terça-feira, julho 15, 2014

Nós e o mundo

Tenho a sensação de que as pessoas, em Portugal, deram escassa importância a algo de muito significativo que ocorreu na passada semana: refiro-me à reação da comunicação social internacional à crise do BES e à reciclada imagem que Portugal projetou de novo, a partir de então.

Portugal é um país muito pouco importante para o mundo exterior. De nós, e à parte alguns poucos que nos conhecem melhor, está feita por aí uma caricatura simplificada, só a espaços verdadeira na sua crueldade: um país pobre, uma economia frágil e sem capacidade competitiva, uma democracia recente (?) e em tensão, uma sociedade com os vícios comportamentais ditos da latinidade ou da "preguiça" mediterrânica. Damos ainda de nós mesmos a imagem de quem exporta mão-de-obra a que não sabe dar futuro, porque, de forma endémica, somos incapazes de sustentar os nossos episódicos sucessos. Dizem-nos um país que não soube aproveitar aquilo que a Europa nos "deu", alimentado por pequenos compadrios e grande esbanjamento. E, claro, dizem também, para nosso gáudio patriótico, que somos simpáticos, geralmente humildes (Mourinho, Ronaldo e Saramago são as exceções), prestáveis, acolhedores - do "hostel" à tasca da esquina. A crise de 2011 confirmou aquilo de que muitos desconfiavam: que não tínhamos condições para pertencer ao euro, para cuja entrada, com toda a probabilidade, havíamos feito um hábil "autoretrato" sincrónico da nossa economia. É assim que muitos nos olham, podem crer. Às vezes com pena, outras com sobranceria, frequentemente com ambas.

O modo como a austeridade por aqui passou também confirmou, a esses mesmos olhos, que somos passivos, sofredores, quase subservientes. A Irlanda e a Grécia conseguiram vantagens com a "troika" que o governo português (por incompetência? por seguidismo? por complexo de "bom aluno"?) nem sequer ousou reclamar. Os estrangeiros olharam para os vidros intactos das montras durante as nossas manifestações, compararam-nos com a "fogueira" da praça Syntagma ou com a agressividade nas Puertas del Sol e interrogaram-se. Admirativos? A palavra "admirar" tem dois sentidos e um deles não devia ser bom para o nosso orgulho.

Foi esse mundo que, na passada semana, voltou a olhar para nós, através do "caso BES", para a procrastinação decisória da família Espírito Santo (que, para muitos observadores externos, começa a ser vista como "famiglia", podem crer!), para o incrível alheamento, por muito tempo, dos responsáveis políticos (a quem o virus liberal parece ter toldado o sentido da responsabilidade de Estado), para o passo de tartaruga da supervisão (que, uma vez mais, não soube prever o "tsunami" e que, nas horas que correram, devia estar a ler o FT com dois dias de atraso) e até para o incrível tempo que o "dream team" da nova gestão do banco levou a forçar a sua chegada aos cadeirões de couro do 15º andar do 195 da avenida da Liberdade. Portugal projetou a imagem do filme de um desastre em "slow motion".

E o que se viu? Viu-se a imagem do país, que havia sido retocada pela leve aguarela da "saída limpa", a desfazer-se com fragor em poucas horas, com o "rating" da República, apenas sustentado pela política do BCE, sob pressão do "caso BES", como se o mundo se preocupasse com as subtilezas das diferenças entre o BES e o GES e, dentro deste, cuidasse em distinguir as amigalhices da PT, as trapalhadas angolanas ou os "erros" do já famoso "contabilista do Luxemburgo" - aliás, um belo título para um "financial thriller" de Paul Erdman. E logo se viu Portugal, como um todo, a ser lido como um país uma vez mais em profunda crise, financeira e quiçá política, um incurável "doente europeu", causador irresponsável de instabilidade para os parceiros. Olhem-se as capas do "Wall Street Journal", do "Financial Times", as reportagens da CNN ou da BBC. Por todos esses espaços, regressou a imagem do país frágil de que falei no início desse texto. Imagem que, infelizmente, não se vai afastar, por muito tempo*.

Em política, dizia já não sei quem, "o que parece é". E, com o caso do BES e com o comportamento inapropriado (hoje deu-me para os eufemismos diplomáticos) das autoridades portuguesas, demos a imagem de uma República também não sei bem de quê. Nem o futebol ajudou, caramba!

* sobre a imagem que Portugal projeta nos outros, e para quem tiver algum tempo, deixo este link.

14 comentários:

Anónimo disse...

O Eça de Queiroz, que já na sua época tinha razões para escrever um texto muito parecido, não escreveria com tanta pertinencia e agudeza.
Mas se gosto do texto, fico enraivecido com a verdade que nos atira à cara e por não se poder refutar que o que parece não só parece: " o que parece é".
José Barros

Alcipe disse...

E serviu também esta crise do BES para a Sra. Merkel gargalhar e dizer para o Renzi e para o Sigmar Gabriel: "estão a ver que o que é preciso é mais do mesmo?"

Portugalredecouvertes disse...


também penso caramba Sr. Embaixador! só que esse nós me incomoda! o "nós" para mim é uma quantidade de gente à minha volta que ganha salários demasiado baixos e que não pode dar condições aos filhos para viverem uma vida mais digna no sentido de menos angustiada
faz-me lembrar o mesmo "nós" dos golos quando existem! nós marcámos, nós jogámos bem, nós jogámos mal, etc..
vendo-se que esse "nós" que vejo à minha volta não tem poder de decisão, nem partilha da maneira de distribuir as benesses ou encargos que esses sim lhe caem em cima

Anónimo disse...

Afinal, ainda do estamos na fase de curar feridas, muitas delas de sempre, outras de cinco anos alucinados até 2011.

Mas a vexata quaestio subsiste: como lançar um pais de estruturas produtivas diferentes, num pais que se habituou a olhar o Estado omnipresente.

Da família ou famiglias de banqueiros, ao relapso profissional do subsídio...

manuel pereira disse...

Esses olhos estrangeiros, menores e míopes, notam também que Portugal não é só um país de ladrões e de resignados bananas. Estamos,ainda,em pé,há mais tempo que qualquer outro país da Europa. Que bastardos o esqueçam é a consequência do mau sangue que herdaram.Tanto quanto me lembro,sempre achamos uma saída.Encore un effort!como dizia o divino marquês...

Anónimo disse...

Para mais um bom texto seu só uma grande frase:
“O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado.” FP
(E lá fora não vêm todo o pormenor da (des)administração do Estado com a feitura de leis à medida para serem cumpridas por quem quer e pode. Tudo isto muito mascarado pelos fundos comunitários e pelo euro.)
Quando há sobranceria de Ronaldo, olhe que não, olhe que não e, o que parece, é que o Sr. não se esqueceu…
antonio pa

patricio branco disse...

texto este que faz um real e claro diagnóstico e retrato do país.
sempre foi assim. é endemico e sistémico. faz parte de nós.
será que gostamos afinal de ser assim?
ou que não conseguimos senão ser assim?
e sempre será assim?
alguma vez seremos como a irlanda, a espanha, etc?
vejo agora que houve 2 ou 3 momentos da nossa historia em que podiamos ter tomado outro rumo, ou tentado, ou experimentado.

Anónimo disse...

O grave é pessoas como o embaixador imediatamente se assumirem como "nós culpados". Não, há uns culpados que estão ou estavam na administração do banco, individualmente apontáveis, e, contra muita opinião pública, há estruturas do Estado que persistentemente não cumprem o seu dever, como o Banco de Vitór Constâncio, não outro, que se vê que se esforça. E há, infelizmente, o que sempre foi apontado como um pecado português, que são as elites que não valem um caracol e que se caracterizam por um enorme oportunismo de "Maria vai com as outras", sempre na oposição, há espera que pingue um lugarzinho para eles próprios ou um negócio escuro qualquer. Todos os outros, que são a maioria do povo português estão bem, recomendam-se, e esperam ansiosamente que esta maltosa toda desapareça e vá opinar para França, que está bem pior e nem sequer se esforça.
João Vieira

PS concordo muito com a opinião aqui expressa que os maiores provincianos são os que permanentemente insinuam que eles próprios são civilizadíssimos. Estas classificações não costumam ser distribuídas pelos próprios!
João Vieira

Unknown disse...

E é assim que deixamos de sonhar por um país...são estes exemplos aqui tão bem descritos neste diagnóstico tão real Sr embaixador!

Anónimo disse...

Infelizmente o caso BES está a influir negativamente na imagem da recuperação económica de Portugal.

Creio contudo que as autoridades e o Banco de Portugal fizeram o que deviam.

Não se deve esquecer que o BES sempre recusou a ajuda financeira do Estado para a recapitalização dos bancos, pois não queria interferências externas.

Espero contudo que a nova equipa, com a ajuda da administração anterior recupere o crédito do nome BES.

Anónimo disse...

Nunca percebi a arrogância dos post-modernos que diziam que Portugal seria diferente se a população tivesse mais dinheiro. Riqueza nunca se fez neste país de um dia para o outro sem se recorrer aos lucros da escravatura ou ao tráfico de droga. Enfim esse mais dinheiro parece não ter sido produzido mas pedido emprestado o que faz agora ter de o pagar com língua de palmo.

Defreitas disse...

Salto sobre o comentário do anónimo das 19,01 para dizer o seguinte: Claro que desde hã muito tempo que os avisos e as criticas não faltaram sobre a stagnaçao da Nação Portuguesa e a sua morte previsível. Se actualmente sobre 6 milhões de ativos, 3 milhões são precários trabalhando a 2 ou 3 euros hora, e 750.000 não recebem subsídios ou muito pouco, tudo isso era previsível.

Portugal foi onde a comunidade europeia injetou mais dinheiro. Onde foi parar esse dinheiro?
Durante 26 anos quem se preocupou de preparar e adaptar o pais as exigências da mesma comunidade?

Os fundos foram dilapidados a medida que entravam nos cofres do Estado. Por quem?
Serviram essencialmente a criar uma classe de parasitas que meteram no bolso , impunemente, somas colossais.

Dum dia para o outro vimos aparecer uma classe "performante" de empresários que, apadrinhados pelos quadros do seu partido e com o apoio dos banqueiros, souberam desviar os fundos para negócios mais lucrativos , sem o menor controlo do Estado.

Esta cumplicidade criminosa entre os políticos eleitos pelo povo e o Privado , impediu a criação dum verdadeiro entreprenariado ajustado aos desafios da modernidade.

O sol brilhou intensamente para a classe de novos ricos que "surfaram" alegremente a vaga de rapina nacional.
Ferraria, vilas de luxo, carros de luxo para toda a família, viagens de sonho, as mil e uma maravilhas duma inesperada "doce vital" a portuguesa. Como aquele magnifico yatch com a bandeira portuguesa que vi esta tarde na marina de PortGrimaud...registado na ilha de ...Man ! Nunca vi tantos por aqui hasteando a mesma bandeira !
Quando se tem um dos PIBs mais baixos da Europa e uma divida soberana pelo menos preocupante, a crise mundial só podia agravar a situação.

Sim, Eça já o tinha escrito no século passado. Quando faltam as elites competentes e honestas o resultado esta a vista.

Sim, tem razão, Senhor Embaixador
: A pobreza atinge hoje proporções nunca vistas em Portugal. Os Portugueses, catalogados como povo pacifico, humilde e timbrado, alérgico a contestação violenta, enfraquecido do ponto de vista cultural e educacional deixa-se amordaçar, preso num molde de crenças medievais e de determinismos civilizacionais.

'

Defreitas disse...

No comentário precedente, ler, por favor, "temeroso" em vez de "timbrado". O micro computador foi o culpado.... Já chega de tantos males ....

EGR disse...


Senhor Embaixador : concordo inteiramente com o que escreveu.~
Mas, permita-me, dizer-lhe que há algo que me deixa profunadamente irritado em tudo isto: é a circunstancia de toda essa gente que agora arranjou este monumetal sarilho(para não lhe chamar outra coisa) ser a mesma que nos tem andado a pregar a moral e os bons costumes e o "vivemos acima das nossas possiblidades"; e nessa medida por muito que o PM agora venha tentar "falar grosso" não consegue escapar, como quer, entre os pingos da chuva; e que dizer das proclamações de Paulo Portas ou dos silencios cumplices dos seus acompanhantes?
E o Banco de Portugal e o agora seu venerado Governador que andou a fazer durante todo este tempo?.
Seja-me deculpado o desabafo: estou farto desta gente!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...