Começo por uma declaração de interesses: sou amigo de Mário Soares.
Vi-o pela primeira vez em 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas Artes, na rua Barata Salgueiro, em Lisboa, numa noite em que o então líder da oposição socialista pretendia aí fazer uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e ouvi Soares, com voz forte e indignada, a contestar a decisão diante do famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Lembro-me bem de Soares perguntar, jocoso: "e que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.
Cruzaria depois Soares, ainda nesse ano, em duas outras reuniões da oposição. Eu estava então noutra onda política, longe das suas ideias, mas apreciava-lhe já a coragem e a determinação. Depois das "eleições" de outubro desse mesmo ano, em que Soares e os seus amigos tiveram um resultado muito fraco - relativamente ao resto da oposição -, o líder socialista saiu do país e, mais tarde, seria obrigado a permanecer no estrangeiro, sob pena de ser preso se regressasse a Portugal. Só aqui chegaria em 29 de abril de 1974.
Verdadeiramente, a primeira conversa que me lembro de ter tido com Mário Soares seria quase 20 anos depois, em Londres, na nossa embaixada, aquando da sua visita de Estado, como presidente, ao Reino Unido. Falámos desses episódios da luta contra a ditadura e de amigos comuns. Criámos uma imediata relação de simpatia.
Em fins de 1995, dar-me-ia posse como membro do governo e, poucos dias depois, acompanhei-o a Israel e à Palestina, escassos meses antes dele abandonar Belém. Lembro-me de uma frase que então me disse: "Sabe que, em 10 anos como presidente, é a primeira vez que sou acompanhado numa visita oficial ao estrangeiro por um membro do governo da minha família política?" Era verdade. Fui o primeiro e o último, embora Soares me tivesse contado histórias que revelavam o cordial entendimento que tinha tido com alguns governantes do "cavaquismo", período a que Guterres tinha posto um ponto final, semanas antes.
Desde então, convivi bastante com Mário Soares. Tive o gosto de o ter a prefaciar e a apresentar um livro meu. Andei com ele por vários locais, de Estrasburgo a Roma, de Brasília a Paris. Em Lisboa, na sua Fundação e em várias outras ocasiões, tive o ensejo de trocar com ele impressões sobre o mundo, sobre a Europa e sobre as pessoas que ele cruzou. Integrei a "comissão de honra" da sua frustrada terceira candidatura à Presidência da República, que achei dispensável mas que entendi ter o dever moral de acompanhar.
Tenho orgulho em poder hoje afirmar que sou amigo de Mário Soares. Tenho por ele um imenso respeito, uma profunda consideração pela sua postura cívica, pela magistratura ética que representa para o nosso país. No passado, nem sempre estive de acordo com ele e, ainda hoje, divirjo de algumas atitudes que toma ou de declarações que faz, sendo que essa divergência é muitas vezes mais pela forma do que pelo conteúdo. Mas essa é a "graça" de Mário Soares: ter a coragem da opinião forte, não se importar com a polémica, saber arrostar com a crítica, não se calar perante a indignação. Ter-lhe-ia sido mais fácil, se quisesse passar imune por entre as pingas da conjuntura, remeter-se a um silêncio de "Colombey", construir um currículo de silêncios graves, numa parcimónia de palavras e gestos que é a patine que molda os estadistas de cera. Soares não é assim e felizmente que o não é.
Mário Soares faz hoje 90 anos. Vou estar com ele e com alguns dos seus muitos amigos para lhe dar um forte abraço e para lhe agradecer a ventura que é tê-lo connosco. Soares não durará sempre e, quando um dia desaparecer, tenho a certeza que o nosso país ficará tristemente órfão do seu exemplo cívico.
11 comentários:
um testemunho amigo e dum amigo, desde 1969 atá à actualidade.
Mário Soares merece todos os parabéns que se lhe possam dar. Lamento não poder ir hoje dar-lhe um grande abraço que porém aqui fica.
JPGarcia
Por vezes os discursos de Soares soam a demagogia.
No entanto, foram as palavrs dele, na Fonte Luminosa,que serviram de catalisador para que eu abandonasse a UEC logo a seguir ao Verao Quente. Como era muito nova e desconhecida,fora destacada para espiar a manif.
Afastei-me do PC mas primeiro tive de esperar que acabasse o surto de violencia contra as sedes do PC porque nunca abandonaria os meus amigos quando se pensava que corriam perigo .
Senhor Embaixador,
Ficam-lhe muito bem essa palavras bonitas dirigidas ao Dr. Mário Soares.Como diplomato não sentiu os danos que Dr. Mário Soares infringiu a outros.
Dr. Mário Soares cambiou a minha vida e a de milhares de portugueses.
Velho agora, pela vida fora,foi prendendo a si muitos rabos de palha.
Ambicioso,pretencioso, mau político e acredito. castigo da natureza, o manter vivo aos 90 anos para serem avaliados seus erros (imensos) enquanto ao de cima da terra.
Cordialmente
José Martins
Como qq mortal, MSoares tb tem contradições. Acabei de ver algumas bem actuais no blogue Insurgente.
Tb estive na Alameda.
Cumps.
Esta DEmocracia deve-lhe bastante. O que este Governo de extrema-direita possa pensar sobre, bem como os seus acólitos, deixa-me indiferente. Puxo o autoclismo e mando-os para a cloaca.
Fernando i.
Não partilho a sua opinião, Sr. Embaixador.
Quando Soares partir, a sua memória não ficará no coração das massas populares.
Soares deixa-nos um país exangue, à deriva, com a sua soberania pelas ruas da amargura.
A meu ver, não deixará saudades.
Contam-se por milhões as vítimas da política de bloco central que sempre apadrinhou no essencial.
Por sua vez ele foi apadrinhado por Carlucci.
Cumptos.
João Pedro
Se o Srº Embaixador o permite, aconselho que usem um pouco do vosso tempo a ver o trabalho em video feito pelo Público:
http://www.publico.pt/multimedia/soares-e-eu
A palavra que nos ocorre?
-Grandeur
Senhor José Martins:
Estas suas palavras, «Como diplomata não sentiu os danos que o Dr. Mário Soares cambiou a minha vida e a de milhares de portugueses» fazem-me crer que o senhor é um dos que regressaram após a descolonização.
Infelizmente essas pessoas foram vítimas de uma situação insustentável, que só a política do «orgulhosamente sós» de Salazar teimava em querer manter.
A Conferência de Bandung foi 20 anos antes da descolonização. Os primeiros 7 foram passados como se ela não tivesse existido (apesar da ocupação de Goa) e os últimos 13 foram passados a fazer uma guerra que qualquer pessoa bem informada sabia que era à partida invencível.
E o senhor sobre isto nada diz.
Mas sobre o difícil processo de descolonização, quer pela situação interna do colapso do Regime, quer pela situação que se gerou nas colónias, o senhor é muito crítico e queria uma solução indolor à medida de cada um.
O céu é inatingível, como sabe.
Os comentários do senhor José Martins neste blogue, costumam ser anedóticos. Desta vez conseguiu o impensável: ultrapassou a sua própria fasquia e perdeu uma boa ocasião para deixar as teclas em paz.
O Senhor José Martins raciocina exactamente como os colonos da Argélia, que consideravam normal que a França se desgastasse até a exaustão numa guerra sem fim, para conservar uma Nação e um povo que tinham o direito mais elementar a governarem-se si mesmos. Mesmo depois da Inglaterra ter concedido a independência a India!
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