quarta-feira, janeiro 03, 2018

Os “comunistas” da EAA


No jargão das Necessidades, chamava-se EAA. Era a “repartição” da direção-geral dos Negócios Económicos dedicada às relações com os países da África, Ásia e Oceania. Um mundo! Fui lá cair em maio de 1976, depois de ter estado colocado alguns meses no Gabinete Coordenador para a Cooperação, onde se iniciavam as nossas relações de cooperação com as ex-colónias.

Acabado de entrar na carreira diplomática, em agosto de 1975, ao ser-me perguntado que colocação interna pretendia (o recente 25 de abril permitia essa gentileza formal), referi por escrito que queria ir para o serviço de cifra (que tratava das comunicações e exigia grande confidencialidade) ou para o que tratava das relações com a NATO (onde o secretismo era ainda maior). 

Era uma aberta provocação da minha parte: tinha estado nomeado para o gabinete do MNE do 5° Governo provisório (o governo mais à esquerda da história portuguesa) e, antes disso, tinha andado por áreas radicais do MFA. Ao tempo, imediatamente pós-25 de novembro, era olhado nos corredores das Necessidades como um temível esquerdista, ideia ajudada pelo cabelo comprido, o farfalhudo bigode e a minha inicial relutância em usar gravata. Eu não tinha a menor ilusão de que ninguém me mandaria para nenhum daqueles dois serviços! 

Na EAA, onde estive três anos, tive três chefes, com quem sempre me dei lindamente. Os dois primeiros foram breves, tendo o terceiro ficado cerca de dois anos. Este último era um homem suave, de voz baixa, sorridente, um estilo de chefe com quem era muito agradável trabalhar. Politicamente era bastante conservador, mas isso não destoava da tendência esmagadoramente maioritária na casa.

Notei que, logo que chegado, o novo chefe quis fazer um inventário escrupuloso do modo como as coisas funcionavam por ali. E elas funcionavam bem. Deve ter percebido que nós trabalhávamos bastante e de forma dedicada, que não havia o menor atraso, que a repartição não lhe ia criar quaisquer problemas. 

Desde o início, porém, eu havia notado que manifestara forte curiosidade a meu respeito e de um outro colega - sobre a nossa vida, sobre os nossos gostos, etc. E registei que, por uns meses, esteve particularmente vigilante quanto ao nosso trabalho. Mas tudo sempre em modo sereno e educado. Depois, deu-nos completa autonomia, confiando plenamente em nós. E criámos um ambiente de trabalho excelente.

Passaram muitos meses. Um dia, eu e esse meu colega fomos colocados no estrangeiro, deixando o nosso chefe para trás. Pouco tempo depois, ele próprio seria colocado algures como embaixador. É sempre assim, na carreira.

Decorreram entretanto muitos mais anos. Já não sei onde e como, voltei a encontrar esse meu antigo chefe, de quem ficara amigo e que me fez então uma curiosa confissão: “Quando fui chefiar a EAA, foi considerada uma “missão de risco”. Porquê? Porque você e o outro colega estavam lá. Nem imagina os alertas que recebi! Que eram dois comunistas, gente perigosíssima, que era preciso vigiar com muito cuidado!” Para logo acrescentar: “Mal eu sabia que não iria ter o menor problema, que vocês eram funcionários dedicados e cumpridores, que tudo ia correr às mil maravilhas!”

Não resisti a perguntar-lhe: “E quando é que concluiu que nós não éramos comunistas?”. A resposta foi deliciosa: “Eu, de início, não cheguei a perceber se vocês eram ou não eram comunistas. Mas posso dizer uma coisa: por essa altura, no contacto convosco, cheguei a pensar que se todos os comunistas fossem como vocês, então os comunistas não eram assim tão maus...”

(Dedico este texto aos colegas da EAA: ao Mário Santos, "comunista" como eu, ao Ina Amaral Neto, que cedo desistiu de nos aturar e foi ganhar o seu, ao Malheiro Dias, que nos trouxe a alegria e o gesto largo das andanças sul-americanas, à memória do Ribeiro Gomes, companheiro inesquecível de comezainas e bebezainas e, "last but not least", à nossa benjamim e beleza inspiradora da repartição, a Ivone Carvalho, que, com outro nome, me apareceu por este facebook e me sugeriu este post)

terça-feira, janeiro 02, 2018

O lóbi das mangas soltas

Nestes dias que passo por Vila Real, não consegui ainda aferir se o famoso “lóbi das mangas soltas” continua a vigorar pelas ruas da cidade. O que é esse lóbi? O que o carateriza?

É um vício antigo, geracional, em que provavelmente algumas pessoas nunca repararam. Há por Vila Real, desde há muito, um bando de maduros, renovado pelas gerações, que nunca veste a samarra, a gabardine ou o sobretudo. Coloca essa peça de vestuário pelos ombros e passeia-se sempre dessa forma, faça frio ou chova. Se a temperatura desce, ou a água puxada a vento ameaça a integridade do resto do vestuário, o membro do lóbi tem por gesto reflexo cruzar à frente, com as mãos, a cobertura que traz aos ombros, assim se aventurando, inclinado, cosido às paredes, pelas ruas da urbe. Mas - nunca por nunca - ele cederá a esse gesto de fraqueza que significaria vestir a peça, porque nunca dispensa o ar “négligé” que a prática de a colocar pelos ombros encerra. Talvez porque, à chegada ao café ou à tasca ou a casa, isso lhe permite, displicentemente, deixar cair o adereço sobre uma cadeira ou pendurá-lo num bengaleiro.

O meu querido e velho amigo Zé Araújo, também conhecido por “Foquita”, há muito desaparecido, era um dos mais visíveis cultores dessa arte. Jamais aquela samarra negra lhe foi vista vestida, mesmo nos dias em que o “alvo manto de neve” (“imaginativa” linguagem da imprensa local, repetida a cada nevão, desde as calendas) cobria a sua Avenida Carvalho Araújo. Nunca cuidei em inquirir da razão de fundo desse hábito, mas não me admiraria se me retorquisse, com a ironia seca no esgar, de que “não se deve dar muita confiança ao chiasco”.

segunda-feira, janeiro 01, 2018

Os outros


Embora nascido em Ponte de Lima, o meu pai era de Viana do Castelo. Adorava a sua cidade, a família que tinha por lá, os amigos de infância e aqueles que aí fora criando ao longo da vida. Vivia, desde há muito, em Vila Real, um “exílio” que lhe não podia ser mais confortável e feliz. 

Regressar a Viana era, contudo, outra coisa. Pelo Verão ou em outras férias, as conversas com a mãe, os irmãos e os sobrinhos, bem como com os amigos, na Café Bar ou no Girassol, faziam parte da rota de alegria que era esse regular mas episódico reencontro com a sua terra.

A vida foi fazendo o seu curso. A família de Viana foi desaparecendo, os amigos que por lá tinha também. Cada visita àquela cidade, onde eu teimava sempre em levá-lo, no final da vida, à procura desse outro tempo, foi-se tornando para ele mais penosa, mais nostálgica, cada vez mais vazia de gente e cheia de melancolia. 

O meu pai viveu até aos 97 anos. Nos últimos anos, já não tinha amigos de infância, pior, já não tinha amigos da sua geração ou mesmo da geração imediatamente posterior. A certo passo, percebi que a recordação do passado em Viana, deixou de ter qualquer interesse para ele. Evitava conversas sobre isso. Não gostava de ver fotografias antigas, imagino que porque estas lhe lembravam tempos de uma outra felicidade (e nós sabemos que a felicidade do passado é quase sempre “mais feliz” do que aquela que vivemos). 

Nos seus últimos tempos, o meu pai passou a resistir, quando eu lhe sugeria darmos uma saltada a Viana. Um dia, poucas semanas antes da sua morte, depois de um almoço nas Pedras Salgadas, fui conduzindo devagar por várias estradas, como se ao acaso. Ele adormeceu, ao meu lado. Acordei-o com Santa Luzia à vista. “Mas isto é Viana!”, exclamou, sorrindo, de súbito bem feliz. Levei-o à Praça da República, à Caravela. Não perguntou por nenhuma pessoa. Disse-me, no regresso da tristeza: “Já não conheço por aqui ninguém. Ninguém, mesmo!”. Não era verdade, tinha ainda sobrinhos por lá, mas percebi que seria cruel confrontá-lo com caras que lhe trariam o que já era o insuportável peso do passado uma vez mais de volta. Mas não sei se fiz bem.

Há pouco, um minuto depois da meia-noite, recebi uma chamada telefónica que, não tendo nada a ver com o que escrevi, me suscitou fortemente esta evocação, que dedico a um grande amigo que não sei se a lerá.

2018


No que me toca, não me importava nada que 2018 fosse exatamente igual a 2017. Com os muitos amigos que tenho, com os inimigos que se mantiveram ou revelaram (alguns bem patuscos), com a vida que gosto muito de ter. Nem mais, nem menos. Será pedir muito?

domingo, dezembro 31, 2017

A Revolução como comédia


Entrámos no último dia do ano com o programa televisivo "Governo Sombra" a ter como convidado Arnaldo Matos. O atual "dono" do PCTP-MRPP foi recebido com um tom visivelmente complacente pelos "residentes" do programa, ansiosos por lhe extraírem declarações chocantes e expressões radicais, à altura daquilo a que o velho político sempre habituou o seu auditório. Conhecedor do palco que pisava, Matos não se fez rogado e, no meio de elogios táticos aos anfitriões, esteve à altura da "performance" aguardada, chamando "nazis" aos gestores alemães da Auto-Europa e mostrando compreensão pelos ataques do Estado Islâmico. Foi notório o gozo com que continua a ser recebida a qualificação de "social-fascista" que o MRPP sempre aplica ao PCP. É que o MRPP continua a ser o "enfant chéri" (para ser simpático) de certos meios, que sempre o cobrem com uma espécie de juízo de inimputabilidade, que nos dias de hoje o coloca ao nível de uma caricatura de comédia.

Pena foi, contudo, que ninguém tivesse perguntado a Arnaldo Matos com que direito tomou conta do partido, onde não exerce nenhum cargo eleito. É que isso permitiria a este auto-proclamado porta-voz da classe operária e frequentador do Gambrinus esclarecer com que legitimidade é hoje o depositário e usufrutuário da subvenção pública de centenas de milhares de euros atribuídos anualmente ao partido pelo Estado. Em democracia, os partidos têm de ser os primeiros a praticar, no seu seio, regras democráticas; se o não fazem, não devem ter o direito a dispor dos privilégios que constitucionalmente os beneficiam. Ora no seio do PCTP-MRPP, como é público, vive-se hoje uma ditadura interna protagonizada por Arnaldo Matos, que tomou conta da máquina política e financeira, sem ter sido eleito, como ele próprio revelou no programa. 

sábado, dezembro 30, 2017

Erro técnico

Sei lá bem porquê (e se sei, não digo), lembrei-me há pouco de um célebre episódio ocorrido na imprensa portuguesa, nos anos 80 do século passado. 

Era um tempo tenso, em que o declinante poder militar remanescente, embora titulado já pela sua ala mais moderada, causava ainda engulhos a alguns partidos políticos do eixo do novo sistema político, em crescendo de afirmação. Por essa razão, as intrigalhadas sobre o Conselho da Revolução e os eventuais conflitos no seu seio eram constantes.

Por essa época, um semanário destacava-se no serviço prestado a essa ala do espetro político. Era pasto constante de recados desse setor, dava guardida aos seus colunistas furibundos e indignados e, claro, prestava-se a fretes políticos constantes. Ah! E vendia jornais, muitos.

Um dia, o tal semanário desse tempo trouxe uma detalhada descrição de uma reunião do Conselho da Revolução, com a discussão em torno de um tema qualquer então na berra. As posições assumidas e o teor das intervenções dos vários membros do órgão eram desenvolvidos no texto com algum detalhe, revelando que a reunião havia sido tensa e dura.

Tudo estaria bem se ... a tal reunião não tivesse sido adiada! O “jornalista” - a peça era da responsabilidade do diretor do periódico - havia inventado a história de A-a-Z, colocando na boca dos membros do Conselho da Revolução coisas que, claro!, eles nunca tinham dito.

Nesse tempo, sem redes sociais e sem televisão que repescasse o assunto, com a imprensa (mesmo a de linhas políticas diferentes) a respeitar um silêncio de compadrio corporativo, aos leitores pouco mais restava do que falar entre si do assunto e esperar por uma eventual “justificação” no número seguinte do semanário. 

E ela veio! O autor, o “jornalista”, explicou, numa nota, que tinha havido um “erro técnico”: de facto, e em termos práticos, a reunião relatada não se tinha realizado. O jornal “concedia” que esse detalhe não tinha sido tomado em devida conta e, com modéstia deontológica, assumia o lapso. Mas o “jornalista” tinha um argumento fortíssimo. É que, como ele explicava na mesma nota, o seu conhecimento detalhado das clivagens que, sobre o assunto, sabia existirem no seio do Conselho da Revolução era tal que ele tinha a certeza de que, houvesse a reunião tido efetivamente lugar, teriam sido exatamente aquelas as posições que nela seriam assumidas pelos intervenientes citados. Estava tudo explicado! 

O autor deste brilhante argumento foi, mais tarde, professor universitário de... “jornalismo”. Nunca cheguei a matar a curiosidade que tinha sobre se a questão do “erro técnico” alguma vez foi por ele abordada nas “aulas”.

sexta-feira, dezembro 29, 2017

Mandatários da República


Um professor que tive no liceu defendia que “uma das grandes medidas do Estado Novo foi pôr cobro ao cancro que eram os partidos da República”. A diabolização dos partidos políticos fazia parte essencial da ideologia do fascismo de paróquia que tomou conta deste país, a partir de 1926. Mesmo o salazarismo envergonhado que foi o marcelismo revelou-se incapaz de aceitar que quem pensasse de forma diferente podia organizar-se e obter mandatos populares para pôr em prática as suas ideias. 

Nunca estranhei assim que os constituintes de 1976 oferecessem aos partidos o quase monopólio da representação política. Por seu intermédio, tentava-se retomar o exercício da democracia interrompido pelo 28 de maio. E quem, senão os partidos clandestinos, havia sustentado, no essencial, a bandeira da liberdade durante a ditadura? 

O regime que hoje temos parece apenas tolerar, com sobranceira benevolência, qualquer expressão política que se afirme fora dos partidos, procurando quase sempre limitá-la. Com isso pretende evitar o caciquismo, que marcou os anteriores modelos constitucionais, pelo que não estimula plataformas de afirmação de personalidades ou de grupos de interesses com poder de influência. A própria leitura do semi-presidencialismo que prevaleceu na revisão constitucional de 1982, afetando os poderes do presidente da República pactuados em 1976, representou uma deliberada menorização daquilo que pudesse não derivar da pura expressão partidária do poder, com legitimidade concorrencial.

Quero com isto dizer que devemos aceitar que os partidos são os “donos” da nossa democracia? Os partidos não esgotam a democracia, mas não há democracia onde não houver partidos - autónomos, livres e contrastantes. Eles são os mandatários essenciais da vontade cívica, do modo como organizamos o Estado para levar à prática políticas públicas maioritariamente sufragadas. Mas não deixa de ser lamentável que os partidos reajam de forma corporativa e conservadora a tudo quanto possa afetar o oligopólio de que dispõem. 

Porque lhes é conferido um poder constitucional único, os partidos têm o dever da absoluta transparência e devem garantir a democraticidade no seu funcionamento interno e no modo como atuam no sistema de representação política. Fraudes como hoje são o MRPP, onde dirigentes não eleitos se locupletam com fundos públicos, ou os Verdes, uma sucursal política do PCP, representam manchas tristes no nosso sistema partidário.

Um escândalo rebentou agora a propósito da fiscalidade dos partidos. Com todas as suas inegáveis disfunções, a nossa democracia sai-nos cara? Sustentar os partidos tem um custo elevado? Talvez tenha, mas a liberdade não tem preço e os partidos são apenas o outro nome da democracia.

(Nota final: este foi o ano da morte de Mário Soares)

quinta-feira, dezembro 28, 2017

Intoxicações

Na madrugada de quinta-feira, olhando na televisão as primeiras páginas dos jornais, deparei com uma notícia no “Público” que tinha a certeza de ser falsa: os nomes de João Soares e de Gabriela Canavilhas, antigos ministros da Cultura, estariam a ser cogitados pelo governo para a presidência da agência de notícias Lusa.

Não tinha falado com ninguém, desconhecia, em absoluto, a questão da futura liderança da Lusa, mas só se o governo de António Costa tivesse ensandecido de uma vez por todas é que, numa conjuntura política como a que vivemos, se atreveria a nomear, para dirigir a agência oficiosa de notícias, um membro do seu grupo parlamentar. Por outro lado, era bizarríssimo que dois antigos ministros da Cultura aceitassem colocar-se sob a tutela de um seu sucessor. E que ele os escolhesse...

Dos primeiros comentários surgidos nas redes sociais sobre a “notícia” depreendeu-se logo o que aí vinha: acusações de instrumentalização política, “jobs for the boys” e coisas assim. As partilhas foram muitas, o Twitter ferveu, o Facebook rugiu. Eu diria mesmo, se tal não fosse um pouco cruel, que se levantou um “panteão noturno de indignação”. Esse era, como é evidente, o objetivo da “notícia”.

Só que (desta vez...) não havia qualquer “panteão”. Gabriela Canavilhas veio a terreiro desmentir a sua indigitação e João Soares, das suas férias cubanas, disse que “nunca ouvira falar de tal possibilidade” nem tal “lhe passara pela cabeça”. Claro! E o governo, horas depois, revelou o nome escolhido para o cargo - naturalmente, um nome do jornalismo.

Quando, finalmente, abri o “Público”, vi que conseguiu encher uma página (!) com esta patética inventona, num texto assinado por uma jornalista que tenho por séria e que terá agora o ensejo de revelar a mentirosa e intriguista “fonte” que lhe passou a “informação”, isto é, escrever em letra de forma o nome da pessoa que a vigarizou e a utilizou, com óbvios desígnios político-partidários. 

É que se David Dinis quer dignificar o nome do “Público” não pode dar ideia de que se deixa instrumentalizar, por “dá cá aquela palha”, só porque está por aí na moda dar pancada no governo. Não é que ele, governo, por vezes, não mereça ou se não ponha a jeito para tal, mas então que isso seja feito com base em verdades indesmentíveis.

quarta-feira, dezembro 27, 2017

O Alto de Espinho




Há dois dias, na Gomes, alguém me disse que tinha vindo do Porto pelo Alto de Espinho. Invejei-o.

O Alto de Espinho é o cume da estrada do Marão que une Amarante a Vila Real. Quando, um dia, o Dr. Ladislau, um bracarense que foi meu excelente professor de Geografia no liceu, me falou pela primeira vez no Khyber Pass, esse lugar mágico da montanhosa fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, consagrado na mitologia da História e na tragédia da política, foi do Alto de Espinho que eu logo me lembrei. O Alto de Espinho é Khyber Pass a que temos direito...

Se Trás-os-Montes fosse independente, os nossos guardas fronteiriços tinham casernas no Alto de Espinho. Antes da construção do IP 4, que facilitou a vida e ofereceu a morte a muitos automobilistas, o Alto de Espinho era “a sério”. Por ali passava uma estrada estreita, marcada por uma placa a-preto-e-branco que separava os distritos de Vila Real e do Porto. A partir dali, qualquer que fosse o destino, era "sempre" a descer, pelo que o Alto de Espinho oferecia, a todos nós, um a sensação de “alívio”.

Para quem, como os vila-realenses, vinha pela terrível e belíssima estrada saída de Amarante - passando por Padronelo (onde se ia pelo pão), Larim, Ansiães e Eido (cuja placa de trânsito teve um dia de ser reduzida para evitar acrescentos inconvenientes de uma letra...) -, a caminho da Pousada (das primeiras do país, hoje passada a patacos pelo grupo Pestana), depois de centenas de curvas, o Alto de Espinho deixava Vila Real “já ali”, a 18 km. 

“Já chegaram ao Alto de Espinho”, dizia-se dos ciclistas, nas etapas que acabavam em Vila Real, na informação colhida na rádio. É que, do Alto de Espinho à cidade, era “um saltinho”, ele era a soleira de Vila Real.

No Alto de Espinho eram recebidas as autoridades que vinham “lá de baixo”, de Lisboa, os presidentes, os ministros e gente assim. Quando o Sport Clube de Vila Real obtinha uma das suas raras “performances” futebolísticas, ia-se ao Alto de Espinho receber a “caravana”. E se a neve caía no Marão, lá iam as televisões filmar, sem imaginação, uns populares de gorro a atirarem bolas uns aos outros, entrevistando de caminho, nesse cenário, um garboso GNR de samarra oficial a recomendar prudência na condução, sempre com discurso de relatório-notícia.

Se a IP 4 já tinha tirado grande parte do “charme” ao Alto de Espinho, o túnel do Marão foi o golpe de misericórdia nessa fronteira natural de Trás-os-Montes, para cá da qual os que cá estão criaram a ilusão poética de mandar alguma coisa.

Amanhã, prometo!, vou passar pelo Alto de Espinho.

terça-feira, dezembro 26, 2017

Nós e a Espanha

Ferreira Fernandes definiu no DN, com sábia simplicidade, a glória de ser português: “De cá é a moça que diz ao pai alentejano: ‘Vou casar’. E depois os dois falam, falam, do trabalho do noivo, se é bom rapaz... E a conversa acaba sem que venha à baila o rapaz ser transmontano”.

Da Gomes e da esquina da Gomes


Sabem o que é a Gomes? É provável que a maioria dos leitores deste espaço não saiba. Tal como acontece em quase todas as cidades, Vila Real tem um local de café de culto. No nosso caso, é a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Historicamente, distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser um pouco mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, o Plácido já não estranhava ver a gente atravessar a rua.

A Gomes começou na vizinha “Gomes velha", nos anos 20 do século do mesmo número, onde me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e em que hoje ainda estaciona essa figura de bem que é o seu filho e meu amigo Tito Gomes. Por lá se vai pelo bolo-rei e pela bola de carne, pelas "cristas de galo", pelos “éclairs” ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" (que ideia foi essa de lhes mudarem o recheio?!) de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz.

Foi depois construído, nos anos 50, o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que, durante décadas, ninguém viu funcionar. Tinha, no alto, um mastro com uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta, pela noite dentro, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi o primeiro café de Vila Real onde as mulheres podiam. com naturalidade, sentar-se sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre em cima) com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada de uma senhora na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a parte “social” da Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes, sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo em detalhe para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", tipo “polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam alto, para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do meu desaparecido amigo Zé “Foquita” Araújo, de samarra pelos ombros), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, que foi lugar dos jornais com estaca de madeira e onde, durante muito tempo, esteve situado o telefone preto (“chamam ao telefone o senhor...”). Por muito tempo, essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria o que isso é, mas quem não for doutro tempo de Vila Real sabe lá quem foi o Achilles!) induziam timidez nos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio do pessoal sentado no “balcão” ou de costas para as “grades”.

No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que em tempos se prolongava pela esplanada que aí havia, mas com esta agora misteriosamente reduzida ao largo do Pelourinho. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas ao Afonso - a alma atenta e sempre simpática do serviço, um pilar da casa cuja dedicação e importância espero que seja bem entendida pela gerência.

Foi pela Gomes que comecei a parar, ainda nos meus tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política.

Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste espaço me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram por algum tempo ao Governo civil.

A Pastelaria Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi de grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da “Situação” ou da “Oposição” - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem.

Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. Por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada. O pessoal, embora sempre simpático e educado, tem em alguns casos um estilo profissional “pela rama”, de recrutamento aparentemente errático e excessivamente rotativo. Talvez o defeito seja meu, que venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José.

A Gomes é já uma instituição e as instituições têm rituais sem os quais a sua identidade de esvai. Não se lhe pedem grandes mudanças (até se agradece que as não façam), requer-se apenas constância e perseverança na atitude profissional de uma casa que, tendo hoje uma nova frequência e diferente clientela, tem obrigação de conservar as caraterísticas que a qualificaram como a sala de visitas da cidade. Atenção a isto, ó gente da Gomes!

Ontem, dia de Natal, não foi “dia de Gomes”. Mas há um lugar que nunca "fecha" e à volta do qual é a própria cidade que gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do Pelourinho. É que uma coisa é a Gomes, outra coisa é a esquina da Gomes, consagrada como tal por uma placa da confraria dos “Pyjamantes”, um prestigiada tertúlia vila-realense.

Por essa esquina nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, essa é a sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que no vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outro), o que, nesta época natalícia, é logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que utilizada até aos Reis.

Por ali se passeiam, nos dias 25 de dezembro e seguintes, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas de véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, uma memória sedimentada desde a infância ou aprendida por adesão voluntária ao espírito do Marão.

A Gomes e a sua esquina continuam, contra ventos e marés, a ser o lugar geométrico afetivo de Vila Real. Alguns dirão: a Gomes já não é o que era! Eu digo: deixem estar a Gomes como está, conservem-na com carinho e prestarão um inestimável serviço à identidade de Vila Real. Mai’nada!


(Em tempo: este texto recupera partes de um post publicado em 2012)

26 de dezembro


Foi há uns bons anos. Íamos de viagem e lembrei-me de um restaurante de que ouvira falar, numa localidade que ficava em caminho. Telefonei a reservar. Pela reação do meu interlocutor, percebi que devia ter poucos clientes. Era 26 de dezembro, dia seguinte ao Natal.

O restaurante era numa moradia isolada, com as várias dependências da casa transformadas em salas de refeição, dotadas de certa privacidade. Hesitando entre duas áreas, que estavam desertas de clientes, sentámo-nos onde nos apeteceu, nos muitos lugares disponíveis. 

Contudo, ninguém aparecia. Minutos passados, levantei-me e fui pelo corredor. Encontrei uma pessoa que me pareceu ser o dono. Desculpou-se com a falta de pessoal, após um feriado. Pelo barulho, deduzi, contudo, que havia outros clientes, "lá dentro", em área mais próxima da cozinha.

Decorrido algum tempo, tivemos finalmente os menus. Lá conseguimos pedir os pratos, com todo o resto (pão, couvert, lista de vinhos) a chegar com imensa dificuldade. Mas acabámos por ser servidos. Depois, foi uma longa espera. Ninguém vinha atender a mesa. 

Para grandes males... Decidi telefonar, pelo telemóvel, para o próprio restaurante. Respondeu-me a voz do cavalheiro de sempre. "Somos os clientes da sala de entrada. Pode vir atender-nos?" O homem nem queria acreditar, mas logo se despachou pelo corredor, chegando com um sorriso embaraçado, com menus na mão.

Dia 26 de dezembro, com a "ressaca" do Natal, é sempre uma data complicada.

segunda-feira, dezembro 25, 2017

Nem a tropa...

Foi num café do Porto, perto da Boavista, onde eu procurava concentrar-me. Na tarde da passada quinta-feira, tinha dois artigos para enviar para jornais e ainda necessitava de arrumar as notas da apresentação de um livro que, dali a pouco, iria fazer na Casa da Música.

Nunca fui grande adepto de ler ou escrever em cafés. Disperso-me com facilidade e as conversas distraem-me. Por isso, quando vi um cavalheiro bastante idoso sentar-se ao lado de outro que, desde há minutos, tinha ocupado uma mesa ao meu lado, pressenti que o meu sossego estava a terminar. Demorei pouco tempo a ter de concluir isso mesmo. Mas como os dois cavalheiros, gente na casa dos oitenta, não tinham tirado os sobretudos, nem sequer os chapéus, tive alguma esperança em que o interlúdio na minha concentração acabasse por ser breve. Nisso enganei-me.

A conversa revelou-se apocalíptica, no estilo “taxista” fino, de ambos os lados: “A culpa foi do Afonso Henriques, que dividiu a península”; “Eles hoje são uns piores que os outros”; “Os comunas tomaram conta de tudo”; “O Costa e o Vieira da Silva devem estar metidos naquilo da Raríssimas até ao pescoço”; “O fim do Ultramar acabou com Portugal”; “Este regime acabou”; “O Marcelo é um banana” e coisas assim. Salazar não veio a jogo, mas estava subentendido como um referencial comum.

Foram aí uns dez minutos neste tom, ”um diz mata e outro diz esfola”, como pensava já difícil de escutar, em 2017. Até que chegou o “grand finale” (e foi-o apenas para mim, porque me levantei, saí e fui à procura de outro poiso):

- Você sabe o que se estava a precisar? Era de um golpe militar, que varresse esta gentalha toda e pusesse ordem nisto!

- Qual quê! Já não há tropa decente para fazer isso! A última vez que o fizeram, no “vinte cinco do quatro”, saiu um regime de esquerda. Isto já não se endireita...

E andava eu a queixar-me de algumas conversas em clubes privados!

sábado, dezembro 23, 2017

A aletria da Cimpor e outros doces


O’Neill considerava-nos “o incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria”. Acompanho o poeta neste requebro melancólico e tenho para mim que a aletria do Natal faz parte da nossa identidade afetiva.

Há uns anos, aqui por Vila Real, na altura das Festas, falhou a aletria. O túnel do nosso contentamento ainda não tinha sido construído e a neve ou o gelo não deixavam passar os camiões no Marão. 

Foi o bom e o bonito! A cidade agitava-se, na Gomes e na esquina do Zézé trocavam-se boatos (“Parece que vem pela Régua...”, “Há a ideia de a trazer de Chaves...”), as cozinheiras desesperavam. O espetro de um Natal sem aletria pairou no horizonte. A meio da tarde do dia de consoada, surgiu, finalmente, uma luz! De casa, recebi um telefonema, imagino que em voz baixa, de quem tinha obtido o santo e a senha de fonte A1, como se diz na tropa: “Passa pelo Minipreço! Dizem que já há aletria por lá. Traz três pacotes”. (Nesse tempo, eu “podia” frequentar outras lojas além do Pingo Doce...). 

Entrei e logo estaquei: como é que era o aspeto da aletria? Só a conheço nas travessas, já amarelada pelos ovos, com a canela a pontuar, pronta a comer. (Isto de ter fama - e algum proveito, vá lá! -de gastrónomo e não saber estrelar um ovo acaba por não ser muito prestigiante). Embatucado pelo embaraço, perguntei a uma cliente se me podia ajudar. “É o senhor embaixador, não é?” Era. Riu-se e lá me levou à aletria, na zona das massas. Cheguei a casa impante. Pela cidade, o drama tinha passado. 

A aletria e os pudins, além da sopa dourada, dos sonhos e das rabanadas, fazem parte daquele tipo de coisas que, desde há vários anos, já são obtidos por impessoal “outsourcing”, embora sempre de “gente de confiança”, sem que o Mário Centeno se meta na transação. Mas nem sempre foi assim. Para além da obrigatória aquisição dos imbatíveis pudins das irmãs Coelho, atrás da Sé, cuja recolha implicava uma condução cuidadosíssima na tarde da consoada, houve sempre pessoas amigas da família que cuidavam em apaparicar-nos a glicose e os trigliceridos. Ainda aí estão hoje as fantásticas rabanadas da Alice, como o foram os deliciosos sonhos da Dona Auta ou o imbatível doce de xila e ovos da Mariazinha Rua. 

Um Natal, cá por casa, mudou-se a origem da aletria. Quando o novo produto se provou, ele ganhou, num segundo, um qualificativo que lhe ficou para sempre: a aletria da Cimpor. Dura, sensaborona, sem a menor graça, sem descolar da travessa, parecia ter “levado” cimento na receita. Nos anos seguintes, o tiro foi retificado e tudo voltou à normalidade que estas coisas devem ter.

Estivesse eu em Chaves e meteria cunhas para ter, neste Natal, a aletria que se serve no Aprígio. Comi lá, há semanas, uma das melhores aletrias que provei em toda a minha vida: solta sem ser aguada, doce sem ser enjoativa, com a textura certa abaixo do “al dente” e aquele gosto de boca final, onde o sabor da canela exterior se junta criativamente com o longínquo travo a limão. O Aprígio passou, para mim, a ser o “benchmark” da aletria, isto é, exatamente o contrário da aletria da Cimpor.

Correios líbios



Foi em dois anos consecutivos: 1976 e 1977. Por razões profissionais, tive de me deslocar à Líbia. Nesse tempo, o envio de postais era um hábito que mantinha com regularidade, sempre que ia a algum destino estrangeiro mais bizarro. E a Líbia era, claro!, uma terra bizarra...

No primeiro desses anos, enviei uma meia dúzia de postais, a familiares e amigos. Regressado a Portugal, verifiquei que ninguém tinha recebido. Levei aquilo à conta da desorganização do serviço postal “tripolitano” e nunca mais pensei no assunto.

No ano seguinte, na nova visita à terra do senhor Kadhafi, reeditei o gesto de escrever uma palavras nuns postais manhosos que consegui comprar na receção do hotel. Lembro-me da descrença que me invadiu ao entregá-los. Pensei para comigo: vai acontecer-lhes o mesmo que aos do ano passado...

Estava enganado. Os postais chegaram. Melhor: chegaram, precisamente no mesmo dia, os desse ano e os do ano anterior! Os destinatários estavam banzados com a minha generosidade epistolar. Telefonei a companheiros de viagem, que tinham tido uma experiência exatamente igual e também se interrogavam com o sucedido.

Passei estes quarenta anos com a dúvida: o que teria acontecido? Haveria um cacifo de Portugal, pouco ou nada usado (nessa altura, quase não havia rasto de portugueses na Líbia), onde os nossos anteriores postais tivessem ficado a apanhar areia do deserto, tendo agora sido descobertos com a chegada de nova correspondência? Conto esta história há vários anos e nunca resolvi o mistério. 

Lembrei-me disso ontem, ao referir por aqui a minha saga com os (atuais) Correios portugueses. Estar-se-ão a transformar em líbios? Sugiro que, no “logo” da empresa, troquem o cavalo por um beduínico camelo.

Correios


Estava à espera, com alguma ansiedade, pelo resultado de uma análise clínica. Distraidamente, havia sugerido que ma enviassem pelo correio.

Dia 19, telefonei para o laboratório. Haviam enviado pelo correio na véspera, dia 18. (Pedi para fazerem uma cópia, passei por lá a levantá-la e resolvi a minha ansiedade injustificada: estava tudo bem!).

Ontem, dia 22, pela tarde, a carta do laboratório ainda não tinha chegado a minha casa...

Que saudades que eu tenho dos Correios de outros tempos! 

Quantos abraços de Boas Festas não se irão perder pelo caminho neste Natal, nas mãos de uma empresa que presta um dos serviços mais antigos do país e que hoje é uma sombra daquilo que foi.

sexta-feira, dezembro 22, 2017

Lembrei-me da Liberdade


Há pouco, ao ver uma placa de estrada para Coimbrões, lembrei-me da Liberdade. A Liberdade era a mulher do Sebastião, um alfaiate de Coimbrões, em Vila Nova de Gaia, que um dia decidiu transformar a loja num lugar de petiscos. Largou a profissão, a Liberdade pôs as suas qualidades gastronómicas a render na cozinha e assim nasceu um restaurante. Um dos pratos famosos da casa era o Bacalhau à Liberdade, que alguns erradamente achavam que era um petisco "político". 

Quem me ensinou o lugar, há muitos anos, foi o Afonso Praça, um jornalista transmontano, fundador de "O Jornal", amante de boa mesa e conhecedor dos melhores poisos gastronómicos do país. O Afonso já desapareceu há muito, a Liberdade e o Sebastião também. O lugar mantém-se, reformado e com nome mudado, mas sem a Liberdade não me apetece voltar lá.

2017 - o ano de Trump

O mundo mudou por virtude da eleição de Trump? Ou o surgimento de Trump é igualmente consequência do estado do mundo e dos efeitos que isso teve na potência que, no Ocidente, nos habituámos a ver liderá-lo? Seria Trump plausível, como escolha presidencial, se acaso fossem outros os equilíbrios prevalecentes à escala interna americana e no plano global?

O mundo exterior não viu chegar Trump. Acordou tarde para o que lhe pareceu ser uma caricatura grosseira e de protesto de uma certa América “enraivecida”, marginalizada face às consequências da partilha do progresso e excluída pela aceleração da modernidade produtiva. Confiou em que, tal como sempre acontecera no passado, os Republicanos acabariam por escolher alguém da sua elite para representar também essa “América profunda”, que era conhecida dos filmes mas que nunca ninguém acreditou que pudesse ser projetada no poder em Washington. 

O tal mundo de fora não se preparou para que essa América chegasse algum dia à Casa Branca. Em especial, nunca acreditou que isso viesse a acontecer imediatamente após um presidente que, como ninguém, havia simbolizado a consagração da emancipação étnica, um sonho de esperança que fora de Lincoln a Luther King. Nunca, depois desse mito que se chamou John Kennedy, o mundo fora tão maioritariamente adepto de um chefe de Estado americano como o foi de Obama, um homem que assumiu um discurso humanista, recheado dos melhores valores e que saía da função presidencial com uma notável taxa de aprovação. 

A surpresa, contudo, não parou aí. A América que comandara a criação do modelo institucional multilateral, que fora a campeã do livre mercado, que desenvolvera no seu seio todo o arsenal teórico do capitalismo, essa mesma América surgia agora com reflexos de potência temerosa, cheia de tiques protecionistas, oposta aos acordos de livre comércio que desencadeara, acossada pelo poder económico-financeiro da China, desdenhosa da Europa cuja união ajudara a promover. O isolacionismo não era, por ali, um reflexo novo, mas o modo como surgiu foi inédito. É que, por algum tempo (pouco), essa América chegou mesmo a colocar em causa o seu papel de líder da segurança ocidental, mostrando uma bizarra afeição a um poder iliberal e autoritário como era o da Rússia de Putin. 

Por todas as más razões, não podemos fugir a uma c-onclusão: o ano de 2017 é o ano de Trump. É que, mesmo como um poder negativo, os EUA continuam a sobredeterminar a agenda global. Tendo feito desaparecer a expetativa de reforço dos mecanismos multilaterais, nomeadamente na área comercial e ambiental, lançando um desafio inédito ao trabalho da ONU, incendiando o Médio Oriente - com o acicatar da Arábia Saudita, a desconfiança sobre o compromisso nuclear com o Irão e, agora, com a decisão sobre Jerusalém-, alimentando uma linguagem jingoísta sobre a Coreia do Norte, mantendo uma estranha ciclotimia na relação com a China, os Estados Unidos parecem apostados em inverter aquele que parecia ser o seu lema de interesses do passado: serem respeitados e não temidos. Além disso, Washington introduziu um inédito fator de incerteza e imprevisibilidade na projeção internacional do seu poder, atitude que está muito mais próxima da dos regimes autoritários do que de uma das mais afirmadas democracias históricas do mundo. Basta observar o caráter desorientado de Londres e de Berlim, dois aliados tradicionais, para se perceber como se romperam profundamente os equilíbrios de confiança.

Nestas ocasiões, costuma haver estratégias alternativas, mas o facto é que não parecem surgir ideias brilhantes para ultrapassar este estado de coisas, salvo esperar por um improvável “impeachment” ou por uma não reeleição de Trump, a qual, aliás, não é implausível. Estamos assim perante um ambiente confinado a um mero controlo de danos, dos quais, sejamos justos, os Estados Unidos são a primeira vítima.

Com Trump, 2017 foi um ano complexo para o mundo. Especular como teria sido com Hillary Clinton na Casa Branca não deixaria de ser um exercício interessante, porque há também muitos que pensam que a agenda da candidata derrotada trazia riscos sérios no quadro europeu, no relacionamento com a Rússia, que poderiam ter conduzido a consequências dramáticas. Pode ser que sim, mas o sentimento maioritário parece ir no sentido de considerar que pior do que Trump seria impossível.

Senhor Presidente



Há já bastante tempo, por esta altura, a segunda página do “Expresso” trazia-nos sempre um balanço sobre o ano de mandato do presidente da República de turno. Assinava-o Marcelo Rebelo de Sousa. Depois, na TSF, o chefe de Estado do momento tinha direito, com toda a certeza, a uma professoral nota, dada pelo comentador mais temido do país. Mais tarde, nas televisões (nunca na SIC, porque as coisas são o que são), essa avaliação crítica chegava-nos com a regularidade da aletria. 

Esse tempo acabou. O comentador de então mudou de estatuto e cabe-lhe agora, pela vontade inequívoca dos portugueses, o papel de comentado. Os “tudólogos” televisivos encarregar-se-ão (curiosamente, na SIC) dessa tarefa, com o insuperável rigor da sua subjetividade. Mas cada um de nós fará também a sua avaliação, porque somos nós, os que votaram ou não neste presidente, quem tem o direito maior sobre o seu destino político.

Julgo não estar a generalizar sem legitimidade se disser que os portugueses fazem, nos dias de hoje, uma avaliação francamente positiva sobre o exercício do presidente da República. À direita, alguns terão superado o trauma inicial de assistir ao que parecia um “namoro” com a Geringonça, continuando a não apreciar o que entendem ser a banalização da sua presença e da sua palavra. À esquerda, começa a gerar-se o grupo dos “eu bem dizia!”, mas há também muito quem tenha memória e se congratule ao fazer o fácil contraste com passado. Enfim, nada que não fosse expectável.

Que farei com esta presidência?, perguntar-se-á hoje o titular de Belém. O senhor presidente é o melhor conselheiro de si próprio, porque a sorte que teve na vida deve-a, em escala esmagadora, apenas a si mesmo e à sua auto-confiança. Mas exatamente por isso, permita-me que lhe diga, pode correr o risco de pensar que nunca se engana e de sentir que raramente tem dúvidas (onde diabo é que já ouvi isto?). E o mundo pode trazer-lhe surpresas.

Por isso, senhor presidente, não querendo fazer o papel dos “visiteurs du soir” que François Mitterrand acolhia no Eliseu, ao baixar do sol, gostava de dizer-lhe que, não tendo votado em si mas encarando poder fazê-lo no futuro, espero sinceramente que continue fiel à imagem de um homem de Estado que não se sente tentado, de forma artificial, a fazer reequilíbrios político-partidários. Todos sabemos que eles podem facilitar manejos numa certa leitura do semi-presidencialismo, mas gostava também de lembrar que eles afetam esse valor supremo no “portfolio” de um político que é o seu crédito de confiança, o qual, lembro, não é sinónimo de popularidade.

Por isso, senhor presidente, nestas excelentes Festas que lhe desejo, gostava que no nosso “bolo rei” continuasse a sair aos portugueses a prenda e não a fava.

quinta-feira, dezembro 21, 2017

Kohl ou a Europa das emoções

Há muito que se espalhou pela Europa a saudade de uma geração de líderes que, em momentos que a História haveria de reconhecer como determinantes, assumiram atitudes que o futuro coletivo consagraria no destino do continente. Mais do que outros, por razões óbvias, os dirigentes alemães estiveram, desde os anos 50 do século passado, sob um escrutínio particular. Numa esquizofrenia que alguma insegurança ajuda a explicar, a Europa passou de um tempo em que desejou manter uma Alemanha frágil para aquele em que ansiou por uma Alemanha que fosse, ao mesmo tempo, forte e solidária, uma espécie de “bom gigante”. 

Helmut Kohl, que desapareceu em 2017, está, ele próprio, na charneira dessa mudança de atitude europeia. A sua grandeza reside, precisamente, no facto de personificar, tornando-os compatíveis, dois projetos que mudaram a face e até o lugar estratégico do seu país no continente: a reunificação alemã e os passos no aprofundamento do projeto europeu. A sua imagem de mão dada com François Mitterrand, por iniciativa deste, no cemitério de Verdun, continua a comover-me tanto como ver bandeiras alemãs e francesas, lado a lado, junto às tumbas na Normandia. 

Vi Kohl, pela primeira vez, numa reunião europeia, em 1996. Era uma figura imponente, que contrastava positivamente com a agitação histriónica de Chirac. Eu tinha o testemunho de muitos que assistiram a Kohl ser sensível aos problemas portugueses, na década de integração que o nosso país então tinha percorrido. E, até à sua saída de cena, pude confirmar que essa atitude se manteve.

Guardo ainda para sempre uma imagem insólita: em junho de 1997, em Amesterdão, no intervalo de um Conselho Europeu, vi Kohl avançar pelo centro da sala, em fúria e aos berros, para o primeiro-ministro holandês Wim Kok. O confronto físico entre essas duas figuras chegou a parecer quase inevitável. Kok tinha feito uma “esperteza”, como presidente da sessão, dando por aprovado um texto que sabia ir colocar Kohl em conflito com os seus “länder”. 

Sou um nostálgico dessa Europa de emoções, confesso.

(Artigo que hoje publico a convite da revista “Visão”)

quarta-feira, dezembro 20, 2017

Voos

A propósito de todos os sucessivos azares que têm vindo a surgir, nos últimos meses, no percurso do governo de António Costa - alguns por culpa própria, outros gerados pelos acasos da vida e todos potenciados pelos seus adversários -, lembrei-me de uma (sábia) máxima de Jacques Chirac: “les emmerdes, ça vole toujours en escadrille”...

terça-feira, dezembro 19, 2017

Coroliano


Há umas semanas. contei por aqui uma história que tinha como protagonista principal um velho colega de liceu, em Vila Real, com o nome de Coroliano Gonçalves Clemente. Posso agora revelar que a ideia me surgiu ao saber que ele estava muito doente, querendo assim prestar-lhe uma modesta homenagem.

O episódio que referi no texto incluia uma brincadeira musical, que envolvia indisciplina académica, em que o Coroliano e eu, com mais dois amigos, havíamos estado envolvidos. Soube que um familiar leu então ao Coroliano, que estava já hospitalizado, o meu post e foi-me dito que ele, não só se alegrou com a lembrança, como reproduziu ipsis verbis aquela cantilena da nossa adolescência.

Acabo de saber que o Coroliano morreu. Neste momento triste, para a sua família e amigos, devo dizer que me regozijo pelo facto de poder ter contribuído por um instante de felicidade desse meu velho amigo.

Fica aqui esta nota com uma imagem de Vila Real do “nosso tempo”.

Boas Festas


segunda-feira, dezembro 18, 2017

Círculo

                                  

Almocei hoje no Círculo Eça de Queiroz. É um clube privado de que sou sócio, criado nos anos 40 do século passado, num local discreto, sem o menor sinal no exterior. O Círculo é seguramente menos conservador do que são o Tauromáquico, o Turf ou o Pé Leve. Mas é um pouco menos “aberto” do que o Grémio Literário. 

Este pequeno universo de clubes privados, a que só se acede convidado por sócios e se é membro por “patrocínio” de associados com muitos anos “de casa”, podendo a admissão demorar meses ou mesmo anos, situa-se num espaço geográfico limitado, em torno do Chiado. 

Todas as capitais e grandes cidades do mundo têm clubes desta natureza, sendo Londres aquela em que se encontram exemplos mais históricos. Mas o Porto também tem, no Portuense, um dos mais exclusivos clubes do país. 

Por ali se almoça, por ali se conversa ou toma uma bebida ou um chá, por ali se leem jornais ou revistas. Ali se fazem almoços de trabalho. 

O Círculo organiza conferências e palestras, às vezes bem interessantes. A memória do patrono, Eça de Queiroz, está um pouco por toda a parte, desde logo no desenho das portas, com o 202 em metal no puxador, a lembrar o mítico número da porta do Jacinto, a personagem principal de “A Cidade e as Serras”, na sua casa nos Campos Elísios, em Paris. Ah! O Círculo admite senhoras, prática que, diga-se, não é generalizada...

Vou tentar dizer isto de uma forma elegante: o ambiente maioritário no seio dos membros é fortemente conservador, havendo sócios que ainda integraram governos de Salazar e alguns outros que, se calhar, continuam a sentir a falta dele... Nas novas gerações, predominam claramente pessoas que têm opções políticas de direita. Há já uns tempos, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez uma intervenção num jantar coletivo no Círculo. A certo momento, passou por uma mesa onde eu estava e disse: “Ah! Era você! A mim bem me parecia que, desde lado da sala, soprava um vento de esquerda...”

Para agravar ainda mais a impressão de “horror” que alguns leitores estarão já a ter de um local que não conhecem, vou contar a experiência que foi a primeira ida da minha mulher ao Círculo, já lá vão muitos anos. 

Estávamos sentados a fazer horas para o almoço. Num canto de sofás da sala principal, um grupo de cavalheiros ia-se formando, seguramente tendo combinado para aquele dia uma refeição conjunta. Eram todos bastante idosos e eu conhecia de vista algumas daquelas caras. A certo passo, entrou na sala, dirigindo-se ao grupo, mais um conviva, da mesma faixa etária. De um dos sofás, ouviu-se então: “Olha lá! Ainda bem que chegaste! Estávamos aqui numa dúvida: em que ano é que entraste para a Legião?”. Estavam a falar da Legião Portuguesa, a mais fascista das instituições da ditadura salazarista. A minha mulher ouviu, olhou para mim e perguntou-me: “Não seria melhor irmos almoçar a outro sítio?”. Convenci-a a ficar.

Como disse, almocei hoje no Círculo. Duas horas bem passadas num local simpático, sereno, já bastante aberto a um mundo bem distante daquele em que foi criado. Ah! Mas a gravata é, claro, exigida aos homens que o frequentem. Mas, se alguém se esquecer, na portaria há muitas para empréstimo...

(Já estou a imaginar a interrogação de alguns leitores: mas que graça acha este tipo a pertencer a coisas destas?)

Ramalho Eanes


No dia 21 de dezembro, quinta-feira, pelas 18.30 h, irei apresentar na Casa da Música, no Porto, o livro de Isabel Tavares “Ramalho Eanes - o último general”.

Joaquim Pais de Brito


Conheci Joaquim Pais de Brito em 1973, em Paris. Ele vivia na Casa da Noruega, na cidade universitária, e eu tinha ido a França “ver” as eleições, em março desse ano, poucas semanas antes de ingressar no serviço militar. Nesses dias de um inverno gélido, criámos uma amizade calorosa que dura até aos dias de hoje. Se o “crime” já tiver prescrito, um dia contarei por aqui como conseguíamos ir almoçar à cantina de Jussieu, com o António Belém Lima, todos com o cartão universitário com a fotografia do Joaquim (que já então tinha pouco cabelo...). O José Carlos Serras Gago, que nos acompanhou nessas andanças, é testemunha desses tempos estimulantes, em que acabávamos as tardes espreitando cursos livres na universidade de Vincennes.

O Joaquim é uma das grandes figuras da Antropologia portuguesa. Foi diretor do Museu Nacional de Etnologia durante mais de 20 anos e professor universitário emérito do ISCTE. Dirigiu uma das mais interessantes coleções de edição sobre a realidade portuguesa, a “Portugal de perto”, da Dom Quixote, sendo ele próprio autor de um belo livro sobre Rio de Onor, a histórica antiga comunidade agropastoril perto de Bragança, que já havia merecido uma obra pioneira de Jorge Dias.

Na passada sexta-feira, no espaço da Ferin, que agora ganhou uma maior dimensão e riqueza bibliográfica com a associação com a “Ler devagar”, o Joaquim Pais de Brito apresentou um novo livro: “Muitas coisas e um pássaro”. Como posso descrever esta obra? Não são memórias, sendo-o bastante. Não é um livro científico, mas a ciência está por todo o texto. Não é um ensaio, tanto mais que tem conversas conduzidas por três nomes femininos, mas é alguma filosofia do mundo e da vida que se espelha por todo o texto. Há fotografias, há desenhos, principalmente do pássaro que acompanha o Joaquim desde a Nelas natal, onde ele vive agora com a Fabienne.

O João Rodrigues, editor do livro e alma da “Sextante” (tive a honra de ser por ele editado, quando andou pela Dom Quixote) fez uma das mais originais apresentações de um autor a que tenho assistido. Talvez porque ambos se conhecem desde o início dos anos 60, do Citac, em Coimbra, onde iniciaram cumplicidades que se prolongam até hoje. Depois de uma leitura crítica, o Joaquim fez uma excelente intervenção, solta, viva, alegre e profunda. 

Na assistência, eu estava com o António José Massano, que me havia feito conhecer o Joaquim nesse ano longínquo de 1973, e com o João Fatela, que também cruzei pela primeira vez em Paris, na mesma ocasião. Acabámos a noite bem amesendados a reforçar a amizade. A vida é (também) isto.

domingo, dezembro 17, 2017

A cicatriz


Como é sabido, a televisão foi, logo desde sua criação, em 1957, um instrumento importante da propaganda política do Estado Novo, em especial à medida que a sua cobertura se alargava pelo país. Basta lembrar o modo como Marcelo Caetano, a partir de setembro de 1968, usou esse veículo de influência, para fazer as suas “conversas em família”.

Creio que desde cedo, o regime abriu espaço a que alguns jornalistas, oriundos dos órgãos mais fiéis ao regime, ali fizessem intervenções temáticas, fosse sobre política interna, fosse sobre temas internacionais. Muitos se lembrarão de Barradas de Oliveira, de João Coito ou de Dutra Faria. Alguns eram mais dotados do que outros para prestações televisivas mas, verdade seja, quase todos os serventuários escolhidos para essas ações de propaganda tinham alguma qualidade intelectual. 

Uma noite, em Vila Real, em data que não consigo precisar, mas que se situa nos anos 60, estávamos a ver televisão e a RTP “passava” Dutra Faria, que era então diretor da ANI, a agência de notícias pública, antecessora longínqua da Lusa. Desdobrava-se, imagino, numa qualquer diatribe anticomunista ou contra os "terroristas" que operavam nas colónias. 

Nas casas portuguesas, a televisão costumava ficar aberta desde que a programação se iniciava, às 19 horas, até terminar, antes da meia-noite. A noite, em família, era passada a ver televisão, fosse o que fosse que estivesse “a dar”. O meu pai mostrava total indiferença face à palestra a que só não lhe punha termo porque, havendo um só canal televisivo, o "zapping" era então um conceito desconhecido. 

Num certo momento da charla, chamou a minha atenção:

- Já reparaste naquela cicatriz que o Dutra Faria tem sobre a sobrancelha direita?

De facto, mesmo no preto-e-branco da imagem desses tempos (e, ligeiramente, na única fotografia que dele encontrei, na net), era óbvio que o homem tinha uma marca particular na pele.

- Eu assisti ao momento em que o Dutra Faria "ganhou" aquela cicatriz. Foi há quase 40 anos...

Olhei, com alguma surpresa, para o meu pai. Ele era o que se pode chamar um republicano "dos quatro costados". Embora inserido na família vila-realense da minha mãe, parte dela conservadora, nunca escondera a ninguém o seu pendor oposicionista. Tinha-me levado pela mão a ver Humberto Delgado, em 1958, quando visitou Vila Real na campanha presidencial, e, em 1969, viria a apoiar com entusiasmo a minha participação na aventura eleitoral local, na CDE, contra o regime, estando ele próprio impedido de fazê-lo pela sua qualidade de funcionário público. Mas, que eu soubesse, e precisamente por essa razão, nunca tinha participado em qualquer combate político, pelo que fiquei à espera da explicação. E ela veio.

- Julgo que foi em 1930, na "casa de pasto" Liège, que existe no alto do elevador da Bica, à esquerda de quem desce. Era um restaurante popular, de galegos, que os funcionários da Caixa Geral de Depósitos, como eu, então frequentavam. Um dia, no período do almoço, assisti a uma cena que me ficou na memória para sempre. Um grupo de "camisas azuis" - os nacional-sindicalistas, dirigidos por Rolão Preto - começou, numa mesa, a dar vivas à contra-revolução e ao fascismo. Os tempos políticos eram muito tensos. A ditadura estava em pleno e os nacional-sindicalistas andavam então numa grande euforia, julgando ser possível instituir em Portugal um modelo próximo do fascismo italiano. Pouco tempo depois, Salazar iria pôr um ponto final nesse radicalismo, obrigando o próprio Rolão Preto ao exílio. Os comensais das restantes mesas olhavam o ruidoso grupo, mas mantinham-se em silêncio. Dei-me então conta que um homem que almoçava sozinho, que vim a saber depois que era nosso colega na Caixa, começou a agitar-se e, a certa altura, não se conteve e gritou: "Viva a Democracia!" ou “Viva a República!”. Os nacional-sindicalistas, sentindo-se provocados, levantaram-se e cercaram a mesa do republicano. Este, ameaçado por todos os lados, pegou numa garrafa e enfrentou o grupo agressor. Na luta que se seguiu, um dos "camisas azuis" foi atingido no sobrolho e começou a sangrar. Aproveitando a confusão, o republicano conseguiu fugir pela calçada da Bica abaixo. O ferido era o Dutra Faria e o republicano chamava-se Carvalho Araújo. Tu sabes quem é...

Claro que sim! Era o Carvalho Araújo, um homem que fora afastado da função pública pelo Estado Novo, por atividades oposicionistas, nos anos 30. Mais tarde, depois de uma vida difícil e tumultuosa, regressou a Vila Real, já nos anos 60. Muito radical e com algum mau feitio, acarretava consigo uma aura de resistente à ditadura, que muito impressionava a nossa geração. Trabalhei com ele, ali mesmo, em Vila Real, na “batalha” oposicionista de 1969. Viria a ser reintegrado na função pública, por curto período, antes de ser aposentado, depois do 25 de abril. E, curiosamente, viria a ser colocado, durante esses meses, sob as ordens do meu pai.

Nessa noite, fiquei a saber a quem se devia a (republicana e vila-realense) cicatriz que nunca mais abandonou o rosto de Dutra Faria. 

A principal avenida de Vila Real chama-se Carvalho Araújo, herói da Marinha na primeira Guerra Mundial, seguramente ascendente familiar do nosso resistente local.

(EM 2013 FOI PUBLICADO NESTE BLOGUE UM POST SOBRE ESTE TEMA QUE CONTINHA ALGUMAS INCORREÇÕES, PASSANDO ESTA A SER A VERSÃO VÁLIDA)

sábado, dezembro 16, 2017

Saudades de Paris?


Por um qualquer fenómeno que não consigo explicar, mas que sempre me serenou os dias, nunca senti a menor saudade dos tempos que passei pelas cidades onde vivi. “Fechei” sempre bem todas essas experiências, trouxe delas amigos que as “prolongam” e algumas histórias na memória. Às vezes, contudo, surgem pequenos pormenores que me acordam uma inevitável nostalgia.

Foi o caso de hoje, ao ter conseguido comprar, aqui em Lisboa (milagre dos milagres!), uma razoável baguette de pão. Lembrei-me então - isso sim!, com saudade profunda - das baguettes de Paris, de sair da loja com elas ainda quentes, da sua textura estaladiça, do seu sabor único (em especial do delicioso crestado dos extremos), do prazer de as ir “debicando” pela rua, enfarinhando o sobretudo, sob o olhar divertido (mas também indiferente, porque essa é a graça de Paris) dos passantes. 

É que o pão “de rua” traz em mim memórias antigas, das padarias que também “cediam” manteiga, pelas madrugadas: a da rua Alexandre Herculano, em Vila Real, a do Cais Novo, em Viana, uma que havia na rua do Breyner, no Porto e outra em Santa Catarina, em Lisboa. Não eram baguettes, era pão “de bico” saído diretamente do forno, embrulhado sabe-se lá como (bom dia, Deco e Asae!), que sabia pela vida! Há dias, reparei que, do lado contrário do quarteirão onde vivo, existe uma padaria a funcionar pela noite dentro. Ando cá com uma vontade de dar lá uma saltada, uma destas noites...

Paris? Qual Boulevard Saint-Germain, quais livrarias, qual Lipp, qual carapuça! Do que eu tenho saudade é do pão!

Justiças


O acolhimento em Portugal, após a sua fuga de Timor-Leste, do casal de cidadãos portugueses condenados pela justiça daquele país suscita uma questão muito séria. Não faço a menor ideia se são culpados, da mesma forma que ignoro se são inocentes. Só sei que foram condenados.

Um certo relativismo cultural, que tem atrás de si uma subliminar xenofobia e mesmo algum racismo, considera que certos sistemas judiciais são “inferiores” aos outros, pelo que há alguma legitimidade em fugir à observância das suas regras, em especial quando estão em causa cidadãos “nossos” e decisões que entendemos serem controversas

É evidente que a segurança jurídica não é igual em toda a parte, que há sistemas mais perfeitos do que outros. Mas, se um país como Portugal assume a sobranceria, muito pós-colonial, de contestar a legitimidade de órgãos de soberania de países em desenvolvimento que foram suas colónias, então não se deve admirar e tem de aceitar que outros também desconfiem da nossa justiça.

Um dia, nos anos 90, quando trabalhava na nossa embaixada em Londres, ocorreu, no Algarve, o assassinato de criança britânica. A imprensa tablóide inglesa desencadeou uma campanha contra a insegurança em Portugal, alegando a incompetência da nossa polícia e, no fundo, acusando “os portugueses” (querendo, com isso, significar, uns “selvagens”) pela morte da menina. Foram tempos complexos, com deputados e outras figuras a visitarem, façanhudos, a embaixada, como se o Reino Unido não fosse, ele mesmo, uma “escola” criativa dos mais hediondos crimes, como a história e a literatura regista.

Semanas depois, confesso ter sentido algum gozo íntimo quando, afinal, veio a descobrir-se que o assassino era... um inglês, amigo da família. A imprensa acalmou, por algum tempo, “recolhendo a viola no saco”, nomeadamente quanto à capacidade da nossa polícia.

Pensava eu que o assunto estava encerrado quando, um dia, recebi representes de uma estrutura chamada “Prisioners abroad”, uma associação que defendia os direitos dos cidadãos britânicos detidos no estrangeiro. A filosofia básica subjacente à associação era considerar que o sistema prisional da esmagadora maioria dos países onde estavam encarcerados britânicos seguia práticas que se afastavam do modelo ideal - que, não surpreendentemente, era o britânico... 

Um membro da delegação da “Prisioners abroad” insinuou, no início da conversa, que as autoridades policiais portuguesas poderiam ter forjado uma acusação contra o cidadão britânico. Recordo-me de, com a calma possível, lhe ter dito: “Se ouço a senhora repetir isso, coloco-a fora da porta da embaixada em 30 segundos”. A mulher emudeceu e os seus colegas passaram então a expressar-me as suas preocupações pelas condições de detenção do seu compatriota. Perguntei-lhes: “Mas têm alguma queixa sobre o modo como o detido britânico está a ser tratado?”. Responderam-me que não mas que, no passado, sabiam de casos em que as coisas se tinham passado em moldes que se afastavam dos padrões que entendiam por adequados. Levantei-me, dando a conversa por terminada, dizendo-lhes: “Se acaso, no futuro, tiverem queixas concretas, terei muito gosto em canalizá-las para as nossas autoridades, embora o canal adequado deva ser o advogado do suspeito. Nesse caso, agradeço que me façam chegar isso por escrito. Poupamos tempo”. E levei-os à porta.

sexta-feira, dezembro 15, 2017

Carta ao Nuno Brederode Santos

Olá, Nuno

Desculpa o atraso, mas nos Correios, desde que foram passados a patacos, uma carta parece-se com os comboios espanhóis do antigamente: “llega cuando llega”. 

Ontem, não me esqueci, fez 73 anos que começou a batalha das Ardenas, que os alemães tiveram o cuidado de fazer coincidir com o dia em que tu nasceste. Sabe-se quando uma batalha começa, não se sabe quando vai acabar. É como as vidas, Nuno.

Não nos temos visto, nos últimos tempos. Nem tu nem eu, embora por razões diversas, temos passado pela nossa (bem mais tua do que minha) “mesa dois”. Ao que consta, aquilo, lá pelo Procópio, vai de vento em popa, para alegria do iban da Sedonalice. Parece um apeadeiro do 28, cheio de turistas, já só se ouve falar línguas da estranja. Dizem-me que, há dias, saltou da mesa do piano uma frase sonante. Soou a uma boca do Strecht mas, afinal, era um expatriado da Guiné-Equatorial, país onde, graças à CPLP, vai para cadeia quem não souber declamar Álvaro de Campos - diz-se que também vão por outras razões menos literárias, mas devem ser “fake news”, uma coisa que por cá agora há muito.

Deste nosso país, Nuno, nem sei bem o que te diga. Se eu te contasse que o Centeno vai presidir ao Eurogrupo, acho que me acreditavas tanto como se te dissesse que o Louçã e o Schäuble tivessem escrito um artigo a duas mãos para o boletim da IV Internacional. Na política, este foi um ano do nosso duche escocês: houve coisas muito boas na economia, ganhámos a Eurovisão (não estou a gozar!), Portugal andou cada vez mais na moda e parecia que o mundo nos sorria. Depois, um dia, tudo isso ardeu e este nosso velho país, afinal desordenado e tão frágil, acabou por vir ao de cima. E o governo do nosso amigo António Costa, que, tal como o Mendes Cabeçadas no 28 de maio, está cada vez mais “ministro de todas as pastas”, entrou numa deriva de trapalhadas. Deve ser por isso, por saber-se imbatível mestre neste domínio, que o Santana Lopes, que estava posto em sossego naquele papel de Madre Teresa que lhe caia tão bem, deu um golpe de Misericórdia e está a concorrer à liderança do PSD - é verdade, Nuno, ainda não nos recompusémos do abalo da saída do Passos, essa Axa que abençoava a Geringonça. Do Marcelo, que te hei-de dizer? Espalha imensos afetos, o país continua a gostar dele e a esperar que permaneça fiel àquilo que justifica essa afeição.

Caro Nuno, recebe um abraço do tamanho deste mundo onde fazes muita falta.

Francisco

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.