Anteontem, em Lisboa, vi à venda a "Agenda Doméstica", referente a 2013. E lá estava a descrição do seu conteúdo: "decoração do lar, conselhos de beleza, elegância feminina, culinária, etiqueta, contos, curiosidades, anedotas, jogos, passatempos e prémios". Não abri, sequer. Mas sorri intimamente.
A "Agenda Doméstica", nos anos 50, 60 e creio que até aos anos 70, era uma presença anual obrigatória em nossa casa. Teoricamente era adquirida para a minha mãe, por via da culinária e de conselhos domésticos práticos que carreava (impressionava-me sempre a plêiade de soluções simples para tirar nódoas, que creio que ninguém depois seguia). A "Agenda Doméstica" era (e é) editada pela Porto Editora, razão por que tinha grande divulgação no Norte do país. Nunca fomos tentados pela concorrência, a "Agenda do Lar", editada por "O Século", que se via mais em casas de Lisboa. Ah! e a "Agenda" era e continua a ser assinada por "Maria Raquel", um nome que sempre me pareceu mais fictício e mais próximo da histórica "Marta Neves" (que por muitos anos nos bombardeou com ofertas "imperdíveis" das Seleções do Reader's Digest).
Manifestamente contra a vontade da minha mãe, suposta destinatária primeira da "Agenda" (como familiarmente era designada), e que por isso sempre protestava levemente, o volume brochado era acaparado, imediatamente após a compra, pelo meu pai e pelo meu avô, durante vários dias, com uma única finalidade: resolver os 12 problemas de palavras cruzadas que a "Agenda" anualmente trazia. Mas o que é que de tão particular essas palavras cruzadas tinham? É que elas eram, de muito longe, das mais difíceis dentre todas quantos se podiam encontrar em jornais ou mesmo em revistas de cruzadismo. Como especial aliciante, ligada à resolução com êxito desses problemas, estavam prémios dados pela Porto Editora.
Recordo-me da imensidão de horas que, de lápis e borracha na mão ("as palavras cruzadas nunca se fazem a tinta", aprendi para a vida), o meu pai e o meu avô dedicavam à descoberta das soluções (que só seriam publicadas na edição do ano seguinte!), comigo a servir, à medida que crescia, de cada vez mais dedicado e entusiasmado ajudante, com uma imensidão de idas ao dicionário - a dúzia de volumes do clássico "Moraes Silva", entre nós conhecido pelo "malho", imbativel no género, de que para sempre decorei as palavras que abriam e fechavam cada volume ("a - armada", "arma de - cestina", "cesto - desvalor", etc).
Estabilizada a solução ao final de algum tempo, enviava-se esta pelo correio e ficava-se a aguardar. Se acertávamos - e não me recordo de termos falhado algum ano -, lá vinham, tempos depois, para nosso gáudio, livros de culinária, dicionários ou outras edições da Porto Editora, a título de prémios. E, na edição do ano seguinte, surgia publicada a lista de quantos tinham acertado. Nessa lista, e por muitos anos, figuravam, referenciadas como hábeis "cruzadistas" que tinham, com êxito, resolvido todos os problemas, algumas dezenas de senhoras de Vila Real (quem lesse a "Agenda", devia ficar com a impressão de que Vila Real era uma "potência" do cruzadismo feminino português), fruto da popular distribuição que o meu pai fazia, pelas pessoas amigas, do resultado do "trabalho" que fazíamos na nossa família. Sempre suspeitei que, na "Porto Editora", Vila Real devia estar sob constante suspeita...
Memórias de um Portugal simples ou, como dizia O'Neill, "incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria".
13 comentários:
Bem interessante o uso dado à agenda doméstica...
Sr. Embaxaidor Marie-Lyse Aston disse "Un optimiste est quelqu'un qui commence à faire ses mots croisés au stylo à bille."
Bien à vous,
Jorge/Georges
Fiquei ontem a saber estar a ser preparado um Dicionário do 25 Abril para ser publicado nos 40 anos desta data. Quem fará a entrada "Diplomacia"?
Mais uma deliciosa recordação da sua infância:)!
Também a minha avó fazia parte da lista que anualmente recebia a Agenda Doméstica e se dedicava a concluir com êxito todas as palavras cruzadas e outras charadas.
Acontece que a minha avó não era de Vila Real. Era de Chaves!
Memorias de uma familia, verdadeiros operarios do conhecimento.
C.Falcao
Em nome da Didas, venho dizer-te que ela gostou especialmente deste post.
Como havia tempo, noutros tempos, para se fazerem palavras cruzadas dificeis. Cheguei a conhecer dicionários em francês, elaborados de propósito, para facilitar a conclusão de palavras cruzadas nos jornais franceses. Outros tempos.
Mas eu não sei
Agora fiquei com uma lagriminha a querer saltar. Muito recentemente, eu e os meus primos lembrámo-nos da "Agenda da Avó" como era conhecida entre nós a "Agenda Doméstica".
Isabel BP
A minha mae comprava (nos anos 70) a "Agenda da Mulher". Penso que era editada pela Reader's...ou seria pelo Circulo de Leitores ?
Mas nao tinha palavras cruzadas :(
Recordo-me das ilustrações muito seventies :)
Isto do Google é incrível...e nao é que acabo de encontrar a fotografia de uma Agenda da Mulher que à pouco ainda andava la por casa...a de 1978 !?
http://obrinquedoantigo.blogspot.fr/2012/05/agenda-ilustrada-mulher-1977-e-1978.html
Mas também havia la em casa : a "Economia Doméstica" e a "A Mulher na Sala e na Cozinha" :))))
A minha carreira foi feita em Tabacarias/Papelarias. Vendi muitas agendas-Domésticas, nos anos 60 e 70. Assisti à "queda" da sua procura nos anos 80 e 90. Curiosamente, recordo as últimas que vendi, já no princípio dêste século, às Senhoras derradeiras entusiastas dêste auxiliar da economia doméstica. Excuso-me de mencionar alguns nomes bem conhecidos de ilustres senhoras da Capital que, religiosamente, a adquiriam anualmente. Lembro alguns casos em que era o marido que a oferecia à esposa...
bons os tempos em que em todos os lares havia a agenda, folheada, consultada, anotada, lida por pequenos e grandes...
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