segunda-feira, dezembro 30, 2024

Espairecer


Deve haver poucas localidades mais desinteressantes do que Verin. E, no entanto, na minha infância, ir a Verin era significado de "ir ao estrangeiro". Ia-se a Verin, a terra espanhola que ficava mais perto de Vila Real, logo depois de Chaves, nos dias da festa do Lázaro, em março. Os passaportes eram dispensados nessa altura e, ao atravessar a fronteira, até os pides e os polícias espanhóis de tricórnio tinham, por escassas horas, um ar menos ameaçador.

À época, o que se vendia nas lojas espanholas tinha pouco a ver com o que por cá havia. Muita coisa era diferente e tudo era aliciante, só por essa diferença. E ver o polvo cortado à tesoura, saído de uns caldeiros, à porta de umas tascas com ar estranho, era um verdadeiro cenário de filme para aquele miúdo de então. Adorava ir a Verin, confesso.

Com os anos, com as viagens a democratizarem-se, com outros mundos já nos olhos de toda a gente, Verin começou a perder a sua graça, que aliás sempre fora muito mítica. Mas, para os meus pais, por muitos anos, a deslocação ia valendo a pena. Lembro-me de o meu pai, já reformado, dizer: "Apetece-me espairecer! E se fôssemos hoje a Verin?" E, estando nós de passagem em Vila Real, sem outro programa na proximidade, lá íamos nós com eles, "numa saltada" a Verin.

Houve tempos em que algumas casas comerciais ainda por lá mantinham algumas coisas com (embora muito decrescente) interesse, desde logo no setor da alimentação onde, por muito tempo, a Espanha deu cartas (mas já não dá). Mas muito do que ali conhecíamos parou, entretanto, de vez. O Café Aurora segue há décadas entaipado. O supermercado "da gorda" (desculpem a crueldade, mas era assim que, em outros tempos, designávamos a avantajada dona de uma razoável mercearia onde tínhamos o vício de ir) foi substituído por um qualquer escritório. Tudo o resto se uniformizou até ao limite da pasmaceira que hoje por ali se vive.

Passada a minha fase adolescente do deslumbre pela "stationery" e pelos baralhos de cartas da "Heraclio Fournier", cedo percebi que, em Verin, nunca mais haveria livros nem música, só se conseguiam jornais nas estações de serviço (agora, por cá também...) e eu já quase não sei comprar mais nada. E como, de lá para cá, a democracia nos autorizou a Coca-Cola que o Botas de Santa Comba proibira, e como já não há pachorra para os "melocones" enlatados, nem para os rebuçados que nos evocavam a Espanha de outros tempos, Verin está hoje uma imensa seca. A imagem é de um dos seus mais "cosmopolitas" cruzamentos.

Fui hoje a Verin, para "espairecer", como diria o meu pai. Bebi uma cerveja e comi uns queijos assim-assim no Parador, atestei pouco patrioticamente o depósito e zarpei logo para Portugal, sem saudades nem nostalgias. A grande chatice destas experiências é que nos estragam, cada vez mais, o que nos resta de mitos do passado e nos desestimulam visitas no futuro. Já só voltarei a Verin quando me esquecer da última vez que lá fui. Que foi hoje.

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