quinta-feira, janeiro 10, 2013

Os novos constituintes

Pelo andar da carruagem, este vai ser o ano dos constitucionalistas.

Desde logo, a tarefa que o Tribunal Constitucional vai ter em torno do Orçamento Geral do Estado para 2013 arrasta, talvez mais do que no ano anterior, este órgão de soberania para uma exposição de alto risco, quiçá agravando, no seu seio, as clivagens políticas e ideológicas que sempre foram uma sua evidente fragilidade, mas à qual, a espaços, conseguiu furtar-se. Deixo uma nota de admiração ao professor Moura Ramos (a quem endereço também um abraço amigo de grande respeito pela sua integridade), a quem o país ficará sempre a dever uma constante e equilibrada defesa do Tribunal, bem como da coerência global da sua jurisprudência. E formulo a esperança de que os integrantes do tribunal, honrando o Direito, coloquem este à frente das suas ideologias, sejam elas quais forem.

Ainda quanto aos constitucionalistas, sinto que 2013 - embora gostasse de estar enganado - vai agravar a progressiva divergência doutrinária que, em tempos recentes, começou a ser patente entre as suas grandes figuras nacionais: Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda e Vital Moreira. Não incluo aqui, por uma questão mínima de razoabilidade, por jogarem "noutro campeonato", todos os restantes esforçados cultores do setor, parte deles vivendo de sua exposição mediática, outros do seu papel de eminências pardas, onde cuidam em "branquear" moralmente as coisas, distorcendo-as à luz do seu persistente enviezamento ideológico. A Constituição é um documento político, mas o agravamento da conflitualidade em torno da sua leitura constitui um elemento fragilizante para a nossa democracia.

Mas o grande "momento constitucional" português de 2013 vai ser, com toda a certeza, o debate em torno do trabalho desses "novos constituintes", desta vez em criativo e inédito modelo de "outsourcing", que é o documento produzido pelo FMI, com propostas sobre as funções futuras do Estado em Portugal.

O memorando assinado com a "troika", em 2011, já roçara, ao de leve, algumas temáticas de natureza para-constitucional e outras, como se viu, claramente dessa ordem. Porém, o facto das suas opções originais terem sido subscritas por cerca de 90 % das forças políticas representadas no parlamento, como recordou há dias o chefe do Estado, acabou por conferir às dimensões para-constitucionais afetadas uma quase consensualização, por parte do "arco" possível da governação. Para que não haja dúvidas: está aqui apenas em causa a estrita letra daquilo que foi assinado à época, sendo que o que foi implementado para além disso tem a legitimidade política resultante da vontade da maioria saída das eleições legislativas de junho de 2011, confortada pelo indiscutível voto de então, o qual, em devido tempo, será confirmado ou infirmado pelo povo, como mandam as boas regras da democracia que nos rege.

O FMI, com este seu trabalho técnico, introduz um curioso (sinto, por ora, dever conter-me nos adjetivos) modelo de aconselhamento, que é sintomático do grau de exercício de soberania política em que Portugal se encontra no plano internacional (imagino um texto destes sobre o NHS britânico, sobre a "fonction publique" francesa ou mesmo sobre as responsabilidades autonómicas espanholas em matéria de políticas públicas). Por muito que se procure edulcorar, sob a capa da racionalidade teórica, a bondade intrínseca deste documento (cujas 70 e tal páginas li, esta noite, com o sentimento estranho de estar a refletir sobre um outro país) é importante que fique claro que ele que não é filho de pai incógnito, mas óbvio produto de uma discreta "partouze" teórica multinacional, feita à luz de uma matriz de extremado liberalismo, a que a escola de Chicago deu em tempos o tom e, num registo limite, Santiago do Chile serviu, também em tempos, de "Guinea pig" (não sei porquê, o termo inglês para "cobaia" tem mais força aqui). É isto que eu penso e, por isso, é isto que escrevo, doa a quem doer e desgoste a quem desgostar.

Este texto do FMI tem a "virtualidade" política de, à partida, não dever suscitar as reaçoes populares de 15 de setembro. Porquê? Porque ao assestar as baterias legais e administrativas exclusivamente sobre o setor público, tido pelo "mau da fita", pelo culpado do défice, recria a linha divisória com o setor privado, que assim se crê "poupado". Um dia, porém, quando este começar a perceber aquilo que o Estado lhe faculta, em matéria da qualidade de prestações de serviços, em retribuição dos pesados encargos fiscais que suporta, acabará por dar-se conta de que ele próprio será a primeira vítima da política de quantos defendem a tese de "menos Estado, melhor Estado" e o que sobrar que esteja ao serviço dos interesses que quem manda. Mas, nessa altura, já será tarde.

Por essa razão, o surgimento do texto do FMI tem, neste contexto, uma superior vantagem: vai separar as águas, vai "call the bluff", de forma definitiva, de todos os atores políticos, que serão chamados a assumir as suas responsabilidades. Todos, sem exceção. "Les jeux sont faits, monsieurs!" Já não era sem tempo.

Nota: este blogue muda hoje de subtítulo.

31 comentários:

Anónimo disse...

Se bem compreendi num texto que li muito recentemente, um economista do FMI confessou um engano de cálculo megaprejudicial para os paises que quizeram ajudar. Aqueles economistas pensavam que -1% no rigor orçamental iria ter como consequencia -1% na produtividade, tão assim automaticamente... Ora aquele especialista vem-nos agora dizer que os cálculos falharam e que aquele -1% repercute-se na produtividade em -3%. Quer dizer que 1 é igual a 3 !
E agora? Quem vamos responsabilizar por esta consequencia de empobrecimento ? Portugal continua neste declinio ?
José Barros

Helena Oneto disse...

Carissimo Senhor Embaixador,

Parabéns pela nova face/fase do "Duas ou Três Coisas"! O novo look, menos formal, mais "aberto", promete:)!

PS: Assim que aqui cheguei vi logo (sem ter lido a sua nota) que o "embaixador" desapareceu do cabeçalho... por anticipação? como o decreto da sua exoneração(:?

Anónimo disse...

Bravo, Senhor Embaixador! Se não fosse a Senhora Engenheira, que é uma querida, mas às vezes não percebe certas coisas, eu dizia-lhe mais. Um forte abraço

a) Feliciano da Mata, cidadão

Anónimo disse...

Senhor Embaixador, agora já não há dúvidas do papel que o nosso país está a fazer. Como já se tinha dito por aqui num país sem diviões internas, sem regiões a pedirem autonomia é fácil ensaiar "umas medidas" a ver o resultado que dá e se se poderá depois implementar noutros países.Tenho para mim que ninguém na Europa "que manda" está a pensar na dívida.O objectivo está coseguido. Os custos com salários têm descido bem depressa. O problema são aqueles grupos parecidos com os das "corporações" de antes do 25 de Abril, como era por exemplo o sindicato dos bancários. Houve um filme cujo título traduzido para português era: "Os cavalos também se abatem". Quando os mais velhos desses "grupos" se forem afastando a coisa vai... Há uns anos quando vinham de férias as minhas parentes mais chegadas que vivem em S. Paulo tínhamos que lhes dar tudo. Ainda levavam de cá os sapatos, malas e alguns adereços mais procurados pelas senhoras. A classe média no Brasil tinha "levado uma sova"! Nesta Europa para onde nos chegámos de boa fé afinal fazem-nos agora o que tinham feito no Brasil quando para lá "foram dar uma ajuda". Com amigos destes...

Janus disse...

Na nova "visage",gosto dos tons de azul!
Estaria, no entanto, à espera que o verde fosse o escolhido...
Talvez sinais dos tempos? :)

António P. disse...

Caro Embaixador,
Reflexão oportuna e pode ser que acabem por "encomendar" uma Constituição ao FMI.
Quanto ao resto:
- gosto do novo lay-out;
- o azul é que me surpreende...ou já vai a caminho do Dragão? :)
Cumprimentos

Francisco Seixas da Costa disse...

Aos comentadores preocupados: o caráter "angelical" deste "new look" durará duas semanas. Logo se verá então a minha cor definitiva.

ARD disse...

O governo de que padecemos aproxima-se muito rápida e perigosamente da abjecção; pedir que alguns obscuros burocratas que se lhe substituam para "repensar o Estado", actividade que está muito acima das suas capacidades, é mais uma humilhação a que está a submeter os cidadãos do país que desgoverna.
Não li, ainda, o Relatório; na verdade, não vou, provavelmente, lê-lo - parece-me um exemplo notório do tipo de textos dos quais se pode dizer que "não li e não gostei". Mas, pelo andar da carruagem, os comentários que se vão tornando públicos - a começar pelos do insuportável "menino Pompeu" que é o Dr. Moedas - os mentores da malta que mandam cá no rectângulo partem de dados errados e considerações inexactas para "repensar" o Estado.
Espero que, ao contrario do que teme o senhor Embaixador, haja um sobressalto cívico e que a rua mostre, mais uma vez, à pandilha que ainda não precisamos que nos digam, em Washington, em Frankfurt ou em Bruxelas, como é que queremos governar a nossa casa.

Anónimo disse...

Eu do novo formato não gosto. Mas eu sou um conservador...

Anónimo disse...

Subscrevo as palavras de ARD (mas vou ler o dito).
Biscaia

Anónimo disse...

Triste destino dos diplomatas - dos cumes da Diplomacia para as Obras.
Abraço solidario
a)Ex Visinho

Anónimo disse...

A velha senhora, coitada, convenceu-se de que encontrou nova paixão:

contigo meu bem é que ARDo
que dizes quanto eu diria:
pandilha fardo javardo
vai ser corrida a petardo
plo povo em festa e alegria
galhardo com (sem?!) resguardo

contigo bem que eu ARDia

Anónimo disse...

Velha senhora querida
Sua ilusão nao tem par:
A Paulinha que lhe diga
Que saída há de tomar...

Tem sempre o Feliciano
Lá nas matas do Golungo:
Mas o meu bom senso lhano
Diz-nos que ele e um matumbo!

No Alcipe nao se fie
Tem mania que e poeta!
O Seixas nao arrelie
Inda lhe manda uma seta!

O minha Velha Senhora
Como dizia o O'Neill
Velhos a arrastar a asa
São já bem mais do que mil!

a) O Velho Senhor

Anónimo disse...

Pois é... a Constituição. Até Christine Lagarde disse ao Expresso que a desiluzão foi "não termos previsto a inconstitucionalidade de algumas medidas propostas no ano passado."
Será que essa mesma constituição irá impedir que possamos continuar na União Europeia com pleno direito?
Custa a crer que os nossos legisladores sigam por esse caminho.
Seremos finalmente uns conservadores impedernidos quando já fomos considerados uns progressistas?
Eu não sei

Julia Macias-Valet disse...

Azul ??? Turquesa ???? ...com que sonha o nosso escriba : com o céu azul de Portugal ou com as ondas do mar ?

Anónimo disse...

Muito bom! Pelos vistos vou apreciar as novas tonalidades dos seus comentários.

António Nunes

Anónimo disse...

Este novo look "celestial" é relaxante (Gostei!), mas fiquei curiosa com o look que vai surgir daqui a duas semanas.

Isabel BP

Um Jeito Manso disse...

Mas não seria melhor rejeitar apenas o documento feito sabe-se lá com que validade de fundamentos? Porque 4 mil milhões? Porquê isso e não o dobro disso? Ou metade? Ou nada (porque a solução para o imbróglio pode vir do crescimento económico)?

Mas que legitimidade tem esta gente para vir agora com este intuito?

E que seriedade é a desta gente que quer ter decisões sobre matérias desta natureza em dois meses?

Não seria mais ajuizado se toda a gente, toda, se recusasse sequer a comentar estas medidas.

É que nada disto é sério. Nada.

Tudo isto mete-me cá uns nervos...!

PS: Cá para mim, o fundo do blogue está muito azulinho, muito cândido para o tipo de conteúdos que se encontra por aqui. Só se for para fugir ao verde, coisa que eu não acharia lá muito bem (apesar dos pesares)

Helena Sacadura Cabral disse...

Meu caro amigo
Primeiro estranha-se o layout. Admito que depois se entranhe.
Mas lembrou-me o do mordomo adormecido do Alcipe.
Gostei deste post. Mas tenho tido uma enorme dificuldade em deglutir o estudo técnico do FMI. Vai ser no fim de semana, que espero não estragar!

Anónimo disse...

O FMI representa ou não os nossos credores???? Se sim...
Se não, não se lhes ligue....deixá-los falarem....
Mas eu não sei

Anónimo disse...

Call off the bluff? Como? se tudo foi desde sempre e será um bluff! Este relatório é apenas o último bluff! Então não acham que o relatório saiu para atingirem os seus fins (fill their pockets), “bluffando” sobre a iniquidade de certas normas para aplicarem as que lhes interessam?
Les jeux sont faits, monsieurs! et numéros chanceux choisi! Tal e qual como no Rick’s Café
Isto não passa duma bluffcracia

Isabel Seixas disse...

Também gostei do post e da pertinência do comentário de ARD.
Logo e por arrastamento da inspiradora espontaneidade manifesta da nossa velha amiga.

A cor é muito bonita, mas é a tonalidade da congruência e coerência das palavras que nos estimula.

O subtitulo sem dúvida que rejuvenesceu, sem a carga intrinseca de expectativas face ao profissional, fazendo algumas vezes sombra per si à liberdade de expressão, desejada, do Homem numa perspetiva holistica.

As notas pouco diárias insinuando algum provável absentismo, traduziram uma assiduidade benéfica para nós leitores, daí que me parece ser o subtitulo real de notas assíduas e com diplomacia de Francisco Seixas da Costa.

De qualquer forma agradável.




Anónimo disse...

Sobre cores, a velha senhora também se quis pronunciar:

digo-lhe eu rimalhadeira
ó meu filho ó meu irmão

(melhor era 'ó meu amor'
ai meu jov'embaixador
sou velha tanto pior)

as cores que lhe vão são
vermelho do coração
e verde cor da bandeira
(que é também dor de leão)


ts perdão ps:
o jovem Velho Senhor
que aqui poeta aparece
avisa que a mim - parece -
me manda vexa 'uma seta'
mas setas de embaixador
rimalham-me bem com 'meta'
e eu rio velha pateta

Anónimo disse...

Ainda sobre cores, a velha senhora rimalhou também para a cara Julia Macias-Valet:

a júlia amiga pergunta
com que sonha o nosso escriba:
céu azul de portugal
e azul das ondas do mar?
tudo igual?
tudo a par?
há mais cores
mais amores
que ele em seu coração junta
vermelho e verde das dores
por favor não lhe proíba

Anónimo disse...

O azul e branco do novo formato do post de Vossa Excelência alegrou o meu coração.Finalmente aderiu Vexa à única causa que não tem efeito (a Causa Monárquica). Encontramo-nos então no Círculo Eça de Queiroz. Pelo Rei e pela Grei!

a) Henrique de Menezes Vasconcellos (Vinhais)

Julia Macias-Valet disse...

Para todos os que gostam de azul e do mar... nao se esqueçam de mergulhar n' "As Idades do Mar", na Gulbenkian até dia 27 de janeiro :

http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.html

Ao domingo a entrada é grátis ! Nao ha desculpas...

Helena Oneto disse...

Carissimo Senhor Embaixador,

Este texto é exemplar na forma e no conteudo. Espero que o aviso nele contido seja lido e que dele tire lição quem "acabará por dar-se conta de que ele próprio será a primeira vítima da política de quantos defendem a tese de "menos Estado, melhor Estado e o que sobrar que esteja ao serviço dos interesses que quem manda".

Subscrevo o comentario de ARD.

Faz bem vir aqui ler o que muitos pensam e raros ousam escrever.

Assim haja muitos.

EGR disse...

Senhor Embaixador: o caminho está a ser escrupulosamente percorrido: os serviços publicos estão a ser decapitados, com os funcionários que nele permanecem completamente desmotivados,não apenas por razões materiais, mas também por no discurso do poder, de par com o "vivemos acima das nossas possibilidades",serem a causa dos nossos males.
O objetivo é claro: tornar os serviços,de facto maus, preparando as pessoas para dizerem algo parecido com isto: então privatize-se!
Receio que quando os nossos concidadãos que,por ora mergulhados nas suas preocupações quotidianas,se aperceberem do logro seja tarde.

Helena Sacadura Cabral disse...

Estou a meio. Relatório técnico é o que ele não é. Po isso se limita a abordar os temas convenientes para quem o pediu. É, sim um relatório político. E isso é que é inadmissível. A servir de teste.
Mas cuidado com as versões que circulam...

Anónimo disse...

Iniciativa interessante. Aqui:
http://aventar.eu/2013/01/11/relatorio-do-fmi-traducao-colaborativa/

Anónimo disse...

Peço perdão. O link correto para o 1º rascunho traduzido é este:

http://aventar.eu/2013/01/13/relatorio-do-fmi-traduzido-em-portugues-rascunho/

Cumprimentos

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...