quinta-feira, dezembro 04, 2014

Uma questão talvez incómoda

Há semanas, num jantar com um antigo ministro de uma das antigas colónias portuguesas, que tinha vindo ao nosso país para estar presente numa evocação da Casa dos Estudantes do Império, coloquei-lhe uma questão: será que os novos países emergentes da colonização portuguesa manifestaram já o seu reconhecimento àqueles que, em Portugal, sob a repressão da ditadura, lutaram a seu lado, defendendo a independência dessas colónias?

A oposição ao Estado Novo chegou tarde ao anti-colonialismo. O patriotismo do movimento republicano, no final do século XIX, tinha a defesa das colónias no eixo da sua doutrina. Já no século XX, Portugal forçou a sua entrada na Grande Guerra como forma de poder sentar-se à mesa dos vencedores, que decidiria o futuro dos territórios. Cunha Leal e Norton de Matos, figuras destacadas da oposição a Salazar, eram orgulhosos "colonialistas", tendo-se confrontado nesse terreno com Salazar em termos meramente metodológicos. Nos anos 50, perante o movimento independentista que se generalizou às colónias britânicas, francesas e belgas, os democratas portugueses permaneceriam por muito tempo numa linha recuada.

Embora com um "timing" bastante atrasado face aos seus congéneres europeus, verificaremos que os comunistas portugueses foram os primeiros a iniciar uma leitura sobre a inevitabilidade da independência das nossas colónias. O desencadear da luta armada em Angola, e a tomada do Estado da Índia, em 1961, marcam o início desse novo tempo. Se nenhuma hesitação se pode igualmente registar da parte dos movimentos de extrema-esquerda, surgidos na vida política portuguesa a partir de 1962, já na área socialista o tema levou muito mais tempo a maturar: durante as "eleições" legislativas de 1969, o discurso "ultramarino" da Ação Socialista Portuguesa (ASP), liderada por Mário Soares na CEUD, manteve-se ainda muito equívoco. Já antes, aliás, na origem da crise da Resistência Republicana e Socialista, que daria origem à cisão entre a ASP e a Ação Democrato-Social, a questão colonial havia estado já ligeiramente presente.

Pode dizer-se que as eleições de 1969 representaram o momento em que a questão da luta anti-colonial passou a estar no centro do discurso oposicionista. É nessa altura que começam a multiplicar-se ações muito concretas de apoio aos "movimentos de libertação", com uma curiosa incidência nos meios católicos, enfunados pela leituras radicais do Concílio Vaticano II, de que o episódio da Capela do Rato (1972) é um exemplo importante. Exemplos como o CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial, reconvertido, após 1974, em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral) e as ações violentas conduzidas pelas Brigadas Revolucionárias e pela Ação Revolucionária Armada são apenas algumas dentre as muitas estruturas cuja ação ilustrou, de forma muito clara, essa atitude anti-colonial no seio da oposição à ditadura. Note-se que a repressão policial tinha as expressões de apoio à luta armada nas colónias como alvo prioritário.

Apoiar a independência das colónias nunca foi fácil. Com tropas portuguesas a morrerem nas frentes africanas, no combate aos movimentos independentistas, estava longe de ser cómodo assumir, em Portugal, um apoio a esses grupos. Quem o fez arrostou - e às vezes ainda arrosta - com um labéu de "traidor", que se estendeu com particular virulência aos desertores. Ter razão antes do tempo é, quase sempre, bastante complexo.

E volto ao princípio, para me interrogar sobre se os novos Estados, passados que são quase 40 anos sobre as suas independências, marcaram já, de forma clara e inequívoca, o seu reconhecimento histórico face a quantos, deste lado europeu - mas também, em alguns casos, no seu próprio território -, arriscaram a sua vida e a sua segurança para apoiarem uma luta que consideravam justa. Não creio que isso tenha sido feito e tenho pena: essa seria uma ação pedagógica junto das próprias opiniões públicas das antigas colónias, que assim melhor perceberiam que os seus povos puderam contar, a partir das suas primeiras movimentações de contestação dos poderes de Lisboa, com bons e leais amigos na "frente" do próprio país colonizador, que por eles correram fortes riscos e muitos dos quais pagaram por isso um imenso preço. Talvez a própria imagem de Portugal junto desses novos Estados pudesse vir a ganhar com isso. Mas, um gesto desses, a ser feito, teria de sê-lo num prazo de tempo razoavelmente rápido. É que essa geração portuguesa começa já a desaparecer.

10 comentários:

Anónimo disse...

A iniciativa teria de vir dos países que emergiram com a independencia mas não vejo nenhum virado para essa preocupação.
Até porque poderia ser "um pau de dois bicos" porque como muito bem diz o texto, os democratas portugueses precisaram de um muito longo percurso para aceitaram a posição anticolonialista daquele punhado de "esquerdalhos" que " teve razão antes do tempo".
Queria guardar este texto que é uma excelente forma de ver a evolução dos democrates portugueses naquela encruzilhada dificil mas que tinham uma leitura clara dos outros países colonialisadores que viveram os conflitos muito antes de nós.
José Barros

João B. Serra disse...

Subscrevo na íntegra, com uma ressalva quanto ao pioneirismo dos comunistas na adopção do anti-colonialismo (se entendermos que se refere ao PCP). A sua nota parece-me interinamente pertinente. E faz sentido lembrar, enquanto a memória dos tempos da Casa dos Estudantes do Império se não esbate por completo.
Um abraço, caro Francisco Seixa da Costa.
João Serra

Joaquim de Freitas disse...

Evolução lenta do anti-colonialismo muito bem documentada, Senhor Embaixador. Aqueles que tinham compreendido que não era possível continuar a negar aos povos do ultramar português aquilo que os franceses, ingleses, belgas, holandeses , ingleses já tinham feito, correram grandes riscos. Recordo-me.

O facto é que os argumentos da burguesia capitalista e do mundo dos negócios no ultramar para preservar as colónias , eram exactamente os mesmos dos outros países colonialistas já citados. Os recursos energéticos, as matérias primas, as propriedades latifundiárias, frequentemente possuídas pelos bancos, como o Banco Ultramarino na Guiné, por exemplo, valiam bem , para os que possuíam tudo, os milhares de mortos das guerras coloniais. Tanto mais que , até uma certa data , eram os filhos dos Portugueses mais humildes , do contingente, que pagavam o pesado tributo, sem falar dos povos africanos.

Aliás, nas colónias, onde os soldados Portugueses morriam, quantos colonos pensavam que era normal que os metropolitanos viessem defendê-los . E quando foi questão de fazer participar os filhos dos colonos à guerra, havia lá quem não compreendesse que Portugal não tivesse bastantes soldados para os defender. São palavras de Salgueiro Maia, de regresso de Moçambique.

A França , com excepção da Indochina e da Argélia, que se libertaram pela guerra, soube evitar na África negra o drama da descolonização , através do referendo ( recusado pela Guiné Conacry)) e da auto determinação dos povos. Solução que Salazar soberanamente ignorou !

Quantas vezes lia que Michellin teria dificuldade a prescindir das plantações de héveas do Vietname! Entre outros!

O caso da Argélia , que a França tinha transformado administrativamente em departamento, como os outros departamentos franceses, para melhor a segurar , o gás de Hassi Messaoud , o site experimental da bomba atómica, e a presença de 1 milhão de europeus eram os grandes problemas a resolver. E que foram resolvidos dramaticamente pela guerra. Como Portugal em Goa.

E, como em Portugal, aqueles que , em França, tomaram posição contra as guerras coloniais foram maltratados da mesma maneira que os Portugueses mais esclarecidos em Portugal, e por vezes mesmo assassinados pela OAS.

Como muito bem escreve, " por vezes é difícil e mesmo perigoso de se ter razão antes de todos os outros" !

Os interesses económicos superiores duma minoria e a ignorância ou apatia politica da grande massa, são a causa dos dramas da descolonização.

Em conclusão: Não creio que as elites que substituíram os Portugueses no comando das antigas colónias, estejam realmente interessadas na difusão da história do combate dos cidadãos resistentes, que em Portugal correram riscos para os ajudar na sua luta.

Creio antes que procurarão magnificar o combate deles contra o colonizador, para assim melhor valorizar o seu próprio combate e o direito à estatura que adquiriram nos destinos da Nação. Os relentos de ditadura de alguns é a melhor prova do que escrevo.

Joaquim de Freitas disse...

Ao Senhor Joao Serra ::

A cronologia dos discursos de Bento de Jesus Caraça prova bem que o PCP esteve na vanguarda da luta contra as guerras coloniais.

Alcipe disse...

A primeira declaração anti-colonial do PCP data de 1957.

a) Alcipe

patricio branco disse...

não lhes deve interessar, convirá dar a ideia que só eles lutaram pela libertação, talvez seja isso

Joaquim de Freitas disse...

Caro Alcipe :


. A independência das colónias portuguesas foi uma das linhas de força do programa de acção do PCP e um dos primeiros objectivos da transformação que definiu como necessária muito antes do 25 de Abril.

Alguns africanos mal informados, e muitos inimigos do PCP, tentaram lançar dúvidas sobre essa posição de princípio, mas Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Samora Machel, Vasco Cabral, para citar apenas alguns dos já falecidos entre os maiores dirigentes da luta de libertação nacional, deixaram-nos testemunhos bem claros sobre a ajuda fraternal do PCP à luta dos povos coloniais.

As consequências da evasão de Neto e Vasco Cabral de Portugal num barco pilotado por membros do PCP não devem ser subestimadas


Já o jornal “Avante”, série II, nº 10, Agosto de 1935 definia o caminho que o PCP sempre havia de trilhar :
“A nossa posição face a uma nova partilha dos territórios africanos pelo imperialismo europeu é a posição de todo o leninista : lutar contra o imperialismo capitalista, pela libertação dos povos coloniais e em favor do reconhecimento a estes povos do direito a se governarem a si próprios”.

Por isso quando alguns insinuam que só em 1957, no V Congresso do PCP, se afirma pela voz de Jaime Serra, um dos seus dirigentes, “o direito à independência imediata e sem condições das colónias da África Portuguesa” , estão a cometer uma injustiça.

ECD disse...

Em Fevereiro 1968 uma manifestação preparada contra a Guerra Colonial teve de ser transformada, para que os companheiros do PCP - chamávamos-lhes revisionistas! - a integrassem, em manifestação contra a Guerra no Vietname. Participei na organização da manifestação, estava nas primeiras fila e apanhei imensa porrada da bófia; ficou-me como boa e grata recordação o facto ter ajudado a partir os vidros do Centro Cultural Americano, na altura um r/c da Embaixada dos Estados Unida, na Avenida Duque de Loulé.
Sobre os desertores e a opinião publica das antigas colónias a história é bem outra. Já me engalfinhei com vários amigos, alguns como eu desertores,das ex-colónias por causa deste "buraco" na memória deles.

Portugalredecouvertes disse...


Mesmo que se concorde com a
" inevitabilidade da independência das nossas colónias" por muitos motivos, ´
não compreendo por que carga d´água é que se retira aos portugueses o direito de gostar daquelas terras e daquelas pessoas onde e com quem viveram durante seculos ?
será que por se ter a cor escura se gosta mais de Africa ?
mas eu vejo à minha volta gente bem escura que em Portugal se sente no seu país! E acho isso muito bem.
E os que defendiam a libertação dos povos, como é que deixaram aqueles países africanos?
às vezes penso nas ideias que "nos vendem" e vejo muitas bem diferentes da vivência das pessoas umas com as outras.

Francisco Seixas da Costa disse...

Um Anónimo desconfiou que o "ministro" não existisse. Pois bem, a conversa foi com Óscar Monteiro, antigo ministro de Moçambique. Satisfeito?

João Miguel Tavares no "Público"