Um amigo que muito prezo, escreveu um texto delicioso sobre o Acordo Ortográfico, sob o título em epígrafe, que lhe pedi que me deixasse publicar por aqui. Ele aí vai:
"Para
que fique bem clara a minha posição sobre o Acordo Ortográfico: percebo que este
dispositivo interesse aos Ministérios dos Negócios Estrangeiros para dar uma
imagem de cooperação entre os países de língua portuguesa. Se tivesse sido eu a
escrevê-lo, teria a seguinte formulação:
Artigo
único:
Reconheçam-se como válidas, em todos os
países da CPLP, as normas ortográficas em vigor nos restantes países.
Esta
formulação permitiria que o uso de qualquer variante ortográfica não pudesse
ser penalizado ou considerado ilegítimo em qualquer país de língua oficial
portuguesa ou em qualquer contexto de uso da língua.
Esta
não foi a opção de quem negociou o Acordo Ortográfico, tendo sido preferida uma
versão que tenta unificar a ortografia.
Quem
me conhece sabe que não consegue arrancar de mim nenhuma posição inflamada a
favor ou contra o Acordo Ortográfico. Sei que a ortografia é uma mera
convenção, que nenhuma versão da nossa ortografia foi coerente entre
transparência ou etimologia e que esta e outras versões de instrumentos de
normalização ortográfica têm problemas técnicos já assinalados por vários. Não
me parece que a versão 1990 seja pior ou melhor do que a versão 1945 – basta
pensar no uso do hífen. É apenas uma convenção – o facto de “hospital” se
escrever com em português e sem em italiano não tem
qualquer consequência.
Muito
do debate em torno do Acordo Ortográfico rasa o absurdo e descreve as
consequências da sua aplicação como algo próximo do Armagedão. Há dados que me
fazem manter-me longe deste debate.
Sempre
que sai uma notícia num jornal sobre o Acordo Ortográfico, surgem centenas de
comentários de leitores que, horrorizados, listam os horrores do Acordo
Ortográfico em mensagens pejadas de erros ortográficos.
Ouvia,
há tempos, alguém que tinha escrito “nada a opôr [sic]” vociferando que não
retirava o acento circunflexo, porque se recusa a escrever com o Acordo
Ortográfico, que sempre escreveu assim e não vai mudar!
O
mesmo, tal e qual, ouvi de alguém que, num programa de rádio, dizia: “não é por
causa dos brasileiros que vou tirar a cedilha de vocês”!
A
obsessão com a ortografia e tudo o que se diz sobre o seu impacto no mundo é a
consequência de uma escolarização em que as produções escritas são, tradicionalmente,
corrigidas em função de desempenhos temáticos e ortográficos. Coesão e
coerência, conformidade com sequências textuais ou explicitação de regras de
pontuação são dimensões da escrita a que a escola nunca prestou a devida
atenção, que justificam muitos problemas de escrita (e leitura) e que explicam
que se dê tanta importância à ortografia.
Tratando-se
apenas de uma convenção, a ortografia não gera penalizações. Se eu escrever a
minha lista de compras para o supermercado com inúmeros erros, ninguém saberá
e, mesmo que saiba, nada acontece. Só no sistema educativo é que há penalização
do erro e é interessante verificar que a introdução do Acordo Ortográfico no
sistema educativo se deu sem problemas.
Se é
verdade que a ortografia é uma mera convenção e que quem redigiu o Acordo visou
uma unificação da ortografia, também é verdade que qualquer pessoa minimamente
informada sobre as variantes do português deveria saber que as diferenças
fundamentais entre o português usado em Portugal, no Brasil, Angola, Moçambique
não estão na ortografia. Tente-se escrever um texto em conjunto com um colega
brasileiro e veja-se como se tropeça em cada linha. Há um evidente
desconhecimento da língua portuguesa na génese de algumas decisões políticas, o
que é confrangedor.
Passados
vinte anos sobre a criação deste Acordo, não são ainda evidentes os passos
claros que a CPLP está a dar para uma eficiente política de língua. Para dar
apenas um exemplo, ainda não se vislumbra uma política comum sobre o ensino de
português no estrangeiro.
Dito
tudo isto, alguns amigos que conhecem esta minha posição (ou ausência de
posição), perguntam-me se uso ou não o Acordo Ortográfico. Comecei a usar no
dia em que li um arrazoado de argumentos nacionalistas e de comentários
racistas sobre os restantes países da CPLP a propósito do Acordo Ortográfico.
Pensei que não queria ser identificado com aquele tipo de argumentação e nesse
mesmo dia passei a utilizar, sem grande dificuldade, a nova convenção
ortográfica (nunca senti aquela insegurança de que alguns falam, dizendo “Agora
não sei como se escreve”).
Passados
alguns meses, participei numa reunião em que, em defesa do Acordo Ortográfico,
ouvi um eminente académico tecer comentários absolutamente nacionalistas e a
rasar o racismo... Fiquei sem saber o que fazer e, pela primeira vez, me
deparei com a hesitação de não saber como escrever.
Cresce
em mim a vontade de reagir de forma adolescente e não usar o Acordo quando
escrevo àqueles que o defendem ferozmente e usar quando escrevo aos que são violentamente
contra. Mas, por vezes, tenho de escrever a ambos e, nessa altura, penso: isto
é apenas uma convenção, para quê gastar tempo a pensar no assunto?
Se
se tivessem ficado pelas minhas duas linhas, ter-se-ia poupado muito tempo...
João
Costa
PS:
Ao reler o texto, apercebo-me de que, por vezes, o Acordo Ortográfico não tem mesmo
importância nenhuma na forma como se escreve. E garanto que não foi
intencional.