sexta-feira, janeiro 21, 2011

Agustina

Durante três dias, tem lugar em Paris um colóquio sobre Agustina Bessa Luis, numa organizaçao da Sorbonne (Paris III) e do centro cultural Gulbenkian, com apoio do Instituto Camões.

Um alargado grupo de especialistas revisita a obra da escritora, numa perspetiva pluridisciplinar, à qual igualmente é dedicada uma exposição patente na Casa de Portugal, na Cité Universitaire de Paris.

Ontem, durante a abertura da conferência, tivemos oportunidade de ouvir uma magnífica lição do professor Arnaldo Saraiva, que nos trouxe a sua perspetiva sobre a relação de Agustina com o Porto. O orador, que conviveu profundamente com a autora, deu-nos conta de alguns dos seus traços de caráter, da sua frontalidade crítica e do modo como isso se repercute em muitos dos seus textos, neste caso no que respeita ao Porto e à idiossincrasia.

Alguém me dizia, depois da conferência, que quem conheceu Agustina ficou, com toda a certeza, com uma ou outra história dela, da sua forte personalidade e da agudeza do seu espírito. Deve ser verdade, porque não fui exceção.

Creio que em 2005, Agustina foi ao Rio de Janeiro, no âmbito da atribuição do prémio Camões. Durante um descontraído almoço, a que estavam presentes Lygia Fagundes Telles e Ruben Fonseca, tive uma animada conversa com a escritora, ao lado de quem fiquei. Recordo-me de que me falou de Manoel de Oliveira, e de curiosos episódios no âmbito do trabalho conjunto que fez com o realizador e seu velho amigo, para um determinado filme. Nessa mesma noite, ao chegar ao hotel, acompanhado pelo professor Helder Macedo, que também visitava o Brasil, cruzámo-nos com Agustina, que estava com Adriano Jordão, o nosso conselheiro cultural no Brasil. Cumprimentámo-la e o Helder comentou: "Diga-me lá, Agustina, como é que consegue esse prodígio de só ter amigos, de não ter inimigos?" Agustina deu uma gargalhada sonora e, rápida, retorquiu: "Não tenho inimigos? Mas, olhe!, quando quero, faço-os, pode crer!".

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Linguagem diplomática

Uma amiga francesa, professora universitária de medicina, teve um encontro no "Quai d'Orsay" - como, simplificadamente, aqui se identifica o ministério "dos Estrangeiros" da França. Tratava-se de constituir uma delegação a uma certa reunião internacional. A certo passo, ficou chocada quando verificou que a delegação iria ter duas componentes: a diplomática e a técnica, tendo sido incluída nesta ultima. Para ela, era quase ofensivo ver-se qualificada como "técnica". "De início, pensei que o conceito se aplicava às secretárias, aos motoristas ou, no máximo aos especialistas de informática", disse-me.

Perguntou-me se, em Portugal, procedíamos da mesma forma. Confirmei-lhe que sim e, devo confessar, inicialmente eu próprio fiquei surpreendido com a questão que me colocava, com a surpresa dela. Depois, pensando um pouco melhor, refleti que esta dualidade, tida entre nós como natural, pode por alguns ser lida numa perspetiva descriminatória.

A propósito, lembrei-me de que, um dia, disse a alguém que, no MNE, aguardávamos uma resposta dos "ministérios sectoriais" a uma determinada questão. "Dos ministérios quê?" - retorquiu o meu interlocutor. "Sectoriais", sublinhei eu, com toda a naturalidade. "Essa agora! Então e o MNE não é sectorial? O que é? É global?". De facto... 

Há vícios corporativos que é difícil de perder. "Liturgias da casa", como dizia um velho embaixador.

Invasões francesas

Não sei se é impressão minha, mas tenho a sensação de que, maugrado alguns esforços pontuais muito louváveis, em 2010 não se foi tão longe quanto se deveria ter ido, em Portugal, na lembrança das Invasões Francesas, no bicentenário da terceira campanha militar.

Na breve abertura que ontem fiz ao lançamento, que, com o Instituto Camões, promovi na Embaixada, do livro do historiador português Manuel do Nascimento, "Troisième Invasion Napoléonienne au Portugal (Bicentenaire 1810-2010)," lembrei que foram essas ações militares que forçaram a sua partida da corte portuguesa para o Brasil, a aceleração da independência desse território e o impacto desses acontecimentos no futuro do nosso país, sem esquecer o que isso significou como o início do fim do nosso "ancien régime".

As dezenas de pessoas que encheram (e fizeram transbordar) o auditório, tiveram a oportunidade de ouvir uma magnífica palestra do professor e historiador Yves Léonard, que fez a apresentação da obra, durante a qual detalhou, com grande profundidade, as diversas dimensões das invasões, desenvolvendo uma curiosa análise, complementada por outros intervenientes no animado debate que se seguiu, sobre o perfil dos líderes militares franceses que chefiaram as operações, o qual não deixaria de ter uma grande relevância para o modo como essas campanhas acabaram por decorrer. Em particular, o professor Léonard contextualizou historicamente esse esforço militar no binómio estratégico franco-britânico e peninsular, destacando também os aspetos mais relevantes do trabalho de recolha e tratamento histórico levado a cabo por Manuel do Nascimento.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Eduardo Barroso

"Um cirurgião é um cidadão que pratica, com regularidade, atos ilegais: atentados contra a integridade física das pessoas. Porém, tem uma especial derrogação para o fazer, com vista a salvaguar um bem maior, que é a vida dessas pessoas".

Ouvi ontem esta definição, de um modo entre o formal e o irónico, na boca do presidente da Académie Nationale de Chirurgie, por ocasião sessão solene anual da instituição, durante a qual teve lugar a entronização, na qualidade de membro estrangeiro, do cirurgião português Eduardo Barroso - uma distinção rara conferida por esta importante associação, que acolhe todas as sumidades das especialidades cirurgicas.

Foi gratificante para o representante diplomático portugues poder estar presente na consagração pública de um compatriota prestigiado, cujo curriculum profissional e científico foi, na ocasião, sublinhado com grande ênfase.

Hoje vamos comemorar na Embaixada, com alguns dos seus amigos franceses e portugueses, esta hora de glória de Eduardo Barroso. E, no final, com a discrição que as circunstâncias (desportivas, claro!) justificam, vamos igualmente fazer um voto de saúde ao nosso comum Sporting, pelo sucesso de uma operação que o possa revitalizar e, por essa via, alegrar os seus amigos.

Comentários

Não me perguntem porquê, mas mais de uma dezena de comentários, inseridos nos últimos posts, desapareceram. Mistérios da internet...

(Vamos a ver se, mesmo fora de ordem, se conseguem recuperar alguns comentários, através de um registo paralelo)

Notícias da família europeia

Transcrito de uma notícia no "Financial Times" de hoje:

- "As obrigações do tesouro portuguesas subiram acima dos 7% (...) após se terem acentuado as preocupações de que a crise da 'eurozona' pode piorar, na sequência dos comentários de Wolfgang Schauble, o ministro alemão das Finanças".

- "Ralf Preusser, chefe do 'European Rates Research' na BofA Merrill Lynch Global Research, disse: 'Cada vez que os decisores políticos vêem uma melhoria no sentimento dos mercados, mesmo se em antecipação de medidas de natureza política, eles pensam ter uma justificação para recuar no apoio a ser concedido. O mercado funcionou positivamente por virtude das esperanças criadas de que haveria significativas mudanças no tamanho e no âmbito do Fundo europeu de estabilização financeira. E isso não se concretizou'. Os comentários do sr. Schauble atingiram também outros mercados perféricos de obrigações, com as taxas de juros a subirem drasticamente na Grécia, na Irlanda e num leilão de obrigações na Bélgica".

Assim vai a família europeia, vista, à distância, de Londres.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Europa

É sempre estimulante ouvir falar Hubert Védrine, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, no governo de Lionel Jospin. A sua leitura da Europa e do mundo aparece marcada, nos dias de hoje, por uma dose de realismo que quase roça o cinismo (embora etimologicamente, cinismo esteja muito longe de querer dizer o que hoje aparenta: cínico seria alguém que teima em dizer não e em abalar o conformismo, o que cola melhor a Védrine).

Ontem à noite, num grupo de amigos, Védrine fez um elogio rasgado de Barack Obama, que considera uma personalidade extremamente inteligente e muito mais avançado do que a América contemporânea - o que, a seu ver, pode justificar muitas das dificuldades políticas que enfrenta e os obstáculos que vai ter de ultrapassar para ser reeleito. Obama terá interiorizado já que os EUA só poderão ambicionar a ter uma "liderança relativa" do mundo - um conceito redutor de poder que os atuais americanos estão ainda longe de poder aceitar.

Sobre as relações EUA-Europa, Védrine é de opinião que os europeus não perceberam a "agenda" sob a qual Obama foi eleito, que tem essencialmente a ver com a saída da crise social interna e, no plano global, com o dédalo estratégico em que a administração Bush envolveu o país, nomeadamente na zona do Golfo. Daí a "desilusão" provocada deste lado do Atlântico pela pouca importância dada por Obama à Europa, onde a não existência de problemas prementes conduz, naturalmente, à desaparição em Washington de uma desnecessária retórica de proximidade prioritária, de que nem sequer Londres já beneficia.

Muito curiosa foi a fórmula que Vérdrine utilizou para caricaturar o modo como os americanos olham para o processo integrador do "velho continente", onde dão preeminência quase absoluta ao reforço e estabilidade da NATO. A União Europeia, para os EUA, não sendo levada a sério como entidade política com identidade própria ("e há alguma razão para que devessem ter uma ideia diferente?") é vista como uma espécie "departamento económico da NATO", razão pela qual, aos olhos de Washington, não há nenhuma razão para que as fronteiras (europeias) de ambas não coincidam (daí a insistência na entrada da Turquia para a UE).

Mais do que poder dar ou não razão a Védrine quanto a esta visão americana, talvez nos devamos interrogar, cada vez mais, sobre se há uma real razão para que o outro lado do Atlântico nos olhe assim.

Ainda os escritores

Já aconteceu a algum dos leitores deste blogue entrar numa refeição, com diversos convidados, e, dentre eles, vir a calhar a seu lado, precisamente, o autor do livro que na véspera começou a ler? Pois foi isso que me ocorreu, hoje, com Michel Houellebecq, autor do "La Carte et le Territoire", obra vencedora do prémio Goncourt de 2010. Como tive o azar da minha leitura andar ainda pelas páginas 50 e tal, quase não me atrevi a falar-lhe do livro...

Um dia, no Rio de Janeiro, numa das minhas frequentes visitas à Academia Brasileira de Letras, fui apresentado a um dos seus 40 "imortais", o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Trata-se de um cronista fascinante, que uma ou duas vezes por semana escreve deliciosos textos no "Estado de S. Paulo". Ao tempo que vivia no Brasil, eu não perdia nenhum. Por coincidência, uma semana antes desse encontro, tinha acabado de ler uma sua autobiografia, intitulada "Quase memória". Disse-lho. O escritor, com o ar benevolente de quem acredita pouco que os diplomatas possam ler muito, retorquiu: "Ah! sim? Espero que tenha gostado..." E passou adiante. Aí eu insisti: "Diga-me uma coisa! Ao ler o livro fiquei com uma curiosidade: quando fala daquela falsa viagem do seu pai a Itália, para enganar os amigos, isso passou-se mesmo assim?". Cony abriu muito os olhos, "viu-me" pela primeira vez e exclamou: "Oh! Mas o embaixador leu mesmo o livro?!".

Quero ter a ingenuidade de pensar que, por esse instante, a profissão diplomática, em geral, me ficou a dever o favor de poder tê-la feito subir um pouco na consideração de um dos grandes das letras brasileiras.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

António Lobo Antunes

Simplesmente comovente é como posso qualificar o espetáculo "Estado Civil", a que ontem à noite assisti no  espaço do MC93, em Bobigny, nos arredores de Paris. Feito a partir do texto de uma entrevista dada por António Lobo Antunes à jornalista Maria Luísa Blanco, editada em 2002, o trabalho traça, de forma criativa e com uma simplicidade cénica muito rica, o percurso pessoal do escritor, ligando extratos das conversas a textos das suas obras e cartas. É um retrato vivo do Portugal contemporâneo o que acaba por resultar deste excelente espetáculo, onde as memórias familiares de infância (de uma infância em que todos descobrimos traços que nos são comuns) e os traumas evidentes de um percurso profissional dedicado a mentes perturbadas se somam às inquietações eternas da memória lusa da guerra colonial, tudo visto à luz dessa bizarra melancolia, saudosa e torturada, que parece ser o nosso eterno destino e, quem sabe?, o segredo do "esplendor de Portugal", que Lobo Antunes ironicamente celebra num dos seus livros.

Durante todo este primeiro semestre de 2011, diversos textos e pretextos servirão para celebrar a genialidade do escritor, numa temporada teatral (e não só: haverá leituras, gastronomia e muito mais , neste conjunto de eventos intitulado "Ce soir je n'y suis pour personne sauf pour António Lobo Antunes") de 50 sessões organizadas pelo MC93, dirigido por Patrick Sommier, uma estrutura de criação cultural independente que, para o efeito, se aliou à editora francesa de Lobo Antunes, Dominique Bourgois. "Estado Civil" é o primeiro espetáculo dessa série, a poucos dias do lançamento da 25ª tradução francesa do autor. 

domingo, janeiro 16, 2011

Noite em Budapeste

Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio. Eu acompanhava-os, bem como o meu amigo András Gulyás, o conselheiro diplomático do presidente húngaro, que conhecera, há quase 20 anos, em Luanda.

Substituindo nessa viagem o ministro dos Negócios Estrangeiros, eu havia estado com Jorge Sampaio, horas antes, num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões da NATO iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se compreensivelmente tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci esse olhar. 

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade. Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de história, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Portugal, como todos reconhecem, comportou-se de forma impecável perante os países que eram candidatos à integração. A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia, preside aos seus destinos, desde há dias. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro. Göncz, hoje com 89 anos, deixou a presidência há mais de uma década. 

Com todo o respeito pelas instituições de cada Estado, constitui hoje uma nossa obrigação comum velar para que os valores que subscrevemos no quadro dos tratados europeus - na esfera da democracia, da liberdade, do respeito pelos direitos fundamentais e da preservação do Estado de direito - sejam observados, sem restrições, em todo o espaço da União. De Lisboa a Tallin, passando por Budapeste, claro.

Em tempo: o meu amigo András Gulyás, a quem este post entretanto chegou, escreveu-me a recordar o encontro que relatei. Os blogues também servem para reencontrar velhos amigos.

sábado, janeiro 15, 2011

Tunísia

As reações, em geral cautelosas, particularmente da comunidade internacional ocidental, face às mudanças em curso na Tunísia estão a ser interpretadas de forma negativa por certos setores com expressão mediática, nomeadamente aqui em França. Alguns comentadores interpretam as declarações de poderes políticos externos, que começam a exprimir alguma simpatia com a nova onda democrática tunisina, como um mero exercício de cinismo ou mesmo de hipocrisia, atentas as relações que a generalidade desses poderes mantinha com o regime deposto de Ben Ali. E,  em especial, condenam a falta de uma aberta atitude de apoio, desde a primeira hora, àquilo que parece poder ser um novo tempo político no país, iniciado na rua e com expressão já nas instituições.

Acho que devemos ser prudentes e ter o sentido da medida das coisas. O regime deposto na Tunísia, cujo perfil político não oferecia dúvidas a ninguém, era o interlocutor reconhecido da comunidade internacional. Não eram desconhecidas as suas limitações em matéria de respeito pelos Direitos Humanos ou pelos princípios democráticos, mas era-lhe igualmente creditado um esforço de desenvolvimento económico e social, embora com um saldo seguramente distribuído de forma condenável. Mas a Tunísia não era - longe disso! - um "pária" no mundo internacional. Pelo contrário era, no seio do mundo árabe, um parceiro com o qual, por exemplo, a União Europeia mantinha um diálogo estruturado - o qual incluía, como é bom que se saiba, uma chamada regular de atenção para questões tão importantes como os presos políticos ou a liberdade de informação. Se os países democráticos, europeus ou não, só mantivessem relações com Estados que respeitam a pureza dos princípios democráticos e outras práticas que são caraterizadoras do Estado de direito, o seu universo diplomático seria muito reduzido. O diálogo com regimes "diferentes" constitui um elemento essencial do quadro diplomático internacional - e isso não é cinismo, é mero realismo, só condenado por quem nunca teve responsabilidades em matéria de relações externas.

Mas posso também perceber que alguma da hesitação da comunidade ocidental tenha, por detrás, uma outra preocupação: o receio de que um certo tipo de evolução política possa abrir a porta à emergência, em termos de influência ou poder, das forças integristas islâmicas, cuja progressão no seio da sociedade tunisina Ben Ali tinha combatido. É este, muito provavelmente, o dilema que atravessa alguns Estados amigos da Tunísia. Os quais, no entanto, estarão seguramente muito interessados em ver emergir, a partir do novo poder político em Tunis, uma sólida democracia, respeitadora dos grandes princípios que marcam a comunidade ocidental e geradora de um efeito benéfico extra-muros, induzindo o respeito pela vontade popular noutros países da região. Se possível, sem serem necessários os elevados custos humanos que a revolta do povo tunisino está a ter de suportar.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

"A última missão"

Nos idos de 1974, creio que no mês de Agosto, era eu adjunto da Junta de Salvação Nacional, fui um dia apresentado a um oficial pára-quedista que tinha como missão estruturar um grupo de milicianos que, no quadro da "intelligence" militar, deveriam refletir sobre a realidade nacional. Vinha convidar-me para integrar esse núcleo, que ficaria sediado no Palácio da Ajuda, onde hoje é o ministério da Cultura. Lembro-me de ter hesitado, por várias razões. Acabei por fazer parte do grupo em Outubro de 1974, já depois da desaparição da Junta.

Esse oficial era o major Moura Calheiros, um homem de fala suave e sorriso sereno e, ao que sei, também então estudante em "Económicas". O grupo viria a ser composto por gente muito diversa, curiosamente com orientações políticas bem distintas, do então PPD ao MES, do PS ao CDS, alguns sem partido conhecido. E, curiosamente, que eu saiba, ninguém do PCP. Profissionalmente, havia de tudo: futuros diplomatas, como o João Lima Pimentel e eu; economistas, como Agostinho Roseta, António Romão, Brandão de Brito, António Alves Martins, Carlos Figueira, Junqueira Lopes,  Jorge Calheiros, António Luís Neto; engenheiros, como Armando Sevinate Pinto ou Otto Uwe Leichsenring; licenciados em Direito, como Abel Gomes de Almeida, Rocha Pimentel, Sampaio Caramelo ou Alexandre Pinto Monteiro. Mas também um psicólogo, Vitor Moita, e um jornalista, Simões Ilharco, bem como pessoas oriundas de outras áreas profissionais. Durante alguns meses, nesse setor da 2ª Divisão do EMGFA, dirigido pelo depois general Gabriel Espírito Santo, produzimos vasta reflexão sobre o país mutante em que então vivíamos, "briefávamos" diariamente os nossos superiores e preparávamos textos de análise para a chefia da Revolução. Depois do 11 de Março, esse serviço foi extinto e seguimos vias militares diferentes, em especial no "verão quente" que se seguiu. Antes de sermos todos "mandados para casa", no segundo semestre desse ano, porque os milicianos já não eram necessários. 

Ao longo do ano de 1975, fui encontrando o major Calheiros pelos corredores do MFA, em dias exaltantes e noites exaltadas. Já funcionário diplomático, tive ecos das dificuldades da sua tarefa no âmbito dos pára-quedistas de Tancos, no quadro do 25 de Novembro.  Nunca mais ouvi falar dele.

Há semanas, li uma referência a um livro seu. Foi-me difícil adquiri-lo. São quase 700 páginas de uma memória dos tempos da guerra colonial, tendo como pretexto a sua integração numa missão de resgate dos restos mortais de companheiros, caídos em combate na Guiné. É um texto de tocante simplicidade, que revisita - com olhos de profissional militar, mas com uma visão humana muito serena e compreensiva - os tempos da luta e os seus ambientes, comparando figuras e situações de ontem e de hoje, da sociedade da África descolonizada e do que sobreviveu da memória de Portugal nesses palcos da nossa última aventura pelo mundo.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Nós e a Europa

A convite de uma tertúlia que mensalmente ouve um palestrante durante o almoço, dei ontem, em Lisboa, a minha perspetiva sobre o estado da Europa, o seu papel no mundo e o lugar de Portugal nesse cenário.

O grupo convidante era constituído, na sua maioria, por figuras conhecidas do nosso meio empresarial, entre os quais alguns antigos responsáveis por pastas governamentais. Era um ambiente saudável e dialogante, onde se cruzavam linhas ideológicas diversas - um ambiente que tenho pena, enquanto cidadão, que não se reproduza ao nível da sociedade política portuguesa, nos tempos de dificuldade que são os nossos.

Durante a discussão que se seguiu às minhas palavras, senti uma generalizada perplexidade quanto ao futuro do projeto europeu, sobre a capacidade de sobrevivência do euro e mesmo algumas dúvidas sobre a nossa possível política de alianças, nesse contexto. Verdade seja que o caráter algo interrogativo da minha intervenção também não foi de molde a proporcionar muitas pistas animadoras. Deixei, contudo, muito claro que entendo que a Europa continua a ser o nosso destino prioritário e inevitável, não obstante também considerar que a situação atual justifica um maior esforço de diversificação de laços e de interesses, no quadro da nossa política externa. Exatamente como está a ser feito.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Tribo peninsular

A cena passa-se nas Nações Unidas, nos anos 80. Foi-me contada, há dias, por um dos  ilustres protagonistas. À luz das convenções mais contemporâneas, pode haver quem a considere "politicamente incorreta". Mas eu arrisco.

Um grupo de trabalho sobre questões africanas suspende os trabalhos por uns minutos. Dois diplomatas, um espanhol e um português, trocam graças e, num presumível "portuñol", demonstram uma cumplicidade que surpreende alguns circunstantes.

Um dos diplomatas africanos, oriundo de um país fortemente dividido por conflitos étnicos, pergunta: 

- Os espanhóis e os portugueses, sendo vizinhos, não têm conflitos?

- Já os tivemos, e bem fortes, no passado. Mas isso já lá vai - responde o português.

- Sabes, nós, no fundo, pertencemos à mesma tribo - adianta o espanhol.

- Ah! São da mesma tribo! Assim já percebo porque é que vocês se dão tão bem! - conclui o africano.

terça-feira, janeiro 11, 2011

FMI (2)

Os efeitos de uma possível entrada do FMI (para sermos mais rigorosos, do "mecanismo de estabilização europeia", associado ao FMI) têm sido algo escamoteados entre nós.

Neste contexto, vale a pena anotar a perspetiva de José Manuel Correia Pinto sobre o "programa" político-económico que estará subjacente à vontade de alguns de verem as "receitas" do FMI aplicadas em Portugal:

"Qual é esse programa? A receita é conhecida. A pretexto de garantir recursos por um determinado período de tempo, aliás a juros bem elevados, o FMI arrogar-se-á o direito de exigir mais despedimentos, inclusive aqueles que agora não são possíveis, como na função pública; baixar os salários, incluindo o salário mínimo; limitar ao mínimo os apoios sociais ou mesmo eliminá-los, como será o caso do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego, etc.; liberalizar e embaratecer os despedimentos; acabar com o serviço nacional de saúde como serviço universal tendencialmente gratuito; onerar pesadamente o ensino, nomeadamente o superior; limitar os descontos das entidades patronais para a segurança social, estabelecendo igualmente um tecto para os descontos dos subscritores e para as próprias reformas, de modo a acabar com o princípio da solidariedade intergeracional e a abrir por esta via o caminho para a privatização da parte “rica”da segurança social; enfim, privatizar tudo que ainda houver para privatizar."

Será verdade?

As colónias e a censura

Nos tempos da ditadura, era estritamente proibida na nossa imprensa qualquer referência ao conceito de "colónias portuguesas". Toda a publicação periódica era sujeita a censura (mais tarde eufemisticamente designada como "exame prévio") e termos como esse eram zelosamente banidos de qualquer texto, pelos "coronéis" da rua da Misericórdia.

Um dia, a revista "O Tempo e o Modo", já numa sua fase politicamente radical, encontrou um método de contornar a proibição e decidiu utilizar o termo "colónias portuguesas" numa área da publicação por onde, seguramente, os censores não passariam os olhos: o preçário das assinaturas. Isso aconteceu apenas num único número (n.º 77, de Março de 1970), como a imagem seguinte documenta:

Desconheço os eventuais problemas que "O Tempo e o Modo" possa ter tido por esta divertida ousadia, que nunca vi referida, mas que aqui deixo registada.

"O Tempo e o Modo"* iniciou a sua publicação em 1963, sob a direção e propriedade de António Alçada Baptista, então uma interessante figura da intelectualidade católica pós-Vaticano II, proprietário da Moraes Editora. Dessa fase do nosso "catolicismo progressista", a revista começou a alargar-se à colaboração de setores socialistas e comunistas, os quais acabam por se tornar predominantes na sua orientação no final dos anos 60, já sob a direção de João Bénard da Costa. Em 1970, uma ainda maior radicalização acaba por colocar "O Tempo e o Modo" sob tutela de militantes maoístas, que conduzem ao desaparecimento da publicação. Com a "Seara Nova" e "Vértice",  contudo bastante mais antigas, "O Tempo e o Modo" integra o grupo das influentes e históricas revistas situadas na área da oposição ao Estado Novo.

*Alcipe revelou ontem, num comentário, uma saudável inveja bibliófica. Por este post fica informado que tem ao seu dispor (apenas para consulta, claro) a coleção completa encadernada de "O Tempo e o Modo". 

Português

"Desculpem, mas vou falar em português. Tenho muito orgulho em ser português" - José Mourinho, ontem, ao receber o galardão de "melhor treinador do mundo", atribuído pela FIFA.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

Rocha Vieira

Este é um post que preferia não ter de escrever, mas que, por uma questão de honestidade para comigo mesmo, entendo dever redigir.

O general Vasco da Rocha Vieira é uma personalidade militar e política que, não obstante conhecer mal pessoalmente, há muito me habituei a respeitar e considerar. Prestou elevados serviços ao Estado e tem uma notável folha de atividade pública, que o colocam, definitivamente, num patamar prestigiado da história da nossa democracia.

O jornalista Pedro Vieira é um amigo de há quase três décadas - conhecemo-nos numa passagem sua por Angola -, cujo profissionalismo sempre admirei, desde os tempos de "O Jornal" à "Visão", e com o qual mantenho uma excelente relação pessoal.

Agora, Pedro Vieira escreveu uma biografia de Rocha Vieira. Um livro apresentado numa bela edição da Gradiva, muito bem redigido, bastante documentado, sendo mais do que evidente que o biografado cedeu grande parte da informação ao biógrafo.

Rocha Vieira não necessitava deste livro, Pedro Vieira não necessitava de o ter escrito. Costuma dizer-se que elogio em causa própria é vitupério. E esta obra é elaborada num estilo laudatório que eu pensava já ter desaparecido, por onde perpassam ajustes de contas perfeitamente escusados, remoques que só apoucam o biografado, expressão de ressentimentos que, para mim, são muito pouco consentâneos com a imagem que eu tinha do general Rocha Vieira, a qual procurarei preservar, apesar deste livro. É um livro como uma visão totalmente unilateral, que dispensa, em absoluto, o contraditório, como se o que nele se afirma devesse ser tido como uma incontestável evidência. Em lugar de uma biografia, estamos perante uma hagiografia autorizada do general Rocha Vieira. 

Sei que o Pedro Vieira não vai gostar deste meu post. Mas ele também sabe que eu não escondo nunca o que penso e que, também aos amigos, digo sempre a verdade. E a verdade é que não gostei deste livro.

Diferenças

A televisão pública espanhola decidiu nunca mais transmitir touradas e, no seu livro de estilo, consagrou a tourada como uma forma de violência a que não é legítimo expor as crianças.

A RTP continua a ser a orgulhosa organizadora da "corrida RTP"  e a liderar um forte lóbi de propaganda tauromáquica nos "media" portugueses.

Cada televisão pública da península tem, assim, a sua ética. Diferente.

Coincidências

Ele há cada uma!

Há dois anos, mais ou menos por esta época, fui consultar um médico. Como cheguei cedo, fui para uma pastelaria próxima, fazer horas. Por lá apareceu um velho amigo meu, com quem troquei votos de bom ano. Desde então, só nos voltámos a ver, de raspão, num restaurante, há já muitos meses.

Voltei hoje ao mesmo médico, que, entretanto, mudou de local do seu consultório. No caminho, passei por um café. Lá estava aquele meu amigo*...

Caramba!

*Curiosamente, ele é um dos seguidores deste blogue

domingo, janeiro 09, 2011

Tintin e os polícias

Neste Natal, ao folhear*, numa casa de familiares, a edição portuguesa (pós-25 de abril) do álbum "Tintin na América", recordei o facto de um dia me ter dado conta de que a primeira aparição da história em Portugal havia sido objeto de uma discreta intervenção da censura. Já aqui havia falado do assunto, mas só agora posso documentar esse ridículo ato censório.

Hoje, dei-me ao cuidado de procurar, na coleção completa do "Cavaleiro Andante" (1952-1962), de que sou feliz proprietário, e lá fui encontrar, no nº 210, de Janeiro de 1956, a primeira imagem dessa história**. Olhem para ela:

O Estado Novo, na sua cuidadosa preservação das figuras da autoridade, entendeu não dever permitir que um polícia pudesse ser apresentado a fazer a continência a um gangster.

O "Cavaleiro Andante" optou também por uma tradução livre do texto original francês, que - já agora! - assim reza: "À Chicago, où règnent en maîtres les bandits de toutes espèces, un soir..." Talvez tivesse sido ponderada a necessidade de remeter para um prudente e bem qualificado passado essas mesmas aventuras. Não fosse dar-se o caso de, em 1952, alguém ter a veleidade de pensar que, noutras partes do mundo, pudesse haver "bandits de toutes espèces" a reinarem sob a proteção de polícias...

* Eu havia escrito "desfolhar", o que era um enormíssimo erro. Um leitor atento corrigiu-me, o que agradeço.

**Para os mais curiosos e conhecedores da obra de Hergé, noto que a história  tal como publicada no "Cavaleiro Andante" é claramente baseada na primeira edição do "Tintin en Amérique", que surgiu na revista belga "Le Petit Vingtième", em 1931, o que justifica a total diferença na coloração (a versão original era a preto-e-branco), para além de bizarros pormenores de "publicamente correto" que não vêm para o caso...

FMI

Anda por aí uma "escola" de pensamento fácil que é de opinião que a vinda do FMI em socorro das finanças portuguesas seria naturalmente desejável, por significar empréstimos a juros mais baixos dos que o que são praticados pelos mercados onde o Estado português se financia e, no essencial, representaria um sossego para estes. Essa "escola" - claro! - nunca se perguntou por que razão, se o cenário é assim tão róseo, todos os países mostram a maior relutância de terem de recorrer ao FMI.

Essa doutrina, que despreza, em absoluto, as dimensões de perda de soberania que o recurso a essa ajuda implicaria, para além do imprevisível pacote de medidas acrescidas de rigor que nos seria imposto, esquece um ponto essencial: a dívida mais importante com que Portugal se defronta - que não é a do Estado, mas a dos bancos nacionais - não seria abrangida por essa operação de "rescue". 

É estranho (será?) que poucos falem disto.

Vitor Alves (1935-2011)

Deve ser geracional: cada vez tenho mais mortos conhecidos.

Vitor Alves é um nome que, nos dias de hoje, pouco dirá a largos setores da opinião pública. Contudo, é pena que se não saiba que foi uma figura que muito contribuiu para a liberdade que abril nos trouxe, nessa magnífica aventura de 1974. Coordenador do programa do Movimento das Forças Armadas, era um homem sereno e de extrema cordialidade, um "cavalheiro" que, em diversas ocasiões, encontrei nos corredores da Revolução, com um sorriso simpático, um discurso e uma prática política de onde esteve sempre ausente qualquer radicalismo.

Um dia, no final dos anos 90, Vitor Alves procurou-me para tratar de assuntos profissionais, recordo-me que ligados à atividade de empresas nacionais em Marrocos. A conversa tinha condições para ser bastante breve. Num instante, vieram à baila os tempos do "verão quente". Os seus olhos brilharam e ali ficámos - o velho capitão de abril e o antigo oficial miliciano - a recordar gentes e factos desses tempos de esperança, por mais de uma hora. Nunca mais o vi.

sábado, janeiro 08, 2011

Ainda o WikiLeaks

Foi muito interessante o debate em que ontem participei na "Rádio Renascença", a convite de Marina Pimentel, a propósito do caso WikiLeaks, na primeira edição do novo programa "Em nome da lei". Durante quase uma hora, o juiz Eurico Reis, o professor universitário Luís Fábrica e eu próprio abordámos as consequências políticas e jurídicas do caso WikiLeaks.

No essencial, julgo que estivemos de acordo: tratou-se da divulgação de segredos de Estado, sujeita a procedimento criminal. E, na minha opinião, nenhum "interesse público", eventualmente arguível por alguns dados novos revelados nessa documentação, justifica uma devassa generalizada que põe em risco a segurança de Estados e dos seus servidores, que expõe interlocutores de boa fé e que cria um véu de suspeição sobre o exercício da profissão diplomática.

"Procedimento concursal"

Há semanas, uma colaboradora minha trouxe-me um documento para assinar onde se falava de "procedimento concursal". Tratava-se das regras para um concurso público. Recordo-me - e ela recordar-se-á também - que reagi levemente à utilização da expressão. Mas logo me foi evidenciado que se tratava de uma fórmula que vinha assim crismada num documento vindo "de Lisboa". Porque tinha pouco tempo, e talvez também pouca paciência para me preocupar com pormenores, lá assinei o papel. Mas fiquei a remoer o assunto...

Acabo de ler, no último número do "Sol", que o Pedro d'Anunciação (numa coluna não assinada, mas que destila a sua pena teclada) se insurge - e muito bem! - contra o termo "procedimento concursal". 

Meu caro Pedro: receio bem que já não vamos a tempo de evitar este esmagamento definitivo pelo "administrativês", essa espécie de degenerescente iliteracia criativa, que dá foros de lei a desnecessários neologismos, promovidos por alguns juristazecos "de trazer por casa".

No Partido

Há dias, fui à sede do Partido Comunista Português, na rua Soeiro Pereira Gomes. Só aí consegui adquirir a "Antologia Poética" de José Carlos Ary dos Santos, que um amigo brasileiro, há meses, insistentemente me pedia. Em todas as livrarias me diziam que a obra, das "Edições Avante!", estava há muito esgotada. Numa noite, ao ver na televisão uma declaração pública de um responsável do PCP, tendo como cenário de fundo o que me pareceu serem estantes de uma livraria, achei que essa poderia ser a solução para o meu problema. E foi.

Esta era a segunda vez que entrava numa sede do PCP. A primeira havia-me ficado bem gravada na memória.

Estávamos em Maio de 1974. Num jornal, apareceu a notícia de que o PCP iria abrir a sua primeira sede, numa certa noite, na rua António de Serpa (aquela que iria ficar eternamente crismada, na memória política portuguesa, como "a António Serpa", simplificando o nome do poeta). No texto, dizia-se que o partido, logo na ocasião da inauguração dessa sede, iria pôr à venda exemplares de documentos clandestinos editados durante a ditadura. Eu era, à época, um colecionador dedicado de publicações desse género, tendo já então uma apreciável coleção, a qual, naturalmente, ficaria muito enriquecida com o que o PCP viesse a disponibilizar.

Assim, ao princípio dessa noite, apresentei-me no nº 26, 2º E, da avenida António de Serpa. Atenderam-me com simpatia, dizendo-me que teria de aguardar por alguém, o responsável que ia pôr o material à venda. Os minutos foram, entretanto, passando. As salas, quase vazias de móveis, começaram a encher-se de pessoas, reconhecendo-se entre si. Eu tentava imaginar os encontros anteriores dessa gente, figurava as suas atividades no mundo clandestino dos comunistas, presumia alguns nas batalhas eleitorais em que se haviam envolvido, do MUD e de Norton de Matos a Humberto Delgado, de Ruy Luis Gomes à CDE. Mas, por muito que procurasse, nessas caras, figuras que tivesse encontrado no Congresso Republicano de Aveiro, na célebre sessão do Palácio Fronteira ou por ocasião da "Plataforma" de S. Pedro de Muel, eu não conhecia ninguém. E continuava sozinho. Até que, num certo momento, me dei conta do ridículo da situação.

Com efeito, ali estava eu, por um motivo mais do que fútil, numa festa que não era minha e que, para aquelas pessoas, era uma verdadeira ocasião histórica. Aquela era a data em que um partido que entrara na clandestinidade 48 anos antes, cujos militantes haviam sofrido como nenhuns outros a violenta repressão da ditadura, abria, na legalidade, a sua primeira sede. E eu era, nesse evento, um verdadeiro intruso. Começava a ter a sensação, porventura exagerada, que essa solidão já deveria estar a ser olhada com estranheza por alguns. Não procurava estabelecer contactos, com receio que alguém me perguntasse qual era a minha relação com o partido, que não era nenhuma. Discretamente, fui-me aproximando da porta de saída.

Foi então que dei, de frente, com uma cara conhecida, um antigo quadro do movimento associativo de Medicina, que eu cruzara em várias "guerras" universitárias, constando que estava ligado ao PCP. Olhou para mim, com algum espanto, sabedor que aquela não era a minha "praia" política, seguramente perplexo com a minha presença no seio dessa festa do "Partido" - como, à época, a maioria de nós designava o PCP. Imagino que devo ter feito uma risível figura, quando lhe expliquei: "Vinha aqui comprar "Avantes!" antigos, que li que iam ser postos à venda...".

quinta-feira, janeiro 06, 2011

Banco é Caixa

Em alguns círculos persiste a ilusão de que os diplomatas são uma casta regiamente paga, usufruindo de uma vida de luxo e, por essa razão, com vastos "cabedais", talvez colocados em paraísos fiscais. Se esses círculos verificassem, com regularidade, no "Diário da República", as ridículas reformas de embaixadores com cerca de 40 anos de serviço, talvez mudassem de ideias.

No início do ano passado, em Paris, caí por acaso num curioso ambiente de conversa. Uma noite, depois de um jantar, discutia-se, em casa de um magnate, a "tragédia" que era a progressiva transparência do mundo da banca, a qual, cada vez mais, impedia o tradicional refúgio em bancos da Suíça ou do Lichtenstein. Os meus interlocutores sentiam-se agora progressivamente condicionados na sua liberdade de investimento e condenados a regimes fiscais bem menos favoráveis do que aqueles a que estavam habituados.

A certo ponto da conversa, na qual, por razões que só para mim eram óbvias, eu me sentia algo isolado e em que não tinha intervindo, um dos circunstantes, um simpático aristocrata no ativo e riquíssimo industrial na reforma, voltou-se para mim e perguntou:

- E você, Francisco, em que país coloca os seus investimentos financeiros? Com a sua experiência diplomática, deve ter descoberto bons locais para investimento...

Soubessem eles o que eram os meus "investimentos financeiros" e a pergunta só surgiria por ironia. Mas não: falavam a sério, convictos da minha "riqueza". Assim, deu-me algum gozo, embora tivesse a consciência de que, nesse instante, baixava uns bons furos na escala de avaliação social do grupo, poder responder:

- Eu coloco todo o meu dinheiro em Portugal. O banco que mais uso é do Estado e chama-se Caixa Geral de Depósitos.

Nesse instante, tive a certeza que o meu pai, leal funcionário da Caixa entre 1930 e 1977, e que nesse ano de 2010, se fosse vivo, completaria a idade da nossa República, teria ficado orgulhoso com a minha resposta. 

Opiniões

Ele não conseguiu resistir e, na conversa com uma daquelas figuras que, na comunicação social, se pronunciam regularmente sobre todos os temas, por mais especializados que sejam, disse-lhe: "Eu estou quase sempre de acordo consigo, exceto quando conheço os assuntos".

terça-feira, janeiro 04, 2011

Vícios

Era um embaixador delicado, um pouco snobe, mas uma figura muito educada e agradável, que deixou um memória positiva e pedagógica na "casa".

Um dia, um interlocutor francófono perguntou-lhe se fumava. Respondeu:

"Je n'ai pas des petits vices. Je me garde pour les grands..."

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Seminário diplomático

O Seminário diplomático, que anualmente reúne, com os seus responsáveis políticos, os embaixadores e altos funcionários do MNE, tem tido vários modelos, desde que foi criado, creio que em 1994. Iniciado nas instalações do MNE (onde ainda não há um auditório!), mudou-se depois para o CCB e, mais tarde, para o Instituto da Defesa Nacional.

(Devo confessar que não é sem uma sensação algo estranha que sempre me sento naquelas cadeiras do IDN onde, há mais de 35 anos, estive presente em Assembleias do MFA e outras reuniões militares nos tempos do "verão quente", algumas bem agitadas...)

Ontem, para além das intervenções institucionais e de parceiros de profissão, tivemos dois interessantes painéis - um sobre a nossa presença no Conselho de Segurança das NU e outro sobre a situação económico-financeira - nacional, europeia e mundial.

Contrariamente a algumas outras ocasiões, devo dizer que dei por muito bem empregue as várias horas passadas a ouvir exposições feitas por um excelente grupo de conferencistas. Faz muita falta, a quem, como nós, está espalhado pelo mundo, receber estes "banhos" periódicos de informação qualificada.

Otimismo!

Pelo seu otimismo (com "p", mas lá o perderá, daqui a uns tempos...), gostei deste cartão do meu amigo João Paulo Bessa.

Leiam o seu blogue aqui.

domingo, janeiro 02, 2011

O outro défice

O cenário era o balcão do "Tosta Fina", o lugar geométrico dos grandes pequenos almoços em Vila Real. Ontem. Os interlocutores eram dois recém-trintões, bem na vida, seguramente com muitas cilindradas à porta.

- É pá, já viste o pessoal que marou em desastres? - disse um deles, mostrando uma notícia do JN sobre as vítimas de acidentes de tráfego desde o Natal.

- É, há muito gajo que não devia guiar. São uns nabos.

- Bom, estes já não guiam mais... (risos alarves duplos)

Pausa para o croissant com fiambre e o sumo de laranja. A bica final reabre a conversa:

- Onde é que foste no fim-de-ano?

- À Corunha.

- Como é que fizeste? Vieste por Chaves?

- Não, pá! Vim por dentro. Em Espanha é uma chatice, não se pode andar, têm bófia à toca por todo o lado, nas estradas. E aquilo é a doer. Só quando se chega à fronteira é que o pessoal pode largar. De Valença cá, foi um tirinho. E tu, onde foste?

- Fui à Estrela. Agora é fácil, com a A24. Consegue-se colar aos 200, muitas vezes. É sempre a bombar. E aqui não há chuis, é porreiro.

Quando me dizem que o principal problema português é o défice orçamental dá-me vontade de rir. Pouco.

sábado, janeiro 01, 2011

A linha branca

Aquele embaixador era conhecido pelo seu "mau feitio", pela sua tendência para uma fácil conflitualidade. Homem radicalmente conservador, era, no entanto, culto e inteligente, um profissional competente por quem eu me habituara a ter consideração. Também por outra razão: dizia sempre o que pensava, doesse a quem doesse. E isso é muito raro.

Quando entrei na chancelaria da Embaixada que ele chefiava, num certo país candidato a membro da União Europeia, fez-me alguma estranheza uma linha branca, com cerca de dez centímetros de largura, que atravessava o corredor, uns metros adiante do seu gabinete. Porque as minhas preocupações do dia eram maiores que a curiosidade, logo esqueci o assunto.

No dia seguinte, ao passar de novo pela Embaixada, não resisti:

- O que é aquela faixa branca, ali no chão?

- É uma linha de segurança - responde-me, sério, o embaixador.

- De segurança?

- Ao fundo daquele corredor fica o arquivo e o serviço de cifra. Os funcionários da Embaixada que não têm nacionalidade portuguesa não podem atravessar aquela linha. Quem o fizer, pode ter sanções disciplinares. Você perceba: no fundo, eles ainda são todos comunistas...

Olhando para a evolução política entretanto ocorrida naquele país, agora já membro pleno da União Europeia, deviam ser os últimos.

Paulo Lowndes Marques (1941-2011)

Tenho para ler, na estante virtual das obras em atraso, "O Marquês de Soveral - seu tempo e seu modo", a biografia do mais conhecido diplomata português na corte britânica, escrita por Paulo Lowndes Marques. Há dias, quando aqui falei brevemente das relações luso-britânicas, lamentei não ter o livro à mão. E não sei se o Paulo estaria 100% de acordo com o que publiquei, ele que era, sem a menor dúvida, uma das pessoas, em Portugal, mais conhecedoras do tema. E isso não me era indiferente.

Paulo Marques morreu hoje. Filho de uma cidadã britânica que refletiu, por escrito e de forma original, sobre a atitude dos seus concidadãos para com Portugal, Paulo Marques dedicou-se bastante à dimensão histórico-cultural desse relacionamento. Advogado de prestígio, foi um constante pilar para a manutenção da boa ligação entre os dois países. 

Conheci Paulo Marques quando ele foi secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, por um breve período. Anos mais tarde, quando fui para Londres, fui seu inquilino, arrendando um apartamento que aí possuía. Um dia, por uma razão que não vem ao caso, foi preciso mudar o contrato. Achei então que tinha de lhe dar algumas garantias acrescidas, pelo que lhe enviei um texto muito elaborado, com detalhes de alteração preciosistas. Paulo Marques telefonou-me e deu-me esta lição: "Por favor, Francisco, basta-me a sua palavra!".

Era assim, Paulo Marques, que deixará de mandar aos seus amigos, pelo Natal, a regular publicação com que celebrava a sua alegria de viver com os outros.

sexta-feira, dezembro 31, 2010

Europa - 25 anos

Faz hoje precisamente um quarto de século (já!) que Portugal ingressou nas então Comunidades Europeias, mais tarde chamadas União Europeia. 

Uma publicação do gabinete do Parlamento Europeu em Portugal, intitulada "25 anos de Integração Europeia", a editar dentro de alguns dias, vai recordar esse trajeto.

Por lá deixo, como muitos outros, um curto depoimento, que intitulei "Os limites da integração": 

O pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias foi a decorrência óbvia do novo curso político do país, no período subsequente à Revolução de 1974, pela necessidade sentida, por pressão das forças então emergentes como dominantes, de garantir que o Portugal democrático pudesse ganhar um espaço no seio de uma cultura política internacional de sucesso. Quem teve a força política para decidir essa opção sentiu que ela poderia, não apenas proporcionar apoios materiais a um mais rápido desenvolvimento económico e social do país, mas, igualmente, trazer um eficaz enquadramento para a consolidação, em moldes congéneres aos dos Estados já então membros, do modelo político que pretendiam implantar no país - assente em instituições democráticas e na economia de mercado. Não foi, por isso, uma opção política neutra, razão pela qual certos setores partidários então reagiram, porque pressentiram que ela iria condicionar definitivamente a dinâmica política do país.

A presença de Portugal nas instituições comunitárias acabou por ter um efeito muito importante sobre a nossa vida coletiva. Para além de induzir uma cultura de modernidade, nas mentalidades e no quotidiano material, bem como forçar algumas dinâmicas de reforma que o processo político interno dificilmente teria condições para gerar autonomamente, Portugal conseguiu com isso atenuar, embora não colmatar por completo, os efeitos do longo percurso de periferização, face ao centro europeu, a que a ditadura tinha condenado o país. Olhando em perspetiva, pode hoje concluir-se que, se acaso não tivesse ingressado nas instituições europeias em 1986, o nosso país teria tido necessidade de efetuar um esforço muito superior de adaptação, para poder integrar um dos alargamentos europeus posteriores, com muito menos vantagens materiais do que as que então obteve.

A experiência da nossa presença nas instituições europeias também nos mostra, contudo, que o voluntarismo tem os seus limites e que há idiossincrasias que não são mutáveis por mera pressão enquadradora externa, que há vícios e formas de comportamento que vão para além dos mecanismos políticos a cuja observância nos comprometemos. Se foi possível a Portugal introduzir as mudanças necessárias à adaptação ao Mercado Interno e à criação de condições sincrónicas para a entrada na moeda única, a verdade é que isso não induziu a interiorização de um cultura comportamental de rigor, suscetível de fazer perdurar no tempo, e maturar nos efeitos, as vantagens da nossa pertença ao “clube”. 

Olá, Bartolomeu!

Há uns anos, por estas horas, estaríamos a caminho das sintrenses escadinhas da Fonte da Pipa. A Fernanda já se tinha encarregado de preparar as sólidas vitualhas que alegrariam o nosso colesterol e, pela enésima vez, eu ter-te-ia pedido perdão por uma dessas noites te ter presenteado com um Chivas "marado". Depois, entraríamos na descoberta desse ambiente, sempre igual mas sempre diferente, que o teu incontável grupo de amigos constituía - da família aos que nela entravam, dos cineastas aos arquitetos, dos pintores aos senhores das letras, dos professores às "troupettes" da Slade, dos fotógrafos aos muito fotografados, dos simples mortais (como eu) aos generais (de abril, sempre!) e tantos e tantos outros, de alguns dos quais não conheci mais do que o sorriso. Pela meia-noite, no terraço, sobre o palácio da Vila, iríamos brindar e comentar o artifício dos fogos da autarquia, antes de passarmos ao sagrado momento do desvendar das papeladas do teu implacável arquivo, onde figurava o cartão com a "cunha" para o Spínola entrar no Colégio Militar (o que a história não teria sido, se a "cunha" não tivesse funcionado!). Depois, confiantes em que a BT da GNR se tivesse distraído na passagem de ano, lá rumávamos a Lisboa, já bem dentro do 1º de janeiro. Eram assim as mudanças de anos, há alguns anos, quando nós também tínhamos outros anos.

Mas isso era quando tu estavas por cá. Agora, a casa mudou de donos, tu mudaste de mundo e nós mudámos de saudades. Sei que a Fernanda deve continuar a dar-te notícias do que por aqui se passa, pelo que, como diria o Chico Buarque, só te quero dizer que "a coisa aqui está preta" (embora eu me interrogue sobre se ainda é politicamente correto utilizar expressões destas). Mas, e em linguagem que tu perceberás, estamos (quase) todos nos lugares do costume. E, embora os "amanhãs" agora por aqui já só assobiem, "a luta continua, a vitória é certa", para que lado é que não se sabe...

A imagem representa uma obra de Bartolomeu Cid dos Santos.

quinta-feira, dezembro 30, 2010

Nós e o Rwanda

Anteontem, um visitante do Rwanda acedeu a este blogue. Com esta visita, passou a 138 o número de países de onde recebemos visitas, dentre os 192 Estados que existem no mundo.

Não vale a pena ter ilusões: a grande maioria das novas visitas internacionais computadas são fortuitas, provavelmente fruto de pesquisas no Google, que vêm dar por aqui por mero acaso e que não voltam a repetir-se. Esta é a sina natural de um blogue escrito em português. Na realidade, os leitores regulares deste blogue concentram-se, para além de Portugal, no Brasil, em França e em comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, para além dos nossos postos diplomáticos e consulares.

Mas, apesar disso, as 138 origens nacionais diferentes não deixam de representar uma interessante globalização destas coisas.

Já agora, aqui ficam os votos de um melhor ano para o nosso visitante do Rwanda, esse país africano marcado pela tragédia: felicidades, ou melhor, "umunezero", como se diz em kinyarwanda, a língua local.

Eduardo Azevedo Soares (1941-2010)

Ontem à noite, um amigo dizia-me que, na leitura deste blogue, achava dispensáveis algumas notas feitas por ocasião do desaparecimento de pessoas. Disse-lhe então que essa era uma forma que eu tinha de comemorar vidas que tinham valido a pena.

Há minutos, ao olhar a televisão, dou-me conta da morte de Eduardo Azevedo Soares. Conheci-o quando ele era secretário de Estado da Cooperação, em meados dos anos 80. Lembro-me do modo sereno como aturou algumas desnecessárias impertinências da minha parte, por altura da negociação da entrada de Portugal para a Convenção de Lomé III, num tempo em que eu andava algo agastado com a "casa". 

Foi depois ministro e passámos a ver-nos a espaços. Mais tarde, nas minhas idas como membro do governo à Assembleia da República, e embora colocado do outro lado da "barricada", Azevedo Soares foi de uma exemplar elegância e simpatia para comigo. Mantivémos sempre uma excelente relação pessoal e tive o privilégio de ter a sua palavra amiga num momento menos fácil da vida, a que se somou a sua ostensiva presença num certo ato público, quando a prudência lhe recomendaria a ausência. 

Eduardo Azevedo Soares era um "gentleman" na política, que exercia de modo sério e rigoroso. Talvez porque era, acima de tudo, um homem de bem e de bem com os outros e com a vida, sempre com um sorriso aberto, um amigo com quem trocava fortes abraços quando, como frequentemente acontecia, nos encontrávamos n' "O Comilão", esse campodouriquense lugar do nosso comum amigo Cardoso, que sei que sentirá muito a sua ausência.

Talvez este post ajude a pessoa com quem ontem falava sobre estas notas de despedida a perceber porque as não posso dispensar. Os mortos também fazem parte da nossa vida.

Uma carta recebida

Chegou-me esta carta, que aqui publico, sem comentários:

Meu caro amigo

Escrevo-lhe um pouco em desespero, esperando me possa ajudar, através do seu blog. 

Desde há meses, mas com insistência nas últimas semanas, sou alvo de uma insuportável campanha de calúnias. Não passa um dia sem que, um pouco por todo o lado, falem muito mal de mim. Não entendo esta embirração: ainda não iniciei a minha actividade e não há jornal ou comentador que, ao referir-se-me, não diga coisas como "vai ser péssimo" ou "esperem para ver como ele vai ser uma desgraça". Mesmo sem me conhecerem, alguns já consideram que me cabem culpas e me colocam no pelourinho. Detestam-me, com a certeza antecipada de que comigo nada correrá bem, que represento o que de pior se pode vir a imaginar. O que mais me choca é que me não dão uma simples oportunidade de provar o que posso valer. É verdade, meu amigo, ninguém me dá o menor benefício da dúvida (quase me fugia a tecla para "dívida", imagine!).

Ora eu espero que me possam medir à luz dos factos. Quero dizer-lhe, embora com modéstia, que é minha firme intenção poder ajudar a rectificar aquilo que alguns dos antecessores meus poderão não ter feito da melhor forma. Mas não quero ser eu a julgá-los, eles lá teriam as suas razões e - espero que compreendam! -  disso me não cabem quaisquer culpas. Não sei se virei a ser pior que os outros, mas deixem-me tentar provar que até posso contribuir para que algumas coisas fiquem melhor no futuro.

Por isso, apenas peço que me julguem no fim, que seja dado tempo ao tempo.  

(assinado) 2011

Em tempo: Esta missiva já provocou uma reação por parte da Dra. Helena Sacadura Cabral, que pode ler aqui. Nelas detetei uma parca generosidade, pouco de acordo com a época que atravessamos, devo dizê-lo.

O blogue dos 300

Com a adição, há poucas horas, de um novo "seguidor", passaram a 300 os amigos deste espaço que, de forma regular, têm acesso simultâneo à publicação de novos posts.

Aqui fica o meu abraço grato a quem tem a paciência de ler-me.

quarta-feira, dezembro 29, 2010

"The oldest ally"

A "Inglaterra", nome por que comummente entre nós costuma ser tratado o Reino Unido (*), é o mais velho aliado de Portugal, por virtude da existência do Tratado de Windsor, de 1386, tido como o mais antigo no mundo. De facto, embora sempre por um elevado preço (muitas vezes, económico e financeiro), foi a regular associação a Londres que, por mais de uma vez, permitiu a manutenção de Portugal como um Estado autónomo - já hesitaria em dizer "soberano" ou "independente". 

Ao longo de séculos, na cultura estratégica portuguesa, o laço privilegiado com Londres esteve sempre presente e condicionou toda a nossa postura à escala internacional. A dependência face aos britânicos faz, assim, parte integrante da nossa história diplomática, prolongando-se pelo século XX, com o salazarismo a não escapar a este tropismo, quando a isso foi obrigado.

As Necessidades alimentaram e desenvolveram, naturalmente, essa linha de relação próxima. Quando entrei para o MNE, a perspetiva da existência de um entendimento privilegiado com Londres prevalecia no DNA de setores então dominantes da nossa diplomacia. Creio que ela dava mesmo origem a um certo "comodismo" seguidista, que, inicialmente, chegou a ter um prolongamento na condução de certas políticas sectoriais dentro da União Europeia. Mas, há que ser realista, com exceção dos temas e segurança e defesa, essa "tradição" perdeu-se hoje, quase que por completo. Sem querer com isto lançar uma teoria, mas apenas constatar um facto, sou levado a pensar que a total "naturalização" da nossa atual relação com a Espanha, somada a uma "europeização" da nossa atitude externa que a isso não é alheia, ajudou à diluição do laço específico que foi mantido com o Reino Unido, durante tanto tempo. O que só prova a importância da contribuição britânica, enquanto se mantiveram acesos os alertas "aljubarroteanos".

Uma outra questão, para a qual ainda não tenho uma resposta completa, é visão que Londres foi tendo dessa mesma relação com o nosso país. O declínio colonial de Portugal, com a saída do Brasil e com o diktat britânico na crise do "mapa cor-de-rosa", bem como a estabilização dos seus equilíbrios estratégicos no espaço intraeuropeu, que levaram o Reino Unido a aliar-se à França nos dois conflitos mundiais, terão desvalorizado progressivamente a importância do vetor de "controlo" sobre Lisboa. Complacente com a ditadura de Salazar (**), Londres soube escapar ao dilema que este lhe colocou aquando da invasão da Índia "portuguesa", ao procurar invocar a "Velha Aliança". Mais tarde, foi com incomodidade que os britânicos reagiram quando pretenderam obter facilidades logísticas para a sua operação de retoma das Falkland/Malvinas. Nessa crise, o MNE, pela hábil mão do secretário de Estado Leonardo Mathias, sugeriu que Londres o fizesse à luz do Tratado de Windsor...

Um dia, no início dos anos 90, quando trabalhava na nossa Embaixada em Londres, foi-me perguntado, durante uma palestra na "Canning House", se eu ainda acreditava na validade desse tratado. Respondi, com a maior sinceridade, que acreditava nele tanto como os ingleses...

Interessante para mim foi, mais tarde, verificar que, em certos meios internacionais, permanecia a ideia residual de que a diplomacia portuguesa ainda "dependia" essencialmente de Londres. Recordo-me, num contacto com jornalistas estrangeiros em Bruxelas, creio que em 1997, a propósito de uma iniciativa qualquer que eu tinha promovido no âmbito comunitário, alguém me perguntar se tinha "coordenado" a nossa posição com Londres, antes de a apresentar aos restantes parceiros. Fiquei siderado! Aliás, os tempos viriam a provar que, em muitas áreas comunitárias, as posições dos dois países viriam a afastar-se de forma muito significativa, por uma simples e natural divergência de interesses. Tenho presentes alguns momentos complexos, dos quais não esteve ausente a sensível questão timorense.

Tudo isto não significa que o Reino Unido não seja, nos dias que correm, um Estado com o qual Portugal mantém um excelente relacionamento, com o qual trabalhamos em forte identidade de ideias em muitos domínios - de que, como disse, o da defesa e segurança é, muito provavelmente, o mais significativo. Partilhamos imensos valores  e princípios comuns, mantemos uma leitura próxima da importância do laço transatlântico e, frequentemente, estamos juntos em certas linhas de política face a África. Mas tudo isto sem exclusivismos nem necessidade de relações de privilégio.

É na estabilidade deste quadro de relações que, às vezes, um embaixador pode fazer toda a diferença, trazendo para o país onde está acreditado a imagem de alguém que, não deixando de defender os interesses do seu país, sabe entender o dos outros, tendo sobre ele um olhar externo e simpático, o que acaba por se refletir de forma muito positiva sobre as relações bilaterais.

É esse o caso de Alex Ellis, o embaixador britânico que agora nos deixa, de quem já aqui havia falado, e que, há dias, deixou no "Expresso" esta lindíssima lista de "Coisas que nunca deverão mudar em Portugal":

"Portugueses: 2010 tem sido um ano difícil para muitos; incerteza, mudanças, ansiedade sobre o futuro. O espírito do momento é de pessimismo, não de alegria.  Mas o ânimo certo para entrar na época natalícia deve ser diferente. Por isso permitam-me,  em vésperas da minha partida pela segunda vez deste pequeno jardim, eleger dez coisas que espero bem que nunca mudem em Portugal. 

1. A ligação intergeracional. Portugal é um país em que os jovens e os velhos conversam - normalmente dentro do contexto familiar. O estatuto de avô é altíssimo na sociedade portuguesa - e ainda bem. Os portugueses respeitam a primeira e a terceira idade, para o benefício de todos. 

2. O lugar central da comida na vida diária. O almoço conta - não uma sandes comida com pressa e mal digerida, mas uma sopa, um prato quente etc, tudo comido à mesa e em companhia. Também aqui se reforça uma ligação com a família.   

3. A variedade da paisagem. Não conheço outro pais onde seja possível ver tanta coisa num dia só, desde a imponência do rio Douro até à beleza das planícies  do Alentejo, passando pelos planaltos e pela serra da Beira Interior.   

4. A tolerância. Nunca vivi num país que aceita tão bem os estrangeiros. Não é por acaso que Portugal é considerado um dos países mais abertos aos emigrantes pelo estudo internacional MIPEX.   

5. O café e os cafés. Os lugares são simples, acolhedores e agradáveis; a bebida é um pequeno prazer diário, especialmente quando acompanhado por um pastel de nata quente.  

6. A inocência. É difícil descrever esta ideia em poucas palavras sem parecer paternalista; mas vi, no meu primeiro fim de semana em Portugal, numa festa popular em Vila Real, adolescentes a dançar danças tradicionais com uma alegria e abertura que têm, na sua raiz, uma certa inocência.  

7. Um profundo espírito de independência. Olhando para o mapa ibérico parece estranho que Portugal continue a ser um país independente. Mas é e não é por acaso. No fundo de cada português há um espírito profundamente autónomo e independentista.  

8.  As mulheres. O Adido de Defesa na Embaixada, há quinze anos, deu-me um conselho precioso: "Jovem, se quiser uma coisa para ser mesmo bem feita neste país, dê a tarefa a uma mulher". Concordei tanto que me casei com uma portuguesa.   

9.  A curiosidade sobre, e o conhecimento, do mundo. A influência de "lá" é evidente cá, na comida, nas artes, nos nomes. Portugal é um pais ligado,  e que quer continuar ligado, aos outros continentes do mundo.

10.  Que o dinheiro não é a coisa mais importante no mundo. As coisas boas de Portugal não são caras. Antes pelo contrário: não há nada melhor do que sair da praia ao fim da tarde e comer um peixe grelhado, acompanhado por um simples copo de vinho.  

Então,  terminaremos a contemplação do país não com miséria, mas com brindes e abraços. Feliz Natal."

Com muitos embaixadores como o Alex, por cá e por lá, a "oldest alliance" tem sérias hipóteses de ainda ser credível.



(*) Às vezes, faz bem lembrar estas coisas: a Inglaterra, com a Escócia e o País de Gales, constituem a Grã-Bretanha. Londres (que é capital da Inglaterra) é, também, a capital do "Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte"

(**) Sobre este tema, publiquei, já há muito: “The Opposition to the ‘New State' and the British Attitude at the End of the Second World War: Hope and Desillusion”, in “Portuguese Studies”, Vol. 10, King’s College, London, 1994

Tarde do dia de Consoada