sábado, novembro 27, 2021

Viva o SNS!


Foi há mais de duas décadas. Senti-me bastante mal, uma noite, durante uma peça, num teatro de Lisboa. Saímos a meio do espetáculo, para a urgência do Hospital de S. Francisco Xavier. Esperei na fila (eu que abomino filas!), alguns minutos. Não demorou muito a triagem. Fora o irritante “senhor Francisco”, com o qual nunca me reconciliarei, tudo se foi passando burocraticamente bem. Como a avaliação feita me não dava como doente prioritário, esperei mais de uma hora. 

A certa altura, mandaram-me entrar para uma sala, onde havia vários doentes. Por alguns minutos, fui espetador involuntário de alguém a morrer quase ao meu lado, rodeado de médicos e enfermeiros. Vi que faziam o impossível para o salvar, mas o impossível, às vezes, não é mesmo possível. A cena, confesso, não ajudou muito ao meu estado de espírito e à taquicardia que trazia. 

Chegou, finalmente, a minha vez. O “senhor Francisco” foi então atendido com frieza profissional, com o rigor necessário, embora sem uma simpatia por aí além. O veredito, após alguns exames mandados fazer, o que levou quase uma hora mais, e a administração de uma terapêutica imediata, foi simples: “O ”senhor Francisco” sofre apenas uma dose imensa de stress. Vai ter de descansar, em repouso absoluto, um mínimo de 48 horas, nunca menos, com esta medicação forte, que o vai pôr a dormir bastante”. 

Respondi: “Não vai ser possível. Tenho de partir amanhã, à hora do almoço, num voo para o estrangeiro. Preciso assim de conselhos e de uma medicação que se adequem a isso”. O médico ficou irritado: “Mas o que é que o “senhor Francisco” faz assim de tão importante na vida que não lhe permita descansar, como lhe estou a recomendar?” A minha resposta desconcertou-o: “Não sei se a minha tarefa é importante ou não. Sou secretário de Estado dos Assuntos Europeus, está a decorrer a nossa presidência da União Europeia e tenho uma tarde de debate no Parlamento Europeu, depois de amanhã. Ninguém pode fazer isso por mim! Só isso!”. 

O homem ficou siderado: “Ah! Mas é do governo? Ninguém nos avisou. E o senhor não disse nada!”. “Claro que não disse! Para que é que ia dizer? Fui tratado com eficiência e profissionalismo, por si e por toda a gente, desde a minha chegada ao hospital. Por que diabo tinha de dizer o que faço na vida?”, retorqui-lhe. Sorriu então, pela primeira vez, talvez estranhando o que para mim era muito óbvio. E as recomendações lá se adaptaram ao então apressado estilo de vida do ”senhor Francisco” (tenho ideia de que passei a ser tratado “senhor doutor”…) Imagino que esses conselhos devam ter sido os mais corretos: vinte e um anos depois ainda estou aqui a contar esta história de eficiência básica do SNS de então.

Teve muita sorte, dirão muitos. As coisas raramente se passam assim. Talvez. Eu falo por mim e por essa ocasião. Sem “cunhas”, sem furar filas (que odeio, repito!), sem revelar as funções oficiais que ocupava. Como sempre - repito, sempre - fiz em todo o lado, em toda a minha vida. Não sou da laia dos ”sabe com quem é que está a falar?” Mas quem achar que tem dados provar o contrário, faça favor: as linhas seguintes são suas.

14 comentários:

Flor disse...

Ora aí está uma frase em bom português que eu detesto ouvir "Sabe com quem está a falar????", com o dedo em riste ou não.O que vem a seguir é um "chorrilho" de impropérios.

Eu só tenho a agradecer ao SNS. Nunca tive problemas com a má educação dos médicos, paramédicos e demais pessoal. Há 21 anos que sou seguida no IPO de Lisboa. No princípio ainda reclamava do tempo de espera mas depois de tantos exames, operações, tratamentos, consultas aprendi a ter paciência e não olhar para o relógio. Quando chegava e chega a minha vez, levanto-me e vou célere. A minha Oncologista na altura exclamava quando me via entrar "Então dona Isabel está tudo bem assim como parece??" e sorriamos as duas.

João Forjaz Vieira disse...

Uso muito o SNS e não tenho queixas, antes pelo contrário. Isto é queixo-me de ser tratado por sr. João mas … já me rendi
João Vieira

Artur Pereira disse...

A minha mãe tinha 98 anos. Uma noite começou a vomitar duma forma violenta e perante a situação decidimos levá-la a um hospital particular, pensando que, com a sua idade, pudesse não ser bem atendida no hospital publico.
Levámo-la à urgência dum hospital particular bem conhecido. Permaneceu uma noite internada nas urgências e no dia seguinte teve alta por volta do meio-dia com o diagnóstico de uma infeção urinária. Pagámos pelo serviço 800 e muitos euros.
Mas o quadro manteve-se e na noite seguinte, levámo-la a São José.
Atendida de imediato e foi-lhe diagnosticada uma obstrução intestinal com uma hérnia já em putrefação.
Foi internada e operada de seguida. Convalesceu e recuperou totalmente a vitalidade anterior e não pagou nada.

maitemachado59 disse...



Ao menos a oncologista trata-a por "dona".

Aqui, muitas vezes sou tratada por "Maria". Aos 80 e tal, ser tratada assim por fedlhos de 20 e poucos... quando a directiva e saber como o /a paciente quer ser tratado. As vezes imponho-me e lambro-lhes a directiva

maitemachado59

Jaime Santos disse...

Eu por acaso tive que ir uma vez à urgência do Santo António porque o médico que consultei perto de onde vivo suspeitava que eu tinha um dedo partido por causa de uma queda a fazer desporto e na clínica onde decorreu a consulta não havia Raio X ao Sábado.

Fui extremamente bem atendido, mesmo se não era doente prioritário, longe disso. Acabei por vir embora com uma receita de um analgésico e anti-inflamatório e um spray para aplicar na mão.

E não me importo nada que me tratem por Sr. Jaime, porque os Portugueses não têm o hábito de tratar os outros por Sr. Sobrenome... Daquela vez, porém, creio que me trataram por Sr. Jaime Santos...

Carlos Diniz disse...

Após ter estado nas urgências desse hospital cinco dias, com várias equipas de médicos, os 3 primeiros a dormir em cadeirões e sofás, antes de me diagnosticarem um acidente vascular cerebral que atingiu o cerebelo, deixei de cantar loas ao nosso querido SNS. E convém esclarecer que isto sucedeu bem antes da SARS-CoV-2.

septuagenário disse...

Que haja médicos resilientes já não é mau.

Carlos disse...

O meu pai foi tratado durante muitos anos no SNS e sempre falou em termos muito elogiosos sobre as pessoas que dele cuidaram.

Mas acho que o essencial a reter dos testemunhos do Sr Embaixador e de muitas pessoas no post no Facebook é a importância crucial de assegurar a todos, independentemente da classe social, da fortuna ou do nível de rendimentos, que cuidados de saúde de nível apropriado estarão sempre assegurados em tempo oportuno. É que não há nada pior que ver a esperança numa vida com alguma tranquilidade destruída pela angústia não só da doença mas também das suas consequências económicas com o seguro de saúde a explicar que ultrapassou o limite de cobertura.

É que muitos dos panegíricos sobre as virtudes da gestão privada escondem práticas escusas de sobrefacturação por parte destas entidades ao classificarem indevidamente algumas intervenções como de gravidade extrema aproveitando a situação de fragilidade e dependência dos pacientes e famílias

Luís Lavoura disse...

Suponhamos que o Francisco, em vez de ter tido a indisposição que teve, tinha tido algo mais grave, digamos que um AVC. Será que nesse caso ainda teria exigido ter alta para poder participar na discussão no Parlamento Europeu?
O Francisco foi irresponsável. Se o médico lhe receitou descanso então deveria ter sido descanso que o Francisco deveria ter feito.
A Secretaria de Estado certamente dispunha de outras pessoas, além do Francisco, que a pudessem representar no Parlamento Europeu. E se não dispusesse, pois bem, mandava-se dizer ao Parlamento Europeu a verdade, ou seja, que devido a motivos médicos a Secretaria de Estado não se tinha podido fazer representar.
A saúde do Secretário de Estado é mais importante que o Parlamento Europeu.

SCarvalho disse...

Vê, Sr. Embaixador?
Já sabe que futuramente, em casos semelhantes, há que pedir conselho ao tio Lavoura, que destas coisas percebe ele.

Flor disse...

Maitemachado a minha oncologista tratava-me por "dona" porque já havia alguns anos que nos conhecíamos. Já os meus outros médicos e enfermeiros tratam-me, a mim e às outras doentes por Senhora dona. Isto no IPO de Lisboa.

A.B. disse...

Teve sorte e bem se pode gabar disso.

maitemachado59 disse...



Flor

isso mostra que o pessoal do IPO de Lisboa sao pessoas bem educadas

maitemachado59

Unknown disse...

Trata-se de um texto saudável e que louva o SNS, que tanto precisa. Agora um problema persiste "Sr. Francisco", o maior problema do SNS não é na capital, no Porto ou em Coimbra, o problema do SNS é que ele anda desaparecido no interior do pais! Ai onde as pessoas não estão a menos de 2h de Coimbra, o único remédio que lhes resta muitas vezes é rezar... Isto sim é triste não para o SNS mas para o nosso pais, e digo isto do alto dos meus 22 anos, veja só...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...