Há poucos anos, em Lisboa, a NATO estabeleceu o seu novo "conceito estratégico". Como acontece sempre com este tipo de documentos, ele traduz necessariamente um compromisso sincrónico entre várias perspetivas e diversas geografias de interesses. Assuma-se ou não, este "conceito" NATO dependeu essencialmente da nova filosofia americana sobre o mundo, fruto conjugado do ambiente pós-11 de setembro, das esperanças de poder encaminhar o espaço muçulmano para um diferente futuro institucional e daquilo que se pressentia poder vir a ser o modelo de enquadramento da Rússia num compromisso global de estabilidade. Os europeus, todos eles, carrearam para o texto as suas limitadas ambições como eterno ator secundário, desde logo a começar pela UE, esse poder vocal que, à falta de músculo militar, se anda a tentar convencer a si próprio de que pode exercer um papel de "soft power", armado dos seus instrumentos económicos, sacudidos pela fragilidades recentes.
Muito mais rapidamente do que, há uns escassos anos, se poderia legitimamente estar à espera, o mundo mudou - e não no melhor sentido. Para além da continuação da cobardia euro-americana em fazer frente à recorrente chantagem israelita (o que, aliás, já teve mais importância como potenciador de descontentamento no Médio Oriente do que tem hoje), o "mundo NATO" começou por perceber as suas limitações na intervenção nos processos árabes, com o "fracassado êxito" da Líbia, com a total incapacidade de ser minimamente relevante na Síria e com o (já discreto e hipócrita) esbracejar perante o regresso da ditadura ao Cairo. No Afeganistão, a NATO contentou-se em ser "carro vassoura" dos EUA, país com o qual o diretório europeu partilha o "diálogo crítico" com o Irão nuclear, um Estado que, ironicamente, conseguiu ganhar tempo para ser hoje chamado a participar no quadro de resolução do atoleiro iraquiano. Ao que obriga a "realpolitik" do petróleo!
Mas é o caso da Ucrânia, e a revelação fria do modo como a Rússia de Putin II olha o seu "near abroad", que parece ser o banho de realismo de que a NATO necessitava para entender que o documento estratégico aprovado em Lisboa já está mais do que datado. Essa constatação autoriza-nos a revisitar abertamente os instrumentos institucionais que regularam o fim da guerra fria, bem como os compromissos deles recorrentes em matéria de colocação de armamentos convencionais. Mas isso deve ser feito preservando um forte sentido de realismo e de responsabilidade. Quero com isto dizer que essa reflexão deve afastar-se claramente de quaisquer perspetivas aventureiras, em especial sopradas por quem, no Leste do continente e da organização, já deu sinais de pretender transformar os seus medos e os seus traumas na linha diretriz da futura relação com Moscovo. Não temos a menor obrigação de tomarmos como nossas as fobias estratégicas dos outros, salvo se elas se revelarem relevantes para a nossa própria leitura do quadro de segurança em que acreditamos. A NATO é uma organização de defesa. Isto significa que pode ter de sacrificar vidas dos seus soldados para proteger os seus objetivos. Nem um tiro poderá ser disparado - até porque se sabe que seria sempre o primeiro de muitos - se não corresponder a necessidades imperativas da nossa defesa. Repito: imperativas.
Nos dias de hoje, a NATO e a Europa necessitam de olhar para Rússia com grande frieza. Devem perceber que estão perante um poder cujo maior risco é poder ter tentações imediatas de ação que não são controladas por um processo decisório interno equilibrado pelos "checks and balances" que caraterizam as democracias. Pelo contrário, estão marcadas por um poder autoritário tanto mais perigoso quanto dispõe de uma forte popularidade interna. Mas a NATO também deve compreender que não lhe podem ser indiferentes (e os não podem tratar como irrelevantes) os temores que hoje alimentam as atitudes de Moscovo. Por isso, mais do que nunca, "medidas geradoras de confiança" têm de ser tentadas e implementadas e é necessário um esforço multilateral nesse sentido.
Se da reunião ministerial da NATO, em setembro, no Reino Unido, sair apenas uma linguagem jingoísta, como aquela que o seu atual secretário-geral se entretem desde há meses a espalhar, com "cara de caso", para "assustar" os russos, não iremos a lado nenhum. Os setores mais razoáveis da NATO necessitam de dizer aos russos que devem ajudar a irganização a fazer uma leitura real daquilo que são as suas verdadeiras pretensões. Respeitando os seus atendíveis interesses e confrontando com firmeza as suas ambições desrazoáveis.
Seria importante que, desde já, percebêssemos o que Portugal pensa sobre isto, sem necessáriamente surgir como um discreto "master's voice" do parceiro transatlântico. Muito da "batalha" futura com o autoritarismo moscovita, que veio para ficar, passa por este mar atlântico onde não somos um parceiro menor. Já perdi a esperança em que isto seja percebido no Restelo. Ainda conservo algum residual atentismo de que, nas Necessidades, alguém esteja acordado para isto. Mas posso estar a ser inocente.
Seria importante que, desde já, percebêssemos o que Portugal pensa sobre isto, sem necessáriamente surgir como um discreto "master's voice" do parceiro transatlântico. Muito da "batalha" futura com o autoritarismo moscovita, que veio para ficar, passa por este mar atlântico onde não somos um parceiro menor. Já perdi a esperança em que isto seja percebido no Restelo. Ainda conservo algum residual atentismo de que, nas Necessidades, alguém esteja acordado para isto. Mas posso estar a ser inocente.