A minha interlocutora, no ministério dos Negócios estrangeiros daquele país, ficou perplexa quando eu lhe anunciei que o nosso primeiro-ministro iria suscitar o assunto, durante o encontro com o seu presidente, por ocasião da próxima cimeira bilateral.
A questão era delicada. Tratava-se de um importante interesse de uma empresa portuguesa. Há meses que eu batia a várias portas para tentar ultrapassar o problema, mas não conseguia mais do que vagas e dilatórias promessas. Assim, entendi que a cimeira que reuniria o nosso primeiro-ministro e o presidente daquele país seria o momento certo para a questão ser levantada.
Estava a jogar completamente "no escuro". Não tinha a menor luz verde de Lisboa para colocar o tema na agenda, atuava por minha total conta e risco. Mas achei que o que estava em jogo - e era importante! - valia a parada.
Percebi logo que a minha interlocutora não gostava do que estava a ouvir. Uma cimeira é essencialmente uma "festa" comemorativa da "excelência" das relações bilaterais, onde se anunciam "resultados" e se assinam protocolos, mais de metade dos quais se sabe que nunca serão implementados por completo. Constatar divergências e "poluir" a ocasião com problemas não faz parte do "script" desses momentos grandes, feitos de sorrisos e palavras rituais de entendimento.
Levei o meu "bluff" ainda mais longe. Deixei cair que o tema já tinha sido objeto da curiosidade da nossa imprensa, através de telefonema à nossa embaixada, e que sabia que era a própria empresa que estava a "travar" o tratamento mediático do mesmo, por privilegiar uma abordagem discreta, mais política. Por isso, era forçoso que fosse levado à cimeira, porque o assunto iria "rebentar", mais cedo ou mais tarde. Porque era uma questão com alguma carga política, o nosso primeiro-ministro não poderia deixar de suscitá-lo, concluí.
"Mas não haverá outra maneira de tratar o tema, sem ser entre os dois chefes de governo?", perguntou-me a diplomata, já angustiada com a minha leve "chantagem". Talvez os dois MNE pudessem abordá-lo, na reunião separada que teriam... Respondi-lhe com uma expressão em inglês, que não era a língua local: "No way!". E lembrei-lhe que, tal como ambos bem sabíamos, a ser analisado o tema pelos MNE, o assunto acabaria com uma declaração do género: "as partes analisaram a questão que envolve os interesses da empresa portuguesa X e congratularam-se pelo progresso registado nos contactos que têm vindo a ser desenvolvidos sobre o assunto, que esperam possam conduzir a um resultado positivo, num prazo tão breve quanto possível". Não era verdade que ambos aprendêramos a escrever este tipo de textos, precisamente quando sabemos que as coisas não andam para a frente, mas queremos vender uma imagem pública do contrário? Ela não pôde senão concordar.
Mas eu tinha uma "solução alternativa" à abordagem do assunto ao nível mais elevado. Os olhos da minha interlocutora, por sinal nada feios, sorriram por detrás dos seus óculos. E eu esclareci: poderíamos organizar um encontro entre um dos nossos ministros que vinha na comitiva, de uma área mais técnica, aliás próxima do tema que estava em causa, e o membro do governo local que tinha diretamente o assunto em mãos. Ao dizer isto, estava consciente de que seria muito difícil organizar esse encontro, precisamente porque era esse mesmo responsável político local que, desde há meses, andava a "encanar a perna à rã", adiando a solução para o problema.
A minha interlocutora percebeu logo a dificuldade que esta minha solução alternativa criava. A última coisa que o seu ministro quereria era ser confrontado com um "sim ou não" ou um pedido de calendarização da decisão. Mas a solidariedade interministerial acaba onde começa a proteção dos interesses de um presidente. E, por isso, para salvar a "pureza" da cimeira, acedeu a tentar o que eu propunha - tendo eu reiterado que, a assim não poder ser, o assunto passaria então para a reunião "de topo".
As coisas passaram como eu queria e Lisboa aceitou que um nosso ministro, qualificado para abordar o tema e que se deslocaria com o primeiro-ministro para a cimeira, se encontrasse numa reunião paralela com o tal membro do governo. O qual só depois de muitas insistências da sua presidência da República aceitou, a contragosto, ter o encontro.
Com pena minha, não pude ir a essa reunião, por estar a acompanhar o nosso primeiro-ministro em outros contactos. O ministro iria, porém, acompanhado por um colaborador meu, bom conhecedor do assunto, sobre o qual, aliás, havíamos preparado detalhados "talking points", enviados para Lisboa a montante da visita.
O dia correu no afogadilho típico destas ocasiões. Só voltámos a encontrar o ministro, depois da reunião com o interlocutor que lhe destináramos, já no aeroporto, no termo da visita, minutos antes da partida. Notei então que o meu colaborador, que o acompanhava, trazia "cara de caso". Teria a conversa corrido mal? Será que houvera uma "nega"? Como era eu quem ficaria "com a criança nos braços" nos dias seguintes, inquiri, discretamente mas ansioso, como é que as coisas se tinham passado.
Foi então que recebi a mais inverosímil das respostas: "O nosso ministro não falou do assunto!" Não acreditei no que estava a ouvir! "Não falou do assunto?!" Mas, se esse era o único objetivo do encontro, falou de quê? Fui informado que, perante a visível incredulidade do ministro estrangeiro, esse membro do nosso governo passara meia hora de conversa a falar de generalidades, sem uma única vez se referir ao tema que tinha justificado o pedido da reunião.
Não vem para o caso referir o que se passou a seguir, o modo como posteriomente tive de lidar com os meus contrapartes locais, os mesmos que convencera, com esforço, a aceitar uma reunião que, afinal, um membro do meu próprio governo viria a não aproveitar. Julgo terem tido a generosidade de não me confrontarem com uma coisa do género: "Então o assunto era tão importante, você "ameaçou" que o seu primeiro-ministro o suscitaria e, afinal, o seu ministro nem a ele se referiu?!" A minha credibilidade para continuar a pressionar sobre o tema acabara de desaparecer naquele instante.
Como podem ver, a vida diplomática está longe de ser um mar de rosas.
8 comentários:
O tal Ministro, o nosso, usava suspensórios ? Cinto ? Como é que segurava a as calsas ?
É só pa saber.
José Barros
Tambem fiquei muito curiosa...
Não conhecemos a versão do tal ministro que terá de certeza tido as suas razões. Antes de julgar é preciso tentar compreender. Em todo o caso, percebo que tenha sido muito frustrante. Nunca é agradável ver o nosso trabalho boicotado pela aparente estupidez alheia.
Por isso desde há muito as "empresas" "colocam" em ministros os seus funcionários... (just in case).
episodio exemplar...
nem o plano B valeu!
As coisas passaram-SE como
Terei sido só eu, ou ficámos todos a tentar descobrir os nomes dos intervenientes?!
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