sábado, julho 26, 2014

A diligência

A minha interlocutora, no ministério dos Negócios estrangeiros daquele país, ficou perplexa quando eu lhe anunciei que o nosso primeiro-ministro iria suscitar o assunto, durante o encontro com o seu presidente, por ocasião da próxima cimeira bilateral.

A questão era delicada. Tratava-se de um importante interesse de uma empresa portuguesa. Há meses que eu batia a várias portas para tentar ultrapassar o problema, mas não conseguia mais do que vagas e dilatórias promessas. Assim, entendi que a cimeira que reuniria o nosso primeiro-ministro e o presidente daquele país seria o momento certo para a questão ser levantada. 

Estava a jogar completamente "no escuro". Não tinha a menor luz verde de Lisboa para colocar o tema na agenda, atuava por minha total conta e risco. Mas achei que o que estava em jogo - e era importante! - valia a parada.

Percebi logo que a minha interlocutora não gostava do que estava a ouvir. Uma cimeira é essencialmente uma "festa" comemorativa da "excelência" das relações bilaterais, onde se anunciam "resultados" e se assinam protocolos, mais de metade dos quais se sabe que nunca serão implementados por completo. Constatar divergências e "poluir" a ocasião com problemas não faz parte do "script" desses momentos grandes, feitos de sorrisos e palavras rituais de entendimento.

Levei o meu "bluff" ainda mais longe. Deixei cair que o tema já tinha sido objeto da curiosidade da nossa imprensa, através de telefonema à nossa embaixada, e que sabia que era a própria empresa que estava a "travar" o tratamento mediático do mesmo, por privilegiar uma abordagem discreta, mais política. Por isso, era forçoso que fosse levado à cimeira, porque o assunto iria "rebentar", mais cedo ou mais tarde. Porque era uma questão com alguma carga política, o nosso primeiro-ministro não poderia deixar de suscitá-lo, concluí.

"Mas não haverá outra maneira de tratar o tema, sem ser entre os dois chefes de governo?", perguntou-me a diplomata, já angustiada com a minha leve "chantagem". Talvez os dois MNE pudessem abordá-lo, na reunião separada que teriam... Respondi-lhe com uma expressão em inglês, que não era a língua local: "No way!". E lembrei-lhe que, tal como ambos bem sabíamos, a ser analisado o tema pelos MNE, o assunto acabaria com uma declaração do género: "as partes analisaram a questão que envolve os interesses da empresa portuguesa X e congratularam-se pelo progresso registado nos contactos que têm vindo a ser desenvolvidos sobre o assunto, que esperam possam conduzir a um resultado positivo, num prazo tão breve quanto possível". Não era verdade que ambos aprendêramos a escrever este tipo de textos, precisamente quando sabemos que as coisas não andam para a frente, mas queremos vender uma imagem pública do contrário? Ela não pôde senão concordar.

Mas eu tinha uma "solução alternativa" à abordagem do assunto ao nível mais elevado. Os olhos da minha interlocutora, por sinal nada feios, sorriram por detrás dos seus óculos. E eu esclareci: poderíamos organizar um encontro entre um dos nossos ministros que vinha na comitiva, de uma área mais técnica, aliás próxima do tema que estava em causa, e o membro do governo local que tinha diretamente o assunto em mãos. Ao dizer isto, estava consciente de que seria muito difícil organizar esse encontro, precisamente porque era esse mesmo responsável político local que, desde há meses, andava a "encanar a perna à rã", adiando a solução para o problema.

A minha interlocutora percebeu logo a dificuldade que esta minha solução alternativa criava. A última coisa que o seu ministro quereria era ser confrontado com um "sim ou não" ou um pedido de calendarização da decisão. Mas a solidariedade interministerial acaba onde começa a proteção dos interesses de um presidente. E, por isso, para salvar a "pureza" da cimeira, acedeu a tentar o que eu propunha - tendo eu reiterado que, a assim não poder ser, o assunto passaria então para a reunião "de topo".

As coisas passaram como eu queria e Lisboa aceitou que um nosso ministro, qualificado para abordar o tema e que se deslocaria com o primeiro-ministro para a cimeira, se encontrasse numa reunião paralela com o tal membro do governo. O qual só depois de muitas insistências da sua presidência da República aceitou, a contragosto, ter o encontro.

Com pena minha, não pude ir a essa reunião, por estar a acompanhar o nosso primeiro-ministro em outros contactos. O ministro iria, porém, acompanhado por um colaborador meu, bom conhecedor do assunto, sobre o qual, aliás, havíamos preparado detalhados "talking points", enviados para Lisboa a montante da visita.

O dia correu no afogadilho típico destas ocasiões. Só voltámos a encontrar o ministro, depois da reunião com o interlocutor que lhe destináramos, já no aeroporto, no termo da visita, minutos antes da partida. Notei então que o meu colaborador, que o acompanhava, trazia "cara de caso". Teria a conversa corrido mal? Será que houvera uma "nega"? Como era eu quem ficaria "com a criança nos braços" nos dias seguintes, inquiri, discretamente mas ansioso, como é que as coisas se tinham passado.

Foi então que recebi a mais inverosímil das respostas: "O nosso ministro não falou do assunto!" Não acreditei no que estava a ouvir! "Não falou do assunto?!" Mas, se esse era o único objetivo do encontro, falou de quê? Fui informado que, perante a visível incredulidade do ministro estrangeiro, esse membro do nosso governo passara meia hora de conversa a falar de generalidades, sem uma única vez se referir ao tema que tinha justificado o pedido da reunião. 

Não vem para o caso referir o que se passou a seguir, o modo como posteriomente tive de lidar com os meus contrapartes locais, os mesmos que convencera, com esforço, a aceitar uma reunião que, afinal, um membro do meu próprio governo viria a não aproveitar. Julgo terem tido a generosidade de não me confrontarem com uma coisa do género: "Então o assunto era tão importante, você "ameaçou" que o seu primeiro-ministro o suscitaria e, afinal, o seu ministro nem a ele se referiu?!" A minha credibilidade para continuar a pressionar sobre o tema acabara de desaparecer naquele instante.

Como podem ver, a vida diplomática está longe de ser um mar de rosas.

8 comentários:

Anónimo disse...

O tal Ministro, o nosso, usava suspensórios ? Cinto ? Como é que segurava a as calsas ?
É só pa saber.
José Barros

Anónimo disse...

Tambem fiquei muito curiosa...

Anónimo disse...

Não conhecemos a versão do tal ministro que terá de certeza tido as suas razões. Antes de julgar é preciso tentar compreender. Em todo o caso, percebo que tenha sido muito frustrante. Nunca é agradável ver o nosso trabalho boicotado pela aparente estupidez alheia.

Anónimo disse...

Por isso desde há muito as "empresas" "colocam" em ministros os seus funcionários... (just in case).

patricio branco disse...

episodio exemplar...

Portugalredecouvertes disse...

nem o plano B valeu!

Anónimo disse...

As coisas passaram-SE como

Heitor Araujo disse...

Terei sido só eu, ou ficámos todos a tentar descobrir os nomes dos intervenientes?!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...