediato um seu colaborador de reconduzir o diplomata estrangeiro à portaria do ministério. Esta segunda versão parece um pouco mais consentânea com as instruções rigorosas que foram dadas, e logo conhecidas "urbi et orbi", para que aquele embaixador nunca mais pudesse dar um passo desacompanhado quando lá voltasse.

O voluntarismo insensato de um embaixador pode fazer muito mal ao trabalho de uma embaixada. E é irrecuperável, pelo menos até chegar o seu substituto.

quarta-feira, setembro 14, 2016

Magnanimidade

Por estes dias, tenho seguido o consagrado princípio que, há décadas, a Cruz Vermelha defende, em situações de conflito: não se deve disparar sobre ambulâncias! 

Há um "motto" de que também gosto muito: cada um faz a cama onde se deita.

Secretários & Subsecretários


Há semanas, numa conversa, uma senhora disse-me que o seu pai tinha sido Secretário de Estado num determinado governo de Salazar. Delicadamente, corrigi-a, explicando que, no tempo em que o seu progenitor exercera essas funções, era minha impressão que esse cargo se chamava "Subsecretário de Estado", tendo embora um estatuto político idêntico ao dos (então inexistentes) Subsecretários de Estado. A senhora "bateu o pé" e eu calei-me, no silêncio de quem estava seguro do que estava a dizer. Fui fazer uma investigação: a senhora tinha razão e eu não. Tenho de lhe dizer um destes dias.

Até ao final da I República, os governos tinham apenas ministros. É a Ditadura Militar que cria, pela primeira vez, cargos de Subsecretário de Estado, dependentes de Ministros. As Finanças ("et pour cause") foi o único ministério que manteve sempre Subsecretários de Estado até à Constituição de 1933. Com o início do Estado Novo, essa categoria passou a estender-se a vários outros ministérios e a ser usada com frequência. 

Entre 1926 e 1958, a tarefa de "ajudantes" (citando Aníbal António Cavaco Silva) dos ministros era desempenhada exclusivamente por Subsecretários de Estado. 

A categoria de Secretário de Estado, hierarquicamente acima da de Subsecretário de Estado, apenas é criada em 1958, em lugares então atribuídos a Correia de Oliveira (Comércio) e a Ferreira Dias (Indústria), ambos tendo exercido antes lugares de Subsecretário de Estado. 

O cargo de Secretário de Estado passou a ser frequente a partir daí e, claramente, a ocupar o "espaço" entre os ministros e os Subsecretários de Estado, que assim perdem o estatuto político de que até então beneficiavam. Com a criação dos Secretários de Estado, há um óbvio "downgrading" dos Subsecretários. 

Com o 25 de abril, e nos governos provisórios (1974/76), a utilização da categoria de Subsecretários de Estado foi baixa (entre quatro a oito, nos cinco primeiros governos), salvo no VI e último Governo provisório, onde atingiu o número fantástico de 21! 

Nos Governos constitucionais, a tendência foi para a contenção. O primeiro governo de Cavaco Silva (1985) não teve nenhum Subsecretário de Estado  o mesmo já não acontecendo com os seus dois executivos subsequentes. António Guterres (1995), Durão Barroso (2002) e Santana Lopes (2004) não tiveram nenhum Subsecretário de Estado. É no seu primeiro governo que José Sócrates que volta a utilizar esse cargo que, contudo, faz desaparecer no seu segundo governo. Passos Coelho, no seu primeiro governo, criou uma única Subsecretária de Estado, para "ajudar" Paulo Portas, mas não reeditou o modelo no seu "governo de uma semana e picos". António Costa não utilizou esta categoria no governo da "geringonça". Até ver.

Renascerá o cargo, um dia?

terça-feira, setembro 13, 2016

Entre vistas


Nunca esqueço um conselho que, há muitos anos, recebi de António Guterres: "Cuidado com as entrevistas: a sua pior frase será sempre o título".

Lembrei-me isto ao ver a "esparrela" em que o ministro das Finanças, Mário Centeno, caiu, ao ser perguntado sobre um possível novo "resgate".

A técnica utilizada neste caso "tem barbas" e, em Portugal, há dois ou três jornalistas "especializados" no truque. Lembro-me, em particular de um, que fazia entrevistas num semanário e que era useiro e vezeiro no "golpe". É muito simples. Imaginemos que se trata de uma qualquer figura do Porto, à volta de quem surgem rumores de que tem ambições a nível nacional. A meio da entrevista, por exemplo depois de ele falar do conforto da vida no Porto, surge, como quem não quer a coisa, a pergunta: "Vê-se a viver em Lisboa?". A resposta normal é: "Sim, porque não?". O título do jornal, pela certa, é "Vejo-me a viver em Lisboa". Isto dá logo origem a especulações por parte do leitor, do género "Ah! Afinal o tipo sempre tem intenções de vir para Lisboa! Eu bem dizia!". Esta é uma vigarice jornalística típica.

Que Mário Centeno tenha caído nela, é normal, acontece aos melhores. O que já é menos normal - ou, se calhar, conhecendo-os, é - é o facto de figuras com responsabilidades políticas, sabendo que uma polémica em torno deste tema pode ter consequências graves nos mercados, serem vistas a especular o assunto em registo de baixa chicana. Honra seja feita a Maria Luís Albuquerque que, numa entrevista ao "Jornal de Negócios" disse, sobre o assunto, o que precisava de ser dito, sem deixar de marcar as suas discordâncias.

segunda-feira, setembro 12, 2016

António Guterres


Acho impressionante que a comunicação social portuguesa, que tão entusiástica e "patriótica" tem sido - e com razão - no tocante à evolução da candidatura portuguesa de António Guterres ao lugar de secretário-geral da ONU, tenha sido tão parcimoniosa sobre as manobras, que são escancaradamente públicas, reveladas nos últimos dias contra essa candidatura.

Surpreende-me não ver uma linha sobre o papel que setores do Partido Popular Europeu estão a desenvolver, tentando criar condições para que a vice-presidente da Comissão Europeia, Kristalina Georgieva, surja rapidamente na liça - agora que a expressiva última votação em Guterres claramente assustou quem deseja a sua derrota.

Sabia-se do papel de setores do PPE para levar Georgieva a Bielderberg. Foi muito claro que Jean-Claude Juncker tentou promover a búlgara junto dos russos, ao tê-la levado consigo a Moscovo, num contexto sem qualquer sentido. Mais recentemente, o chefe de gabinete do presidente da Comissão Europeia declarou, na sua conta oficial das redes sociais, a forte vontade de ver Georgieva na ONU. Last but not least, sabe-se agora da campanha desenvolvida por Angela Merkel, durante o recente G20 na China, no sentido de tentar criar uma onda de fundo em favor da ainda comissária europeia, por forma a conseguir travar Guterres.

Essa manobra passa por tentar convencer o governo de Sófia a, nas próximas horas, deixar cair o nome de Irina Bukova, a diretora-geral da UNESCO que era a sua candidata, e avançar com Georgieva.

Era muito importante que, em Portugal, o PSD, para além de dar conta da sua indignação sobre as limitações à ação empresarial de Durão Barroso nos corredores da Comissão, também expressasse publicamente o seu repúdio ativo a estas manobras desenvolvidas contra o candidato português, e que formalmente apoiou, feitas no âmbito do PPE, a formação política europeia a que está ligado. 

De caminho, talvez os social-democratas portugueses pudessem também dar garantias ao país de que nenhum antigo membro do governo do seu partido está ativamenfe envolvido nesta operação que tem por objetivo minar a candidatura portuguesa. Se assim acontecesse e viesse a provar-se, o PSD poderia vir a ficar muito mal na fotografia.

domingo, setembro 11, 2016

Nova Iorque, 11 de setembro de 2001

Já recordei várias vezes, no modo como esse tempo me marcou, o meu dia 11 de setembro, há 15 anos, em Nova Iorque, quando aí era Representante Permanente de Portugal junto das Nações Unidas (o relato mais completo está aqui). 

Mas creio que não referi o que respondi a um jornalista de uma televisão portuguesa que me fez, no final de uma entrevista, poucos minutos antes de perdermos as comunicações telefónicas com Lisboa, uma pergunta desnecessária:

- A data de 11 de setembro vai ficar marcada na sua memória para sempre?

A minha resposta foi sincera e, até hoje, nunca decidi se a devia ter dado ou não:

- O 11 de setembro já era uma data triste para mim, agora é mais. É que foi em 11 de setembro que as tropas de Pinochet derrubaram Salvador Allende, no Chile.

Vários amigos, nos meses seguintes, viriam a acusar-me de "imprudência" e até de "falta de sensibilidade". Posso perceber essa atitude. Mas, como digo, fui totalmente sincero.

Alberto Xavier


Um amigo comum brasileiro acaba de me dar conta da morte de Alberto Xavier.

O Alberto era um dos maiores fiscalistas do Brasil e, além disso, um homem de cultura, com interessante obra publicada. E, o mais importante, era um bom amigo meu.

Alberto Xavier era bastante jovem quando ingressou no governo de Marcelo Caetano. Partiu para o Brasil tempos depois, onde construiu uma carreira profissional de grande sucesso. Creio que foi o atual ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, que havia sido cônsul-geral no Rio de Janeiro, que nos pôs em contacto. 

Desenvolvemos uma boa amizade ao longo dos quatro anos em que fui embaixador no Brasil. Era uma pessoa com um fino humor, que não "explodia" num gracejo, mas se ia insinuando na conversa. Criei para ele o conceito de "falso lento na ironia"...

Tenho com o Alberto uma cena magnífica, pela qual perpassa toda essa ironia. Ele tinha sido convidado, com a sua mulher de então, para um jantar no Palácio de S. Clemente, a residência do cônsul-geral no Rio. Horas antes, informou que viria sozinho. Estranhamente para os seus hábitos, chegou mesmo um pouco tarde. Fui ter com ele à entrada, disse-lhe, um pouco para fazer conversa, que já sabia que a sua mulher não viria. O Alberto, com aquele sorriso irónico com que dizia serenamente graças fabulosas, esclareceu: "Foi ela, aliás, a razão deste meu atraso. É que estive a assinar os papéis de divórcio"...

Há poucos anos, no bar do Hotel Ritz, eu explicava a um amigo, que devia ir viver para o Brasil tempos depois, que o Alberto Xavier era alguém que era fundamental ele conhecer no Rio de Janeiro. Em frente à nossa mesa, no preciso momento em que a conversa decorria, passou um vulto que, de costas, me pareceu ser o Alberto. Essa figura desapareceu numa esquina da sala. Porque achei a coincidência "impossível", esqueci o assunto por uns minutos. De repente, tive um pressentimento, levantei-me e fui procurar a figura: era mesmo o Alberto Xavier! Dei-lhe um abraço e fiz as apresentações. Foi a última vez que o vi!

Tenho muita pena pela morte do Alberto. Àquela que foi a sua primeira mulher, de quem permaneceu um grande amigo e um imenso apoio, a Leonor (Xavier), deixo aqui um sentido abraço.

Mudou a vida?

Se o 11 de setembro não tivesse ocorrido nos Estados Unidos, se o Al Qeada tivesse optado por outra estratégia, se a segurança americana tivesse sido capaz de prevenir os atentados, estaríamos hoje onde estamos, em termos de segurança coletiva?

O mundo kiplinguiano dos “se” é tão fascinante quanto inútil. Apenas forjei algumas variáveis para sublinhar o grau de imprevisibilidade da situação internacional, a qual, contudo, não evolui no vazio: as tendências vão-se sedimentando e prevalecem, independentemente de serem potenciadas ou limitadas por fatores de conjuntura.

O mundo em que o 11 de setembro se produziu estava longe de ser um mundo seguro. E, claro, não se tornou mais seguro depois dessa data. Desde logo, no Médio Oriente.

A cegueira ocidental na região vinha de longe. A Guerra Fria, a questão energética e o papel de Israel em toda a equação haviam conduzido a estratégias de compromisso dos poderes euro-atlânticos com o mundo quase medieval do Golfo, onde, recordemos viria a germinar o Al Qaeda. É dali que sai Bin Laden, que encontra nos talibãs, que o ocidente financiara para a afastar os soviéticos do Afeganistão, a sua principal base de apoio.

A Guerra Fria havia « congelado » grande parte das tensões à escala global, que afloravam, em termos violentos, em zonas de confluência de poderes, em que os dois polos rivais se disputavam através de terceiros.

O Médio Oriente atravessaria esse confronto leste-oeste de forma singular, tendo preservado por muito tempo alguns equilíbrios que pareciam eternos.

Distraído com o conflito israelo-palestino, o mundo ocidental deu por adquirido que bastava apostar numa hábil « balança de poderes » na região para assegurar o essencial, o qual, à época, tinha apenas um nome : petróleo. Enquanto assim procedeu, teve sucesso. Quando atuou de modo a romper com esses equilíbrios, o ocidente soltou os demónios. E, por algum tempo, não viu chegar um novo modelo de revolta, dificilmente enquadrável nos padrōes tradicionais. Quando acordou, era tarde.

Pode dizer-se que há duas grandes « novidades » trazidas pelo 11 de setembro.

A primeira é a força inusitada e transfronteiriça dos atores armados não-estatais.

Foi a procurada destruição de alguns Estados – do Iraque à Líbia – que deu fôlego ao proselitismo radical islâmico, em modelo de “brigadas internacionais », também conduzidas por uma ideologia que projeta uma mundividência totalitária. Há um elemento cuja inventariação ajuda a perceber muita coisa: a natureza e a origem dos armamentos que essas forças utilizam. Sem a destruição do Iraque da Saddam Hussein, o Estado islâmico não teria a capacidade militar que hoje tem. Sem o voluntarismo irresponsável anglo-franco-americano na Líbia  o Aqim não disporia dos meios para a sua ação instabilizadora do Sahel.

Para além da cínica contabilidade regional de interesses, um dos receios confessados de Moscovo na Síria é o de que uma implosão desse país possa vir a reforçar o Estado islâmico e provocar a dispersão de novas metástases de instabilidade, suscetíveis de contaminar o Cáucaso e o sul da Rússia. (Um parêntesis de atualidade: olhe-se com atenção a sucessão de Karimov no Usebequistão, onde a tensão recorrente no vale de Fergana não deve ser esquecida). A Rússia também já percebeu que pode vir a sofrer novos reflexos do atoleiro do Afeganistão, de onde, recorde-se, partiu a grave instabilidade num Paquistão nuclear. Há que reconhecer que a Rússia pode ter alguma razão neste ponto.

A segunda « novidade » radica no campo dos princípios.

O 11 de setembro acelerou a colocação da luta contra o terrorismo no « politicamente correto » à escala global, acuando aqueles que se escudavam na não consensualização do conceito para limitarem a sua adesão ao esforço coletivo de o combater.

De caminho, a identificação de algum mundo islâmico com a disrupção, violenta ou não, da vida de muita gente, em especial na Europa, ofereceu um alibi à discriminação que permanecia numa latência envergonhada e tornou o « diálogo de civilizações » num filme de ficção para ingénuos.

É também aí que se insere a fácil rejeição do multiculturalismo, a reemergência da xenofobia, com crescente expressão partidária em sociedades políticas que a tal pareciam imunes.

Finalmente, a falência das « primaveras árabes » parece ter feito regressar as democracias ocidentais ao cinismo da realpolitik, à aceitação do « mal menor », para sermos claros, das ditaduras (porém) estabilizadoras.

A nossa vida mudou, com o 11 de setembro ? Se « puxarmos o filme atrás », verificaremos que todos os principais fatores de instabilidade e rutura estavam já sobre a mesa nessa data. O 11 de setembro potenciou-os, mas ele é também, em si mesmo, uma sua consequência.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

sábado, setembro 10, 2016

Refletir a frio

A lamentável morte de dois militares dos Comandos está a provocar um justificado choque no país. Muitos se perguntam se a realização de exercícios violentos em tempos excecionais de calor não terá ultrapassado os limites do bom senso. O inquérito sobre o assunto - que, por uma vez, se espera rápido e conclusivo - poderá vir a fazer alguma luz.

Dito isto, há que dizer algo mais. Os Comandos são um setor especializado das nossas Forças armadas que, de há muito, prestam um serviço prestigiado à instituição militar. Trata-se de uma tropa profissional, formada por voluntários - é bom não esquecer isto. O seu treino é muito rigoroso, mas é precisamente como resultado desse rigor que a qualificação desse setor é apreciada, num tempo em que Portugal deve caminhar para uma cada vez maior especialização militar. Não é possível ter tropas portuguesas preparadas para intervirem em cenários extremos - como no Afeganistão ou no Sahel -, integradas em operações multilaterais de paz, onde muito têm prestigiado o nome de Portugal, se a sua formação não estiver à altura das rigorosas exigências desses ambientes operacionais.

Quero com isto afirmar que, não obstante achar indispensável que se apurem, sem a menor sombra de dúvida, eventuais responsabilidades por erros cometidos no caso em apreço, acho perigosas e demagógicas quaisquer ilações precipitadas no sentido do encerramento daquela força militar especial. 

Com o tempo quente que por aí vai, justifica-se ainda mais manter a cabeça fria.

Os medos da América


Nunca vivi na América. Ou melhor, vivi algum tempo  em Nova Iorque que, como alguém dizia, os americanos acham que já é « um pouco Europa ». Mas estava lá nessa data terrível que foi o 11 de setembro de 2001, quando, como titulou então consensualmente o « Le Monde », todos fomos americanos. E senti a América a mudar.

De há muito que penso que não adianta tentarmos viver a História dos outros e procurar compreendê-los à luz da nossa própria experiência. Por muitos esforços intelectuais que façamos, ficamos sempre aquém da plena compreensão dessa herança natural que cada povo carrega dentro de si, fruto daquilo que o seu percurso histórico sedimentou na memória coletiva.

A América – gosto de chamar assim aos Estados Unidos da América – é um país diferente. É o grande vencedor dentre os impérios do século XX, subalternizando os poderes europeus tradicionais, de quem se tornou no aliado dominante e que sossegou com a sua vitória perante a ameaça que a Guerra Fria para todos representou. 

Talvez por isso, porque, em estado de necessidade dos outros, assumiu o papel de « polícia » do mundo ocidental, e depois o prolongou num registo algo sobranceiro, a América passou a identificar os seus interesses com aqueles que espera que os seus parceiros adotem. Já tive a experiência de ver mais do que um diplomata americano genuinamente surpreendido pelo facto de, perante um tema internacional em discussão, um aliado ousar ter uma perspetiva diferente. O seu comportamento no seio da NATO é disso prova evidente e, verdade seja, esta perspetiva um tanto impositiva acaba muitas vezes por fazer o seu caminho.

Uma graça comum, detratora da política externa americana, costuma repetir que o Estados Unidos acabam sempre por adotar a boa solução, mas só depois de terem experimentado todas as outras. A História não comprova o chiste : não apenas, infelizmente, a América não escolhe sempre a melhor solução como, felizmente, tem conseguido travar alguns impulsos internos para atitudes limite, de que o recurso à opção nuclear é talvez o mais evidente exemplo.

A América vencedora do comunismo, que sonhou com o « fim da História », que a bondade da democracia liberal iria conquistar por todo o lado, não entendeu a precariedade desse ingénuo proselitismo, onde sempre se misturaram interesses egoístas com valores saudáveis. Com a teimosia que afeta quem se sente « à solta » pelo mundo, forçou realidades culturais cuja profundidade mediu mal ou não compreendeu de todo. Pelo caminho, a sua auto-suficiência fê-la optar por um multilateralismo « à la carte », de que nem um presidente com o perfil de Obama se livrou, o que muito afetou a sua autoridade moral como potência. Ao fazê-lo, punha em causa e desafiava de forma indecente a mesma ordem à escala global de que fora o grande campeão, depois do segundo conflito mundial.

Como atrás referi, o 11 de setembro mudou a América. Quem cai de alto sofre mais com a queda e os Estados Unidos, ao serem confrontados com riscos novos no seu próprio território, foram arrastados para um sentimento coletivo de ansiedade, pelo ineditismo de verem em risco uma segurança que davam por adquirida e eterna, apenas sacudida pelas pulsões individuais da sua violência interna, que subsumiam no eterno debate sobre a legitimidade de uso de armas. 

Os discursos que se pretendem caraterizadores das reações coletivas de qualquer povo são altamente falíveis, mas não resisto a pensar, à luz do que me foi dado observar ao longo do tempo, que o abalo do 11 de setembro conduziu a América a uma opção relativamente evidente em favor da segurança, em óbvio detrimento das liberdades – na leitura de que estas só existem quando a primeira estiver assegurada. Nessa deriva, sob o traumatismo do instante, num refluxo patriótico que teve laivos obsessivos, o país poderá ter colocado em causa alguns princípios de que era arauto. Esse não era, aliás, um cenário novo. Havia emergido no « maccartismo » e na atitude americana à escala global, em todos os momentos em que a preservação de um interesse tido por maior tinha prevalecido – desde a frequente proteção ilegítima de Israel à realpolitik anti-comunista, por exemplo, no suporte obsceno de ditaduras um pouco por todo o mundo.

Para apressar o fim deste raciocínio, direi que o receio e a preocupação securitária parece terem tomado conta dos reflexos americanos, quem sabe se por muito tempo. Se nem mesmo uma presidência « do bem », como foi indiscutivelmente a de Obama, foi capaz de estabilizar racionalmente esses medos, talvez devamos estar preparados para ter de aceitar que o pior está ainda para vir. Do « Tea Party » a Trump, há uma América profunda que, podendo não chegar já ao poder, previsivelmente o condicionará, mesmo que a escolha de novembro venha a ser Hillary Clinton – a coisa mais próxima de um republicano que os democratas poderão hoje produzir.

Com uma Europa sem direção política, que possa servir de contraponto coletivo, amigável e moderador, os Estados Unidos, para apagar os seus medos, poderão  sentir-se uma vez mais tentados a avançar por sua conta e risco. E isso não são necessariamente boas notícias para quem deles depende e com eles quer preservar uma relação determinada pela geopolítica. Como nós.

(Artigo que hoje publico no "Público")

sexta-feira, setembro 09, 2016

De cernelha

É de cernelha, e não de caras, que a direção do CDS agarra a iniciativa da sua "jota" de organizar amanhã uma tourada.

Encostada às tábuas pela tradição dentro do partido da direita, seguramente mobilizado por alguns "populares" de suíças longas e arzinho marialva, os centristas têm tido na tourada anual o seu teste anual de verdade sobre se querem ser um partido moderno, atento às preocupaçöes básicas dos dias de hoje nas sociedades (e mentalidades) desenvolvidas, ou uma força do antanho, que não percebe que há tradições inóquas e outras que se colam à barbárie. E têm "chumbado" nesse teste.

É claro que alguns sempre dirão que alguma esquerda, herdeira da escrita daqueles "por quem os sinos dobram", os acompanha no gosto valente de ver o sangue do touro vertido pela praça, na pedagógica iniciação aos filhos ao verem bandarilhas metálicas ("ferros" curtos ou longos, dirá a linguagem especializada) espetadas sadicamente pelo lombo do touro (eles dirão "toiro", porque a sonoridade é mais excitante). Os mais ousados irão mesmo ao ponto de confessar (perdidos por cem...), em surdina, pelo burladero do Caldas, que, por vontade deles, haveria touros de morte, com direito a corte de orelhas do bicho (quiçá do rabo, suprema glória) e saída em ombros do artista pela porta grande.

Sendo as coisas hoje o que são, Assunção Cristas, "malgré" a recusa esclarecida de Adolfo Mesquita Nunes, lá deixa organizar a garraiada, perdão, a tourada. Uma iniciativa em que o partido pega, de cernelha, pela certa, com rabejador a designar.

Para quem não saiba, o espetáculo será no sábado, numa praça perto de si. A Juventude Socialista estará em Braga, à mesma hora, a discutir a Europa. E eu lá estarei com eles. Isto é um país livre. Cada um escolhe o que entende mais importante para a pátria.

Guterres na ONU

1. É muito positivo que António Guterres se mantenha na liderança das votações indicativas para a escolha de SG da ONU. Candeia que vai à frente...

2. É também muito bom sinal que tenha tido mais um "voto de encorajamento" e menos um de "desencorajamento".

3. Há que ter em atenção a evolução positiva, que se confirma, do candidato eslovaco e a sustentabilidade do candidato sérvio. Ambos são "da região" que era, à partida, tida como origem desejável do próximo SG.

4. O fator género parece estar por ora diluído, pelo menos no tocante à lista de candidatos em presença. 

5. A grande questão está em saber se, na próxima votação, os dois candidatos "da região" se aproximam ou não de Guterres. 

6. Se isso não acontecer, as hipóteses de Guterres sobem exponencialmente e, a menos que haja uma surpresa (veto russo ou chinês), ele será o próximo SG da ONU. É implausívrl, nessas condiçōes, que o veto surja de um dos três membros permanentes ocidentais.

7. Se tal aproximação, em matéria de encorajamentos, vier a acontecer, pode surgir a ideia de que se entrou numa situação de quase empate técnico. 

8. Nesse caso, e embora muitos observadores qualificados achem que já será tarde para tal, o surgimento "out of the blue" de um novo nome ganharia força. E esse nome é só um: a búlgara Kristalina Georgieva, vice-presidenge da Comissão Europeia, desbragadamente protegida por Jean-Claude Juncker nos últimos meses, sem que se tenha percebido bem se com o apoio discreto de que poderes europeus. Seria "da região"... e mulher! 

9. A contraciclo desta hipótese funciona o que se sabe ser alguma rejeição "misógina" em setores do mundo islâmico e não só, temerosos que uma SG mulher pudesse vir a forçar uma agenda com que não concordassem. Atendendo a que Georgieva só avançaria se tivesse a certeza do não-veto russo, só a China poderia protagonizar-se como grande obstáculo.

10. Espero estar redondamente enganado nas minhas preocupações e que o candidato português venha a ser o escolhido. Depois disso, mas só então, direi aqui o conjunto importante de razões pelas quais, para além da consagração dos méritos de António Guterres, considero que isso seria muito importante para Portugal e para a nossa presença no mundo.

Histórias


Um conhecido meu, há dias, estava em casa de uma família amiga e veio a propósito um qualquer episódio da História de Portugal. Um dos filhos dessa família revelou um surpreendente desconhecimento sobre um episódio muito conhecido da História de Portugal. O pai, um tanto embaraçado, justificou:

- Sabes, ele anda no ensino secundário numa escola inglesa e eles, no currículo, não "dão" História de Portugal.

Será assim? É autorizado ensino secundário, em território português, sem a transmissão desses conhecimentos? Alguém me pode informar se isto é verdade?

A minha Europa


Há dias, Jaime Gama disse do seu desagrado por ver setores políticos portugueses a assumirem um discurso negativista sobre a Europa, apelando à reconstituição do “arco europeu”, que assegurou a vontade para a integração e a mobilização para as três décadas de presença portuguesa no projeto. Com a autoridade de quem teve responsabilidades em momentos decisivos desse percurso, Gama sublinhou as virtualidades políticas do processo integrador e algumas das imensas vantagens que Portugal dele retirou.

Gama tem toda a razão e, olhando, mesmo que com uma frieza isenta de qualquer idealismo, para o leque das opções que Portugal tem perante si, em termos de inserção geopolítica, parece-me evidente que um projeto europeu é o único que, num prazo que vai até onde a nossa visão estratégica alcança, melhor defende os interesses portugueses.

Articular essa inserção europeia com a vertente atlântica e a dinamização possível do espaço lusófono, onde a proteção da diáspora se deve integrar, com o nosso particular olhar histórico para a África e o “Sul” em geral, sustentar a credibilidade que criámos na vida multilateral, terreno por exemplo essencial para uma “diplomacia do mar”, bem como aproveitar a nossa vocação de “honest broker” e de “produtor de segurança” através das nossas Forças Armadas – eis um programa de ação externa em que nos deveremos empenhar.

Mas voltemos à Europa, a qual, aliás, nos ajuda a potenciar muitos dos vetores da agenda atrás sintetizada. Costumo dizer, para arrelia de alguns, que sou tão europeísta quanto os interesses de Portugal o justificarem. Porém, repito, não dispensando o exercício de algum controlo nacional sobre a soberania partilhada no quadro europeu, não tenho hoje a menor dúvida de que é aí que os nossos interesses, enquanto país, melhor são defendidos. Creio que era a essa Europa que Jaime Gama se referia. Só que pode haver outras.


Como português, não sou europeísta de “qualquer Europa”. Se a Europa vier a transmutar-se num modelo de gestão centralizada, desigualizadora na proteção dos interesses dos diversos povos e Estados, um grande mercado monetário policiado pelo veto financeiro de alguns e desmunido de políticas fortes de solidariedade, assente numa matriz que garante a riqueza a uns pela persistência da falta de bem-estar de outros – essa não é a minha Europa. Não sou pela Europa “do mal o menos”, nem acho que Portugal deva assumir uma vocação europeia apenas “by default”. Somos um país que deve defender a preservação da democracia como elemento identitário dentro da Europa mas, igualmente, que deve bater-se para que a Europa seja, ela própria, regida por regras transparentes, democráticas, que preservem o princípio da igualdade soberana dos Estados. Essa é a minha Europa ou, para ser mais claro, é apenas a esse europeísmo que adiro – e não a qualquer outro.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, setembro 08, 2016

Mário Vilalva


Mário Vilalva despediu-se ontem, durante o dia nacional do Brasil, dos seus amigos portugueses. Imagino que tenham sido muitos os que foram dizer adeus à Vânia e ao Mário, na receção organizada na embaixada. Digo "imagino" porque, por um destes azares que as minhas ocupações de reformado me criam, tive um compromisso simultâneo inadiável que não me permitiu lá estar, como muito desejaria. E digo "muitos" porque conheço muito bem a excecional marca que este embaixador brasileiro deixou em Portugal.

Ser embaixador do Brasil em Portugal, ou vice-versa, é, além de uma exigente profissão de Estado, uma "arte". A intensidade do relacionamento bilateral pode criar a ideia de que se trata de uma função regida por regras óbvias, que tudo se passa com a naturalidade de uma "lua-de-mel" diplomática. Puro engano! Muitas vezes, somos mais exigentes com a "família" do que com os amigos e, também por isso, esta é uma "special relationship", como se diz noutras paragens. Se um dia me der para escrever sobre isto, é um longo volume...

Conheci o Mário quando cheguei ao Brasil, onde ele chefiava então o departamento de promoção comercial do Itamaraty. O seu trabalho era elogiado "urbi et orbi". Esteve depois no Chile, uma relação bilateral importante, antes de aportar por aqui, um país onde já tinha estado no início dos anos 90 e onde sempre se sentiu "como peixe na água". Pude testemunhar, em diversos círculos, como era escutado, respeitado e, o que é mais importante, como conseguiu ser a voz prestigiada do Brasil, num tempo nem sempre fácil para a imagem externa do seu país. O Mário Vilalva foi um exemplar embaixador brasileiro em Portugal.

Adeus, Vânia e Mário. Vamo-nos vendo por aí!

quarta-feira, setembro 07, 2016

A síndrome do Mandarim

Ontem foi Joseph Stiglitz, a plagiar João Ferreira do Amaral, dizendo que Portugal não tem futuro dentro do euro. Meio país ecoou o Nobel e o outro descreu na profecia. 

Hoje é Tony Barber que, só tendo agora recebido a difícil tradução do discurso do Pontal, fala da "tempestade perfeita" que pode aguardar a economia portuguesa, num interessante editorial do "Financial Times" que vai fazer a glória das Cassandras do comentário nos próximos dias (o que já aí vai de euforia oposicionista pelas redes sociais!). Texto que, aliás, ganha em ser bem lido até ao fim, isto é, até ao ponto em que fala da inconveniência absoluta para a Europa dessa hipotética conjugação climática.

No Mandarim, Teodoro tocava a campaínha e o mandarim morria na China. Aqui são o Project Syndicate e o FT que "matam" à distância, uma espécie de "drones" mediáticos.

Arrefecer

Lisboa está a arrefecer. Aos poucos. Sopra um vento leve, setembrino, que põe acalmia na caloraça infrene que nos dominava os dias e noites. Temos tendência a ter estados de alma sobre o tempo: "Que belo dia!" ou "que dia chato!", quando, na realidade, se as coisas nos correm bem ou mal, até os maus dias passam a bons e um sol de "National Geographic" pode servir de cenário para uma neura. Hoje, repito, de um momento para o outro, neste final de tarde, Lisboa arrefeceu. É bom? É mau? É a vida, como dizia o outro.

"Voyeurisme" político

Cada um falará por si, mas quero dizer que quase sempre tenho alguma curiosidade em ver dissecados, a posteriori, episódios polémicos do quotidiano político, que a espuma dos dias deixou para trás de forma inconclusiva. Casos portugueses e não só.

Às vezes, em especial no estrangeiro, isso é feito por algum jornalismo de investigação, mais ou menos competente. Porém, na grande maioria dos casos, essas coisas ressurgem só através de memórias, com a limitação desses relatos unipessoais raramente fugirem a uma leitura parcelar e interessada dos factos, quase sempre por forma a deixar o autor no "safe side" da questão. 

Vem isto a propósito do livro que Fernando Lima vai publicar nas próximas horas, onde aborda o seu tempo com Cavaco Silva em Belém, como assessor para a comunicação social, depois de o ter acompanhado ao tempo de primeiro-ministro, período de que deixou um relato não excessivamente excitante.

A grande curiosidade em torno deste novo livro não será tanto a sua acrimónia final face ao antecessor de Rebelo de Sousa (para quem gosta de andar à cata das coscuvilhice que tanto anima certa imprensa) mas, essencialmente, a luz que o texto possa vir a deixar sobre o famoso caso das acusações de "vigilância" de S. Bento a Belém, nos idos de 2009. 

Por isso, ao contrário de alguns amigos, que seguramente rejeitarão o livro com a mesma convição com que (como eu) rejeitavam fortemente o "cavaquismo", irei ler com muita curiosidade o texto. 

Há dias, uma personalidade conhecida, dizia-me: "tu não serves de orientação em matéria de leituras, porque lês tudo". Não é verdade, antes fosse. O que eu leio é "de tudo", dando clara preferência àqueles com que sei, à partida, que não vou concordar.

Keith Vaz


Às vezes sublinho por aqui ligações pessoais a figuras que conheci e cujo trajeto futuro veio a tornar mais conhecidas, por carreiras de sucesso. Hoje vou num sentido um pouco distinto.

Keith Vaz, antigo responsável britânico pelos Assuntos europeus no governo de Tony Blair, com quem mantenho uma boa e antiga relação de amizade, foi forçado a afastar-se do seu lugar de deputado na Câmara dos Comuns, para onde tinha sido sucessivamente eleito, desde há cerca de 30 anos, por se ver envolvido num escândalo com contornos menos simpáticos.

Ao Keith, um homem caloroso e muito agradável, que me fala sempre com orgulho das suas raízes goesas, deixo aqui um abraço de solidariedade pessoal. A vida continua, embora agora de forma diferente.

Suíça

Jogar bem e ganhar é normal. Jogar bem e perder é azar. Jogar mal e perder é normal. Jogar mal e ganhar é ser campeão europeu.

terça-feira, setembro 06, 2016

Costa e o Brasil

Uma nota rápida mas, pelos vistos, necessária.

Nenhuma, repito, nenhuma leitura restritiva dos contactos que o primeiro-ministro português venha a ter com as autoridades brasileiras, durante a sua estada no país, tem a menor, repito, a menor legitimidade. 

É sabido que, no seio das forças políticas que apoiam o governo, a começar pelo PS, há muito quem pense que o afastamento de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer à presidência brasileira são atos feridos de irregularidades. Cada um é livre de pensar o que quiser sobre o assunto. Só que isso é, em absoluto, irrelevante para a política externa portuguesa. 

Portugal não se relaciona com regimes políticos, relaciona-se com Estados. Era o que faltava que estados de alma de natureza político-ideológica, assentes em leituras constitucionais exteriores da situação política brasileira, viessem a projetar-se, ainda que ao de leve, nesse imenso tecido histórico que hoje constitui a importante malha do relacionamento luso-brasileiro. 

O Ministério português dos Negócios Estrangeiros, pela voz avisada do seu ministro, já disse o que precisava de ser dito. Assunto encerrado, pois.

Dos mitos pouco urbanos

Hoje, durante um jantar, um estrangeiro que eu tinha acabado de conhecer fez-me uma pergunta curiosa: "Então é verdade que o vosso primeiro-ministro conseguiu um truque parlamentar para governar sem maioria?".

Esclareci-o que, nas últimas eleições, o PSD foi o partido mais votado e o PS o segundo. Como manda a Constituição, o presidente da República convidou o líder do PSD a formar governo. Este organizou um governo com outro partido, o CDS, e esse governo não conseguiu aprovação na Assembleia da República, porque teve contra si o voto conjugado de todos os partidos da oposição, que, conjuntamente, têm mais deputados que PSD e CDS somados. Nestas condições, e como sucede em todo o mundo (aconteceu, por exemplo, em Espanha), o líder do PS, o segundo partido mais votado, foi convidado a formar governo. Contrariamente ao líder do PSD, que havia arranjado um parceiro de coligação, o PS decidiu fazer um governo sem recorrer a coligações, garantindo para ele, por um acordo parlamentar, apoio político por parte dos dois restantes partidos, que com ele haviam derrubado o governo do PSD/CDS. É esse governo mono-partidário que hoje está em funções, mantendo o apoio desse dois outros partidos.

"Mas não foi isso que me disseram as pessoas com quem eu falei! É verdade que eram todos conservadores, mas a ideia que me deram é que havia uma clara ilegitimidade na constituição deste governo". Expliquei que a única "questão" poderia ser a quebra da "tradição" do partido mais votado chefiar sempre o governo. Esse partido, contudo, teve a sua "chance" de procurar uma maioria e não conseguiu concretizá-la, por falta de apoio parlamentar.

"A ser assim, não há nada de estranho! Pelo que você me explicou, acho mesmo um abuso e uma distorção dizerem que há uma "ilegitimidade" no vosso governo. É um absurdo!". Disse-lher ser da mesma opinião.

O meu interlocutor acrescentou: "Dizem-me que o vosso novo presidente é muito popular e que vem da ala conservadora, não é". Confirmei a popularidade e, quanto à vinculação política, reafirmei que ele é mesmo um orgulhoso militante e fundador do PSD e, que eu saiba, não entregou o seu cartão de filiado. "Mas ele tem poderes para dissolver o parlamento e convocar novas eleições?" Disse-lhe que sim, claro. 

"Então há qualquer coisa que não estou a perceber bem: se todos os meus amigos conservadores me falam da "ilegitimidade" deste governo (embora você já me tenha explicado que não houve nenhuma ilegalidade formal), se o novo presidente é oriundo da ala conservadora e tem hoje forte apoio popular, porque é que ele não aproveita para convocar eleições e assim tentar fazer regressar ao poder os seus amigos políticos?".

Não resisti: "Talvez porque ele demonstra bom senso e porque você é que anda por cá em muito más companhias..." 

segunda-feira, setembro 05, 2016

"Out of Africa"

O nosso embaixador naquele país africano de língua portuguesa ficou preocupado com as consequências que a declaração solene daquele alto responsável político local pudessem vir a ter nas relações com Portugal, que, desde há algum tempo, atravessavam um momento menos bom. 

O político, num contexto formal, a que a comunicação social dera forte destaque, recomendara aos concidadãos que se abstivessem de se deslocar a Portugal, nomeadamente em férias e, se possível, também em negócios. O nosso país era referido como "hostil" e "não recomendável" para os cidadãos dessa ex-colónia. 

Que significado isso tinha? Haveria algumas medidas que pudessem vir a afetar a TAP? Ou os negócios? As coisas não ficavam claras. E o embaixador, ao encerrar o expediente na embaixada, nessa sexta-feira, deve ter pensado para consigo mesmo: vamos para fim de semana e depois logo se vê, na velha lógica de que o tempo, às vezes, acaba por resolver as coisas.

No sábado de manhã, nesse tempo em que não havia telemóveis, o telefone retiniu na residência do embaixador, a minutos de ele partir para a praia. Era um seu colaborador. "Lá temos chatice!", deve ter pensado, também na consabida (e sempre confirmada) regra de que a maioria dos problemas nas embaixadas "caem" nos fins de semana.

Do outro lado da linha telefónica, a voz "sorridente" do diplomata júnior que o chamava sossegou-o. O jovem pretendia apenas informar o embaixador de que, bem cedo nessa manhã, lhe haviam batido à porta, solicitando com urgência um visto de entrada em Portugal, no passaporte diplomático de uma senhora, mulher de um importante político, que desejava deslocar-se nesse mesmo dia a Lisboa. O curioso é que a senhora era, nada mais nada menos, do que a mulher do político que, menos de 24 horas antes, recomendara um feriz "boicote" à terra lusa. Ironias...

Há pouco, na livraria do Apolo 70, lá estava ele, o político, de iPhone no ouvido, em traje estival, com alguns "bodyguards", a folhear as últimas edições. Lisboa é uma bela cidade para férias e negócios, não é?, tive vontade de perguntar-lhe...

domingo, setembro 04, 2016

Fui à festa!

A Festa do Avante é uma grande romaria laica. Os santos têm vindo a perder fulgor e o eixo da fé caiu há uns tempos com um muro, lá para o meio da Alemanha. As músicas populares que animavam os romeiros, dos primeiros tempos, deram lugar a sonoridades de grupos de vanguarda, sempre com uma pitada nacional, para manter uma referência à tradição. Quem por lá vai nos dias de hoje é uma mistura simpática de gente, tão diversa que, no ano passado, ficou por esclarecer uma triste trapalhada homofóbica, com a complacente cumplicidade da imprensa.

Não foi apenas o calor que fez com que não me desse para passar este ano pela Festa do Avante. Foi o sentimento de que, não obstante ter uma simpatia residual pelo sonho que leva muitos cabelos  brancos a confiarem nos amanhãs que cantam, aliados a uma juventude militante cujo entusiasmo não  me foi ainda dado entender, aquela mensagem é-me já um pouco alheia. Mas, este ano, teria uma curiosidade: fazer a exegese do discurso equilibrista do PCP, na sua qualidade membro da "geringonça". Não deve ser fácil estar e "não estar" no poder. Amanhã vou ler Jerónimo de Sousa e olhar a cara de Arménio Carlos e Mário Nogueira. "Pode alguém ser quem não é?", cantava Sérgio Godinho. Se calhar, pode.

Mas, afinal, fui à Festa ou não? Claro que fui. Fui à festa de aniversário de um grande amigo e, no final, cantou-se a Internacional com a letra do "Parabéns a você!". Ou seria vice-versa? É uma grande confusão? Lá isso é, mas teve muita graça, talvez mesmo muito mais do que a Festa do Avante.

sábado, setembro 03, 2016

O défice, a dívida e a Europa

Fala-se que o défice público de 2016, pelos menos aquele que é relevante para as contas europeias (isto é, sem contar com a recapitalização da Caixa), pode ficar bem abaixo dos 3%.

Acho extraordinário como ninguém destaca que um défice de 3% - ou mesmo de 4% ! - face ao produto seria sempre, historicamente, um défice fantástico, não para o padrão teórico convencionado pela ortodoxia dominante, mas para quem tem alguma memória.

(Uma nota: quando se diz que a recapitalização da caixa "não tem efeitos no défice" dever-se-ia ponderar que, em rigor, o serviço dessa nova dívida surgirá projetado nesse défice, isto é, no "que conta" para a Europa).

Mas, contraditoriamente, algo estranho o olhar embevecido que se lança para o número sincrónico do défice, como se dele dependesse toda a nossa felicidade, embora reconheça que dele depende a possibilidade de sairmos do procedimento europeu de défices excessivos, o que não é pouco, pelo impacto no acesso ao mercado de capitais. 

O nosso défice, nas condições de (não) sustentabilidade que hoje tem, faz-me lembrar aquele peso "magnífico" a que conseguimos chegar depois de dez dias sem beber álcool, consumir açúcar e comer pão e farináceos: começamos logo a pensar poder comprar camisas "slim fit"... Para comemorar, fazemos um jantar excecional (em termos financeiros, são as "reposições" da "geringonça"). E lá vamos nós para nova "engorda" até ao "check-up" bruxelense do ano seguinte.

Então não há saída para este dilema? Há. Excluídas as receitas extremas da austeridade (redução e quebra de qualidade da máquina do Estado, cortes nas pensões e salários públicos - lembrando que o rácio despesa pública/produto, em Portugal, nem sequer é dos mais elevados da Europa), resta atacar a questão da dívida. Sendo a dívida (a amortização e o seu serviço) o grande fator desta pressão sobre o défice, é aqui que reside o principal problema português (e não só português).. 

Não há nenhum - repito, nenhum! - cenário de futuro em que seja plausível que a nossa dívida venha a ser paga de forma quantitativamente significativa. Tal como sucede, todos os dias, com os grandes clientes dos bancos, há momentos em que, para os credores, faz muito mais sentido perder parte do capital e garantir a subsistência de um devedor, cuja capacidade de recuperação, nessas novas circunstâncias, possa garantir futuros retornos e, no caso dos países, uma presença no mercado de comércio e serviços propiciadora de futuros lucros, num ambiente de maior bem-estar e prosperidade nacionais (crescimento, emprego, menores tensões sociais), criador de condições sólidas para o investimento. Toda a gente sabe isto!

Porque a questão da dívida não pode ser resolvida de forma relevante num quadro negocial exclusivamente nacional (com as "trocas" de dívida, com as retificações de taxas ou com a mudança de algumas maturidades - ou com uma reclamação política de "reestruturação" da dívida nacional, como gostaria irresponsavelmente a "esquerda da esquerda", o que condenaria Portugal a um isolamento trágico e penalizante), pode dizer-se que só num contexto global europeu é que este que é o principal problema da vida nacional tem condições para começar a ser resolvido. 

Se há hoje um grande dossiê da nossa política externa, esse é o da dívida.

sexta-feira, setembro 02, 2016

Foi ali!


Como diria José Hermano Saraiva, foi exatamente ali, naquela mesa da direita, numa tarde de início de Verão, que tudo se passou, segundo vários testemunhos recolhidos. 

O casal, chegado do almoço na Pensão Mondego, à época uma rotina muito vulgar em algumas famílias de Vila Real, gostava de ocupar aquela mesa de canto, na Pastelaria Gomes. Eram ambos bastante baixos e anafados, ele mesmo rotundo, mas sempre de peito feito, como se uma farda se lhe colasse ao corpo, em permanência. Não se pode afirmar que fossem figuras populares na cidade, talvez porque a procurada gravidade do cavalheiro não induzia automaticamente uma onda de simpatia. Durante quase uma hora, por ali ficavam, as mais das vezes sozinhos, ele lendo o jornal com os óculos na ponta do nariz, ela quase sempre acabando por dormitar um pouco, para o que encostava a cabeça para trás, junto à grade que separa do "primeiro andar", que se pode ver na imagem que ontem colhi.

A partir daqui, os cronistas divergem em preciosismos metodológicos, convergindo, contudo, no resultado final. Numa versão, um dos ocupantes da mesa de cima terá tido a ousadia de atar uma sediela de pesca desportiva a fios da cabeleira da senhora, fixando a outra ponta na grade divisória. Noutra, teria sido fita-cola ou cola-tudo que, discretamente, terá colado o cabelo à grade. A versão mais benévola, e que entendo aliás como mais consentânea com a brandura dos costumes dos frequentadores do café, favorece a tese de que a cabeleira da senhora, num tombamento para trás durante um momento de sono, se terá ensarilhado de modo natural, e sem a intervenção da mão humana, numa das circunvoluções da grade. 

Provavelmente, a História nunca será servida, de forma incontroversa e definitiva, pela verdade dos factos. O anais da tradição oral urbana apenas registam, sem a menor sombra de dúvida, que a senhora, ao mover a cabeça para se levantar da mesa, terá ficado com a cabeleira - que era afinal um imenso postiço - presa à grade e, à vista da cidade social que a Gomes representava, terá exposto, espera-se que por escassos mas sem dúvida marcantes instantes, toda a careca que o artefacto cuidava pudicamente em resguardar. 

O abafado das gargalhadas que o episódio provocou em algumas mesas permanece, ainda hoje, na memória auditiva das testemunhas do evento, que o evocam com sorrisos (lamentavelmente) jocosos, alguns dos quais, "à la limite", poderiam indiciar que a tese da intervenção humana exterior colheria alguma credibilidade. Passaram quase cinco décadas sobre o episódio e, para além da prescrição objetiva do presuntivo delito, manda a discrição que não se tente aprofundar eventuais suspeitas. A bem da amizade.

Dinheiro em Caixa


Faço uma declaração afetiva de interesses quanto à Caixa Geral de Depósitos. Entre outras razões, porque para ali entrei, por concurso público, há muitos anos, naquele que foi o meu primeiro emprego. 

O banco do Estado representou sempre um indispensável instrumento da política pública na área económico-financeira, para quem, como eu, não cultiva a sacralização da “mão invisível” reguladora do mercado. Por isso, a crise que a Caixa atravessou recentemente não me deixou indiferente, quase tanto quanto as pulsões para a sua privatização, ideia quase criminosa face ao interesse público, se pensarmos naquilo que está a ser a desertificação da presença nacional na banca que resta por aí. 

O governo obteve uma vitória importante no processo de recapitalização da Caixa, que permitirá superar a fragilidade conjuntural revelada nos recentes testes de “stress”. Se isto fosse um país com memória, o executivo anterior deveria ser chamado à responsabilidade pela incúria com que tratou a Caixa – por exemplo, mentindo descaradamente ao país quanto à existência de uma possibilidade efetiva desse reforço de capital, sem efeitos no défice, para efeitos das contas europeias.

Se o dossiê recapitalização correu bem, já o da nomeação da nova administração foi envolvido em escusadas trapalhadas, jogando na praça pública, por incompetência indesculpável, com personalidades respeitáveis, que não mereciam esta incúria política.

Dir-se-á que tudo acabou em bem e que, agora, há que partir para um tempo novo. Não me parece. Por muito que isso possa incomodar alguns, desejosos por passar uma esponja sobre os tempos idos, eu, como contribuinte investidor, quero exercer aquilo que os franceses chamam o “direito de inventário” sobre o que se passou na Caixa, que conduziu à situação que agora se pretende superar.

Eu e todos os portugueses – repito, contribuintes investidores – temos o direito a saber, preto no branco, quais a responsabilidades exatas do condomínio PS/PSD, com algum CDS à mistura, que dominou a Caixa nas últimas décadas. Desde logo porque, nessa gestão politizada, houve gente competente e outra que o foi menos – e não podem todos ser medidos pela mesma rasa. 

Os portugueses têm o direito de saber, com nomes e números, quem foram, nos anos que prejudicaram a instituição, os responsáveis pelos créditos concedidos sem as necessárias garantias, se houve motivação política nessas decisões, se aconteceram, e porquê, grandes perdões de dívida e quem são hoje os principais devedores incobráveis – alguns dos quais andam por aí de costas direitas, com ar de gente séria.

A Caixa é uma coisa demasiado importante para que os erros de quem por lá passou possam ser iludidos, numa espécie de voluntária amnésia para absolver os vícios políticos do sistema. E, se o governo e alguns partidos se mostrarem relutantes a fazê-lo, o presidente da República deveria lembrar-lhes essa responsabilidade. O país ficaria grato.

quinta-feira, setembro 01, 2016

Diana


Num dia, creio que de 1992, entrei no San Lorenzo, um restaurante italiano em Beauchamp Place, em Londres, para almoçar com um amigo inglês. Encontrei-o de pé, junto ao balcão do bar, logo na entrada, e comentei: "Bela escolha de restaurante! É aqui que a princesa Diana costuma vir".

Semanas antes, tinha vindo a público, na "popular press", que a mulher do príncipe Carlos era amiga da dona do restaurante, de que era regular frequentadora. Quase um ano depois, as más línguas, a começar pelo biógrafo Andrew Morton, espalharam que o restaurante servia a Diana como "eixo" para encontros extra-conjugais.

O meu amigo não sabia nada disso. Mas, nem um minuto era passado, arregalou os olhos e disse: "Está a entrar a princesa Diana!". E era verdade. A senhora, como às vezes acontece, era mais bonita ao vivo do que em fotografias. Sentou-se com uma amiga numa mesa, connosco com o almoço positivamente perturbado pela coincidência.

Voltei a vê-la duas vezes mais. Numa receção em Buckingham Palace, quando sopesou a Cruz de Cristo que Duarte Ramalho Ortigão trazia ao pescoço (eu tinha outra igual, mas ela "escolheu" o Duarte, vá-se lá saber porquê) e perguntou ao embaixador Vaz Pereira porque não tinha também aquela bonita comenda, o que o levou a responder, com a habitual graça: "I'm working for it, Your Highness!". Depois, por último, no jantar que Mário Soares ofereceu à raínha Isabel II na nossa residência, em Belgrave Square, um dos escassos lugares estrangeiros em Londres onde a soberana se desloca e, muito provavelmente, a única manifestação que sobrevive da "Oldest Alliance".

Diana tinha um olhar suave e sedutor, que sempre comparei à trajetória de algumas bolas "puxadas" de ping-pong: descia e voltava a subir em direção ao interlocutor. Parecia frágil e, de facto, era. 

Passam agora exatamente 19 anos sobre a sua morte, num acidente no túnel de Alma, em Paris, sobre o qual está uma escultura de uma chama dourada que, embora nada tendo a ver com o desastre da princesa, recolhe diariamente as flores de quem dela gostava. Hoje, deve estar cheia delas.

Aqui fica uma fotografia igual à que ela dedicou aos seus dois grandes amigos Maria Lúcia e Paulo Tarso Flecha de Lima, embaixadores brasileiros em Londres, que me recordo de ver então na sua residência.

O "whataboutism"

Os anglo-saxónicos (que raio de fórmula para o que antes eram, simplesmente, os ingleses) criaram um belo conceito, quase que diria que dedicado ao espírito português: o ""whataboutism". Entre nós poderia ser traduzido por "e-atão-o?".

O "whataboutism" é a imparável tendência para, quando argumentamos com uma coisa, nos virem logo com outra. Fala-se dos erros dos gestores do PS na Caixa e, logo, os "pêesses" saem com "e então os do PSD?", como se os pecadilhos de uns pudessem absolver os dos outros.

Há minutos, coloquei no Facebook uma graça estival aos juristas, categoria em que tenho quase mais amigos do que pessoas conhecidas. De imediato, surgiram reações, algumas façanhudas outras com "fairplay", contra os diplomatas, até com exegeses curriculares em apoio. 

Que ferro!, como diria o Eça, bacharel de direito e diplomata nas horas (felizmente) vagas da escrita. 

O jeitinho brasileiro

Se um dia reencarnar, quero ser jurista. O que eles se divertem!

Ontem, no processo de destituição de Dilma Rousseff, a imaginação jurídica fez com que o processo de votação, a partir de certa altura, incidisse em dois items diferentes. Através do primeiro - que era o objetivo principal - a presidente foi afastada com a maioria de votos requerida. No segundo - como que em auto-absolvição compensatória da violência da primeira medida - os senadores aceitaram que Rousseff pudesse exercer cargos políticos nos próximos oito anos. (A argumentação "humanitária" para esta última medida foi curiosa: ela necessitaria de meios para viver, assumindo-se assim a política como o único "emprego" que lhe era possível ter).

Neste "jeitinho" jurídico, os legisladores brasileiros, aceitaram aquilo que parecia um gesto inócuo, quase caridoso, face à presidente cessante. E, no entanto, ao fazê-lo, deliberadamente ou não, abriram uma espetacular "caixa de Pandora". Rousseff pode não ser nos dias de hoje a mais popular pessoa do Brasil, mas, ao ter visto reconhecida a sua "ficha limpa" para o exercício futuro de cargos políticos, ficou com a porta escancarada para poder vir a ter a sua "revanche" face a Temer. Este, segundo toda a imprensa, terá ficado furioso com o expediente jurídico, que pode dar uma segunda vida ao seu ódio de estimação - e a intervenção que fez depois da posse foi clara prova disso.

Não há como ser jurista para poder fazer das coisas aquilo que der mais "jeitinho" ao momento.

Lápis azul?

Foi um momento triste e revelador.

Na apresentação dos títulos das primeiras páginas dos jornais de hoje, na RTP 3, cerca da uma da manhã, a locutora, por duas vezes, iludiu deliberadamente, na análise (quase) exaustiva feita à 1a página do jornal i, o destaque que este jornal dá a uma declaração do jornalista Luís Marinho, em que este tece comentários sobre a RTP, de cujos quadros deixa agora de fazer parte.

Um gesto que deixa muito mal na fotografia a RTP.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...