terça-feira, outubro 04, 2016

A minha amiga búlgara



Eu também tenho uma amiga búlgara. Chama-se Irina Bokova e é concorrente ao lugar que António Guterres pretende obter nas Nações Unidas.

Tornei-me amigo de Irina há quase vinte anos, quando ambos éramos secretários de Estado dos Assuntos europeus, nos nossos respetivos governos. Estive em Sófia a seu convite, tive o gosto de a receber em Lisboa por esse tempo.

Um dia, o partido de Irina perdeu as eleições na Bulgária e ela abandonou o governo. Quando mais tarde voltei a Sófia, tendo já outra contraparte búlgara, pedi ao nosso embaixador para, num jantar na sua residência, convidar Irina Bokova. Recordo a nota comovida que então deixou, por eu ter querido permanecer fiel à amizade criada. E ficámos em contacto, a partir de então.

Tempos mais tarde, um amigo comum, Georgios Papandreou, que viria a ser primeiro ministro grego, convidou-nos a ambos para integrar o círculo de reflexão política que anualmente organizava na Grécia, durante uma semana, o Symi Symposium. E assim, durante cinco anos, com as nossas famílias, encontrámo-nos nesses interessantes debates. E vimo-nos, entretanto, com as nossas famílias, em Nova Iorque, num divertido jantar.

Quando ainda estava no Brasil, já de partida para Paris, recebi um recado de Irina. Ela tinha desempenhado as funções de ministra dos Negócios Estrangeiros do seu país e concorria ao lugar de diretora-geral da Unesco. Gostava de ter o apoio português para essa sua pretensão e, com naturalidade, recorria ao seu amigo português. Fiz as minhas sondagens em Lisboa, tendo verificado não ser ela o candidato que Portugal iria apoiar. Disse-lho já em Paris, num jantar que lhe ofereci. Nada mudou entre nós.

Mesmo sem o voto inicial português, Irina Bokova foi eleita diretora-geral da Unesco. Vimo-nos bastante em Paris por esse tempo, mesmo antes de, por uma suprema ironia, eu próprio ter sido entretanto nomeado, em acumulação com o cargo que já desempenhava em França, como delegado português junto da Unesco. A última vez que encontrei pessoalmente Irina Bokova foi na visita de despedida que lhe fiz, em inícios de 2013, em que lhe ofereci uma peça fotográfica de Jorge Molder, enviada por Portugal para a coleção artística da organização, numa decisão sob minha insistência que teve a assinatura do então secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas.

Irina Bokova surgiu entretanto como candidata a secretário-geral da ONU. Portugal tinha o seu próprio candidato, António Guterres. Que, naturalmente, foi o meu candidato. Mas, nem por isso, vou perder essa querida amiga búlgara, de há muitos anos.

Kristalina

Não sei como se dirá, em búlgaro, "meter os pés pelas mãos". Mas foi isso mesmo que Kristalina Georgieva fez ontem, quando perguntada pelo embaixador ucraniano sobre o que pensava do conflito no seu país. Essa hesitação e a cara desencantada do diplomata podem dizer tudo. Procurar não antagonizar Moscovo, no dia em que a Rússia repetiu formalmente, para quem quisesse ouvi-la, que deseja para secretário-geral da ONU uma mulher do Leste europeu, é a cartada evidente de Georgieva. Kristalina.

segunda-feira, outubro 03, 2016

Jornalismos


Tenho vários amigos e conhecidos na classe dos jornalistas e orgulho-me muito dessas relações. Contudo, e não raramente, no passado, insurgi-me junto de alguns deles pelo facto de demonstrarem uma grande complacência para com pecadilhos evidentes dos seus colegas de profissão. Até há pouco tempo, era muito raro ver-se um jornalista a criticar outro, no próprio espaço mediático, dando ideia de que prevalecia entre eles uma espécie de corporativismo inibidor. Ou alguém se lembra de ouvir vozes escandalizadas da classe quando o "Independente" adotou práticas miseráveis?

Mais recentemente, algum aventureirismo travestido de jornalismo, assente em comportamentos à margem de um mínimo de deontologia, terá levado certos profissionais a achar que "o que é demais é erro" e que seria importante, para a própria salvaguarda do prestígio da classe, separarem as águas e darem pública nota de que não se sentiam bem acompanhados por alguns daqueles alegados colegas. E as coisas não se ficaram por ali, ajudadas também pelo mal-estar criado por alguma partidarização de setores da profissão, tendo os blogues como plataforma mais evidente dessa deriva e os gabinetes e outros empregos como recorrente porto de abrigo.

A grande prova de que as "comadres" se tinham zangado, em definitivo, surgiu na questão que opôs o "Público" ao "Diário de Notícias", por ocasião das desconfianças entre Belém e S. Bento, que o livro de Fernando Lima agora desenvolve. Em especial a partir de então, a conflitualidade entre os grupos de "media" parece ter potenciado essa clivagem e, em várias outras ocasiões, que os "leaks" judiciais seletivos no caso Sócrates agravaram, "o caldo entornou-se" entre os nossos jornalistas. O último episódio desta saga terá sido o livro de José António Saraiva e as repercussões escandalosas que ele teve.

Como consumidor mediático, confesso que me sinto muito mais confortado agora, ao ver os jornalistas sérios erguerem a sua voz para isolarem aqueles que mancham a dignidade da sua profissão. Pode ser que, com isso, se tenha quebrado a "paz dos cemitérios" em que se vivia, mas a frontalidade que hoje se adopta no seio da classe parece prenunciar que caminharmos tempos bem mais dignos. E transparentes, que é o que a mim mais me importa.

domingo, outubro 02, 2016

Memórias

Com alguma frequência, conto por aqui episódios ocorridos em circunstâncias em que estive presente a título profissional, as mais das vezes como figurante ou testemunha, dado o caráter de simples "ator secundário" que um diplomata ou um "junior minister" geralmente têm. Procuro ser tão rigoroso quanto possível quanto à fidelidade à verdade, tanto mais que estas coisas ficam escritas e são passíveis, agora ou no futuro, de aberta contestação ou correção.

Há dias, relatei um determinado diálogo, ocorrido há já alguns anos. Alguém que também esteve presente à cena, lembrando-se apenas vagamente daquilo que eu escrevera, trouxe à colação um outro - e bem mais interessante - momento então ocorrido no curso dessa conversa. Do qual, confesso, eu não me lembrava de todo.

É muito curiosa esta seleção individual de memórias que todos temos. "À la limite", quase se poderia dizer que não há factos: só restam os nossos olhares sobre eles...

Éticas


Há uns anos, perguntei a uma conhecida personalidade política, que havia sido pessoalmente responsável por determinado tipo de ações que tinham vindo a revelar-se deletérias para o interesse público, se não se arrependia das decisões que tomara. Fiquei, confesso!, siderado com a sua resposta: "Não sinto a menor culpabilidade. Eu agi exclusivamente na base das informações que à época tinha, dadas e colhidas por quem me rodeava e em quem eu confiava, na profunda convição de que o que fazia era o melhor para o interesse coletivo. A circunstância dos factos terem vindo a demonstrar que a ação que empreendi não correspondia àquilo que eventualmente teria sido mais adequado fazer é algo que me ultrapassa e pelo qual não sinto hoje, à distância, a menor responsabilidade. Por isso, não me arrependo de nada do que fiz. Aliás, alguém arrepender-se é errar duas vezes."

Na altura, não fiquei muito convencido com a lógica subjacente a este raciocínio. E dei comigo a pensar que havia algo que "respondia" a essa lógica, mas de que eu me não lembrava. Só hoje, ao ler no "The Economist" um texto sobre a "ética de convicção" e a "ética de responsabilidade", suscitadas por Max Weber há quase um século, é que realizei verdadeiramente a razão das minhas dúvidas. Leia-se o texto aqui.

sábado, outubro 01, 2016

Prefácio



Prefácio

No auge da guerra na Jugoslávia, um jornal britânico trouxe uma entrevista com um casal. Ele era sérvio e ela era croata, ou vice-versa, porque isso é o que menos importa. Os dois tinham-se conhecido ainda no país que lhes fora comum e que então estava em curso de implosão. Com alguma naturalidade, ambos se sentiram polarizados por pertenças nacionais opostas, com familiares e amigos a morrerem por essas causas contrastantes. De uma forma que deveria ser então pouco comum, decidiram fazer uma introspeção, à vista um do outro, procurandoultrapassar, pela racionalidade possível, os ódios que atravessavam os dois campos. Em particular, tentaram“desconstruir” os respetivos argumentários históricos, que marcavam as suas diferentes memórias afetivas. E, nesse esforço, fizeram o inventário mútuo de agravos, de conflitos e de razões alegadas para eles, com consequências nos preconceitos e estereótipos. Aparentemente, estavam a ter êxito nessa tarefa, que não devia ter sido nada fácil. O artigo tinha um título que nunca esquecerei: “A guerra dos avós”. Porque era disso mesmo que se tratava.

De alguns países se diz que têm “demasiada História”, querendo-se com isso significar que o peso obsessivo de memória atrapalha o presente e condiciona demasiado o futuro. Juntamente com o Médio Oriente, os Balcãs são, muito provavelmente, das regiões do mundo onde esse fardo excede toda a razoabilidade, carreando para os dias de hoje expressões identitárias em conflito, que estão muito longe de se esbaterem e virem a facilitar amanhã quaisquer compromissos. São terrenos onde às etnias se cumulam as ideologias e as religiões, com nacionalismos doentios a adubarem as emoções, onde as lideranças políticas se reforçam pela execução zelosa da agenda primária dos populismos, ou do revanchismo, sem a menor propensão para pedagogias apaziguadoras dessas mesmas tentações radicais.

Nos tempos em que andei pelas lides europeias, uma das linhas voluntaristas de raciocínio para promover o alargamento da União a vários países assentava na ideia de que a sua inclusão na “casa comum” apagaria, pelo choque de progresso e de bem-estar, todas as tensões interétnicas, os conflitos de identidade intranacional, o problema das minorias. Seria uma espécie de “fim da História” nacionalista europeia, graças a esse redentor bálsamo bruxelense. Ora não seria preciso ir mais longe do que a própria cidade de Bruxelas para se perceber a ilusão ridícula que essa ideia encerrava. E o terrorismo de Molenbeek deu ali um toque trágico àquilo que, até então, era apenas melodramático.

Feito este preâmbulo enquadrador, falemos do livro que o leitor tem diante de si.

Não se estranhe se eu começar por dizer que o autor, o general Carlos Branco, é um homem desencantado, porque acho que é isso o que o seu texto evidencia. E esse facto não é mau, diga-se desde já.

Carlos Branco faz parte de umas Forças Armadas portuguesas que, tendo tido responsabilidades operacionais em três teatros simultâneos de operações, sob ditadura, sentiram o orgulho de ver essa mesma instituição ser o sujeito ativo da libertação interior do seu próprio país. Além disso, já em democracia, e numa sequência a que muitos atribuímos alguma naturalidade, ele viu Portugal empenhado em colaborar na promoção da paz e segurança em vários cenários internacionais. O general Carlos Branco, que tem uma experiência profissional muito valiosa nesse domínio, percebeu, e bem, que do destino de Portugal como entidade responsável à escala global fazia parte integrante a promoção da imagem de um país “honest broker”, capaz de fazer pontes e estimular diálogos, reputação que deveria, com vantagem, ser utilizada para reforçar o seu papel na ordem externa, muito embora, aqui ou ali, também torne claro que entende que o modo como o país se organiza para tal deixa ainda muito a desejar. E, do mesmo modo, lamenta, como eu lamento, que nos dias que correm se esteja a perder um precioso “tempo” de intervenção, com efeitos negativos a prazo na preservação da massa crítica indispensável para tal.

Mas volto ao desencanto. O livro que o leitor tem perante si é, visivelmente, fruto de um trauma e dos estados de alma dele resultante. E isso torna-o num livro muito autêntico, nada “tático” com a revelação da realidade dos factos, tal como o autor os observou ou pressentiu. Se me é permitida uma simplificação,diria que este texto é a expressão do choque de alguém que partiucom imensa boa-vontade e entusiasmo para uma tarefa, a que se entregou com sinceridade e abertura, e que se deparou, para além das insuficiências do próprio país que o enviava, com um mundo concreto feito de agendas diferenciadas, algumas conflituais entre si, construídas de cinismo e de “realpolitik”, se é que um termo não é necessariamente sinónimo de outro. Não que isso não fosse em absoluto expectável, mas o grau e a natureza dessa realidade induziram claramente no autor algumas surpresas, na maioria dos casos menos agradáveis. Este trabalho é a imersão nesse mundo de sombras, de sinais cruzados e deliberadamente equívocos, de cumplicidades e conluios, onde a miséria da guerra vem sempre ao de cima, tudo sobredetermina, com uma crueldade que às vezes a redondeza do discurso político procura iludir.

Não se espere deste livro um retrato linear da Guerra dos Balcãs. Ele é o relato de um conjunto de experiências, diversas entre si, muito bem descritas por quem ousou sempre assumir um registo humano, por onde perpassam sentimento e avaliação ética, de quem não se deixou envolver pelo cinismo frio do “isto é mesmo assim”, com que, muitas vezes, os observadores-participantesabsolvem a neutralidade das suas atitudes.

A escrita é densa, culta, elaborada e informada. Às vezes, é cinematográfica, nos ritmos que impõe, nos cenários que descreve, nas figuras que recorta, com graça e ironia. Tem a leveza de quem agarrou as situações pelo lado humano, às vezes pitoresco, frequentemente trágico. Mas tem o rigor de quem não quis transformar uma experiência profissional forte num arrolamento de “fait divers”. É verdadeiramente a guerra e o mundo à sua volta, às vezes nos seus intervalos, sempre rica empormenores que nos ajudam a entender melhor o espírito, mas também os vícios, das intervenções multilaterais, feitas de compromissos, alguns mais degradantes do que outros.

Tendo como fundo um cenário de forças e de fraquezas, há no texto elementos que nos ajudam a entender melhor o papel dos grandes poderes fáticos, os jogos dos atores principais, a sua cultura funcional, as necessidades de sobrevivência de quantos são obrigados a ter no processo um papel forçadamente secundário. Há ali preciosos “flashs” comportamentais de representantes de países relevantes na ordem global, que nos ajudam melhor a compreender o que se passou, o efeito dos “timings” sobre a evolução dos factos. E tudo isso, no final de contas, conduz-nos a desenhar um juízo muito relativa sobre a bondade objetiva de certas intervenções.

Há neste livro descrições muito fortes, retratos de uma tragédia que espero que conduza o leitor a interrogar-se sobre como foi possível, a escassos quilómetros de países que gozavam de imenso bem-estar e segurança, deixar emergir – e, em alguns casos, impulsionar - em escasso tempo, uma Europa “negra”, feita de ódios extremos, de ausência total de piedade, de inominável barbárie, dirigida por figuras que parecem procurar, por detrás dasvestes retrógradas no nacionalismo e do desprezo étnico, apenas um lugar de apreço na memória mesquinha dos seus, nessa “guerra dos avós” em que apenas foram soldados de mais um episódio.

Há coisas novas e interessantes que Carlos Branco nos revela neste texto, em especial no seu “flashback”, que a História veio a tornar mais do que oportuno, sobre a passagem do islamismo radical por aquela área, num registo que, à época, se bem me recordo, pouco mais passava do que uma curiosidade. Mas também não deixará de ser interessante a leitura, à revelia de outras versões, que o autor faz dos acontecimentos em Srebrenica.E várias outras “novidades”, algumas pouco meigas para certos agentes conjunturais da História.

Embora o recurso a uma narrativa bastante marcada por siglas eacrónimos, essenciais para identificar a multiplicidade de entidades que se cruzam no terreno, possa indiciar, às vezes, um relato demasiado técnico, essa momentânea impressão dilui-se logo na esquina seguinte do texto: o “defeito” que é a grande qualidade deste livro é a firme assunção de uma perspetiva própria, a coragem de tomar posição, valorando aquilo que o autor entende dever merecer um juízo crítico de valor, sem complexos nem peias de qualquer ordem. Este é, também, um livro muito corajoso.

Sem que isso possa ter sido o seu objetivo deliberado, algumas coisas que este livro nos traz relembram que a paz é um valor imensamente frágil na nossa vida coletiva, apenas sustentado pela preservação da força das instituições, dependendo estas da legitimidade que tenham ganho no seio dos povos. Por isso, sendo o mundo multilateral o eixo condutor deste texto, que evidencia muitos dos seus vícios e defeitos, ele continuará a ser, no entanto, a única reserva de esperança para podermos vir a ter um mundo mais seguro e pacífico. E, de caminho, mais justo.

Francisco Seixas da Costa

Outubro de 2016









Balcãs

Estou a escrever um prefácio para um livro sobre a guerra nos Balcãs e, num instante, veio-me à memória um episódio passado em Londres, em 16 de janeiro de 1992.

Creio que foi na Walton Street, não muito longe do Harrods. Era uma bela moradia privada, pertencente a um cavalheiro britânico, de ascendência croata, que a disponibilizara para uma receção comemorativa e que nos recebia à porta. Tratava-se da celebração do reconhecimento pelas Comunidades Europeias (na altura, a União Europeia ainda não existia) da independência da Croácia, que entrara em vigor na véspera.

A Jugoslávia estava então em pleno curso de implosão. No seio das Comunidades Europeias, e sob forte pressão política alemã, a independência unilateral da Croácia (e da Eslovénia) acabara por ser reconhecida. O caso da Eslovénia provocara menos ondas, pelo facto da sua homogeneidade étnica não estar marcada pela existência de minorias sérvias.

No caso croata, a mobilização alemã junto dos seus parceiros, titulada pelo MNE Hans-Dietrich Genscher, fazia regressar (creio que um pouco injustamente) o peso de memória da História: o colaboracionismo dos ustashis croatas com Hitler era um ferrete difícil de apagar, em especial tendo Zagreb um presidente com o perfil de Tudjman. (Um dia, José Cutileiro, enviado especial europeu para a região, referiria à sua frente que o que os croatas haviam feito à minoria sérvia na Krajina podia ser qualificada de "limpeza étnica". Tudjman ter-lhe-á retorquido: "Sempre é melhor do que genocídio, não acha?")

Eu era Encarregado de Negócios de Portugal em Londres, na ausência do embaixador. Drago Stambuk convidou-me a estar presente naquela celebração. Portugal tinha acordado no reconhecimento da Croácia mas, porque o assunto estava longe de ser totalmente pacífico na imprensa e em alguns meios políticos, contactei telefonicamente Lisboa para pedir orientação. Recordo ter recebido a instrução de Pilatos: "Veja como reagem os outros Estados membros e depois faça como entender melhor". Ao longo da minha carreira, assisti muitas vezes a gestos similares que, como se imaginará, eram uma grande "ajuda".

Mas quem era Drago Stambuk? Era um médico croata, com nacionalidade britânica, que ao longo dos anos anteriores fora uma espécie de "embaixador" informal da Croácia. Conheceramo-nos numa visita dele à nossa embaixada e tínhamos mantido a partir de então uma simpática relação pessoal. Drago procurava promover os interesses do seu país de origem e imagino que aquele dia, para ele, fosse a consagração de um sonho: a Croácia era, finalmente, um Estado com independência reconhecida por um conjunto significativo de países europeus. Drago Stambuk, que é um dos grandes poetas do seu país, é hoje embaixador da Croácia e por pouco que nos não cruzámos em posto em Brasília.

Na alegria que lhe estava subjacente, a receção em Walton Street foi bastante deprimente. À parte meia dúzia de pessoas da comunidade croata em Londres, os diplomatas estrangeiros contavam-se pelos dedos de uma só mão e o "Foreign Office" primou pela ausência, não obstante Londres se ter juntado ao consenso comunitário (diz-se que graças à promessa de Genscher a Douglas Hurd de que Bona não se oporia aos "opt out" britânicos na negociação de Maastricht). Não fomos mais de uma quinzena de pessoas naquela sala da bela residência de Walton Street. Já estive em muitas receções "falhadas", mas aquela bateu-as a todas.

Depois, foi o que se sabe: a guerra continuou. Em agosto desse mesmo ano, teria lugar, também em Londres, uma conferência internacional para tentar a paz para a ex-Jugoslávia, a que estive presente, integrado na delegação portuguesa. Tive então o ensejo de olhar, cara a cara, para a quase totalidade dos presidentes-atores daquela tragédia em curso: o sérvio Milosevic, o croata Tudjman, o muçulmano bósnio Itzetbegovic, etc, com os vários "artistas" secundários pelos corredores, entre os quais recordo bem o branco cabelo desalinhado do sérvio bósnio Karadzic. Posso ser sincero? Era tudo um grupo de "lindos meninos do coro", cada um melhor do que o outro, no conjunto responsáveis, cada um a seu modo e no seu grau, por um dos mais sangrentos períodos da história balcânica.

Ontem, num jantar em Lisboa, fiquei ao lado de uma senhora croata. Falámos um pouco de tudo isto, tanto mais que ela esteve politicamente envolvida numa certa fase do processo político do seu país. Confirmei, na conversa, algo que fui aprendendo na vida internacional: por muito que nos esforcemos, nunca conseguimos entender por completo a profundidade do sentimento nacional de um estrangeiro. Ele é produto de uma decantação da sua história, da complexidade única das relações com vizinhos ou outros, do que ficou das lições do passado, tudo isto envolvido numa pulsão emocional onde só muito remotamente espreita a racionalidade.

E agora, se me permitem, regresso ao prefácio que estou a escrever.

(A imagem mostra a belíssima ponte de Mostar, destruída durante a guerra na Bósnia, depois reconstruída)

sexta-feira, setembro 30, 2016

Já combinaram com os russos?


A escolha do secretário-geral da ONU foi sempre um processo de alguma complexidade. Encontrar alguém em quem, simultaneamente, se revejam Estados com interesses contraditórios é uma verdadeira quadratura do círculo. No passado, esse compromisso chegou a ser obtido através de cedências em outras áreas do funcionamento da ONU, atribuindo discretamente a alguns dos principais países envolvidos, isto é, aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, cargos importantes, em jeito de compensação.

Este ano, o novo processo de audições públicas prometia trazer alguma transparência e uma maior objetividade. O método evidenciaria, em princípio, os mais qualificados, o que, no entanto, poderia não garantir os objetivos de quantos entendiam que, desta vez, o lugar deveria ser ocupado por uma mulher, oriunda da zona centro-oriental da Europa, que nunca tinha produzido um SG.

À luz da leitura que faço do modo de funcionamento da ONU e dos seus equilíbrios geopolíticos, sempre achei que seria muito difícil António Guterres vir a ser eleito. Porém, Portugal, nunca tivera alguém tão qualificado e prestigiado para ocupar aquele cargo. Valia a pena tentar! Por isso, fui e continuo a ser um convicto apoiante dessa candidatura, embora, tal como o próprio Guterres, moderadamente otimista quanto ao êxito do empreendimento. 

O modo como as audições ocorreram, e as fantásticas «performances» de Guterres, tornaram-me mais confiante, sentimento que se reforçou com as sucessivas votações indicativas, em que o candidato português se destacou dos demais. Mas algo me dizia, intimamente, que as coisas estavam a correr «bem demais»... Por isso, o surgimento de uma nova candidatura, já numa fase adiantada do processo de seleção, não me surpreendeu. 

Quem segue estas coisas sabia que germinava em setores da direita europeia, em especial no «pangermanismo»,  a vontade de encontrar uma forma de contrariar, com um golpe de bastidores, o sentido do novo modelo de avaliação, cuja resultante final não produzira o resultado «esperado». Com o argumento, simplório e oportunista, de que assim se quer ultrapassar o «impasse» criado, Kristalina Georgieva avança do «banco», a poucos minutos do fim do jogo. 

Agora, a palavra decisiva vai competir a Moscovo: um SG da ONU é sempre alguém que o mundo ocidental propõe e a quem o Kremlin não diz que não.

Ora qualquer brasileiro conhece o significado da frase que serve de título a este artigo. É uma expressão famosa de Mané Garrincha quando, tendo-lhe sido explicado o que deveria fazer para ultrapassar a defesa russa, e achando a tática do treinador simples demais, terá perguntado : «E já combinaram com os russos?». Acho que seria prudente Georgieva inquirir o mesmo de Merkel.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")


Falando de ditaduras

(«Não te metas nisso! Cai-te o Carmo e a Trindade em cima!» A conversa foi ontem no largo do Carmo, no fim de um almoço de amigos. Era a reação à minha ideia de escrever um artigo sobre a relação com regimes que estavam muito longe de ser «apresentáveis», em especial em matéria de Direitos humanos e de respeito pelos princípios essenciais do Estado de direito.)

Há dias, num programa de televisão, a propósito do 11 de setembro, decidi interrogar-me sobre um «segredo de Polichinelo» : depois daquilo a que assistimos no Iraque e na Líbia, com setores da comunidade internacional mobilizados no sentido de processos de «regime change», que acabaram por redundar numa disrupção gravíssima da estabilidade regional, com efeitos comprovadamente deletérios sobre a ordem internacional, será legítimo ter como política a reversão automática de ditadores, arriscando cair em situações potencialmente mais graves do que aquelas que pré-existiam?

No caso do Iraque, uma intervenção americana sem a menor legitimidade internacional, com o apoio seguidista de alguns poderes ocidentais (entre os quais o Portugal do dr. Durão Barroso), resultou num novo regime iraquiano que se consagrou desde o início como um «failed state», abrindo caminho para um grave desequilíbro regional, desencadeando uma dinâmica que acabou no Estado Islâmico. Como dizem os empregados de restaurantes: espero que gostem!

No caso da Líbia, a obscena ultrapassagem do mandato  negociado no Conselho de Segurança da ONU, que tinha como limite a proteção da Cirenaica, acabou por ser aproveitado para derrubar Kadafi, sossegando pelo caminho a consciência de alguns inimputáveis europeus e, simultaneamente, abrindo espaço aos traficantes da morte no Mediterrâneo. Estão contentes?

(Um parêntesis para lembrar, a quem se tiver esquecido, que Hillary Clinton esteve ao lado de George W. Bush na invasão ilegal do Iraque e teve o essencial das responsabilidades na patética dissolução do Estado líbio. O facto de Clinton ser hoje a «nossa» candidata não deve obnubilar a nossa memória.)

A sociedade internacional não é uma congregação de «anjos». A maioria dos países que têm assento nas Nações Unidas ou são ditaduras ou têm regimes cuja observância das mais transparentes regras democráticas é muito discutível. Se um Estado tivesse a ousadia de só se relacionar com regimes «decentes», acabaria confinado a um quadro de relações externas muito limitado. No caso português, desde logo um país com uma imensa diáspora, é um imperativo óbvio de qualquer governo manter um relacionamento funcional tão bom quanto possível com todos – repito, todos - os Estados dos quais dependa o bem-estar das nossas comunidades e onde, simultaneamente, se possa criar um ambiente positivo para a absorção das nossas exportações, uma atratividade para o nosso turismo e a mobilização de investimento direto externo.

Dir-se-á que, ao participar neste «teatro», estamos a encenar uma peça de algum cinismo, de «realpolitik» e de alguma frieza. É uma pena ter de constatar isto, mas o mundo é assim mesmo. No nosso dia-a-dia como cidadãos, todos temos a experiência de termos de nos relacionar com pessoas de quem não gostamos, por ser essa a exigência da vida coletiva. A vida internacional não é muito diferente.

Portugal, na sua atuação externa como Estado, deve contribuir para a promoção dos valores democráticos, para a valorização dos Direitos humanos, para o respeito pelos princípios do Estado de direito. Deve fazê-lo através da sua contribuição e empenhamento no seio das instituições internacionais dedicadas à promoção desses valores. Mas seria totalmente despropositado e desadequado à sua dimensão como país que isso fosse executado no plano bilateral. 

Percebo que possa ser mais cómodo não assumir algumas verdades. Mas nem pelo facto de as não assumirmos elas deixam de o ser. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

quinta-feira, setembro 29, 2016

Shimon Peres


Morreu Shimon Peres, uma figura histórica de Israel, de que viria a tornar-se um dos rostos mais conhecidos no mundo. Com o radicalismo a tomar conta da política governamental israelita, a moderação e o sentido de equilíbrio de Peres, bem como o seu continuado empenhamento no processo de paz com os palestinos, converteram-no numa das vozes israelitas mais escutadas no exterior. Peres desaparece sem ter visto qualquer paz implantada de forma sustentada entre Israel e a Palestina, num tempo em que a vizinhança do Médio Oriente está a ferro e fogo. Nunca chegou a primeiro ministro do seu país, mas teve sucesso como ministro dos Negócios Estrangeiros e ascendeu no fim da vida à chefia do Estado.

Nunca esqueci uma noite em Nova Iorque, em 2002, num jantar para o qual uma associação judaica de amizade EUA-Israel convidara alguns embaixadores. Recordo bem o pesado e incomodado silêncio - e os olhares reprovadores trocados entre os meus companheiros de mesa - quando Shimon Peres defendeu, com vigor, a necessidade de cedências para obtenção da paz com os palestinos. A embaraçante escassez de palmas no final do seu discurso mostrava que os falcões da diáspora eram "mais papistas do que o papa", talvez por ser cómodo defender a guerra por fronteiras impossíveis quando se vive no conforto de Manhattan.

Peres havia-me recebido no seu gabinete de ministro, em Jerusalém, em novembro de 1995. Eu era o "junior minister" dos Negócios Estrangeiros que acompanhava Mário Soares na sua última visita presidencial ao exterior. A meu pedido, o nosso embaixador, Paulo Barbosa, organizara esse encontro. Foi uma conversa muito interessante, na qual Peres me deu a sua leitura sobre o "estado da arte" dos vários "tracks" do processo negocial. Recordo-me as questões que me colocou para tentar perceber se o novo governo português, que tomara posse uma semana antes, pretendia introduzir mudanças no relacionamento de Portugal com Israel. 

O governo israelita não gostara, e fizera-o saber, que nessa visita eu tivesse decidido visitar a "Orient House", o ponto de contacto com os palestinos, em Jerusalém Oriental. Ainda tentaram dissuadir o nosso embaixador dessa iniciativa, mas eu havia recusado liminarmente cancelar a visita.

Peres foi agradável durante essa conversa comigo. Falou bastante da sua longa amizade com Mário Soares, tendo-lhe eu contado que, por coincidência, 17 anos antes, fora o primeiro diplomata português a deslocar-se em trabalho a Israel, num tempo em que Lisboa ainda cultivava grandes distâncias políticas face a Israel. Riu-se quando lhe referi que passara então duas horas no aeroporto de Ben Gurion, em Tel Aviv, a ter de explicar o carimbos de anteriores visitas à Líbia. "E deixaram-no entrar? Devia ter usado outro passaporte".

Dois dias mais tarde, estive com Peres no almoço que o primeiro-ministro Yitzhak Rabin ofereceu a Mário Soares, na sua residência em Jerusalém. Poucas horas depois, Rabin seria assassinado e seria a Peres, no funeral a que Soares e eu nos deslocáramos do Cairo, que eu iria apresentar as condolências enviadas enviadas por António Guterres.

Há dias, em Kiev, num fórum estratégico em que participei, foi feita uma homenagem a Shimon Peres, prenunciando já a sua próxima morte. Notei a genuinidade com que os participantes lhe tributaram o seu respeito. Pode parecer uma banalidade dizê-lo, mas figuras como Shimon Peres fazem falta ao mundo internacional.

quarta-feira, setembro 28, 2016

David contra Guterres

Ontem, numa SMS trocada com um jornalista, escrevi: "há qualquer coisa fácil demais neste processo que me inquieta". Referia-me à acumulação de sinais positivos em torno da candidatura de António Guterres. Estava-me a parecer que quem se lhe opõe não iria ficar de braços cruzados perante a fantástica cavalgada vencedora que o candidato português estava a fazer, no quadro das votações indicativas no Conselho de Segurança. Quem me lê por aqui e por outros locais testemunhará que fui sempre muito prudente na consideração das hipóteses de Guterres, muito embora concordasse que a expressividade do seu destaque perante os seus adversários estava a tornar cada vez mais difícil que o jogo "fosse virado". Mas foi, como a emergência, agora anunciada, de Kristalina Georgieva, bem o prova.

O jogo volta à quadra inicial? Não volta. As votações em Guterres são um "património" muito importante e vai ser difícil revertê-lo. Mas a vice-presidente da Comissão Europeia, apoiada por setores importantes do Partido Popular Europeu, não sairia a terreiro se não tivesse as "costas quentes" e se não fossem minimamente fortes as perspetivas em que a sua ambição se apoia. Angela Merkel e Jean-Claude Junker, figuras cimeiras do PPE europeu - clube político onde também está o portuguesíssimo PSD - são os grande promotores da cartada Georgieva, que se diz que se terá voluntariado a este papel sob a promessa de, em caso de derrota, vir ser a candidata da Alemanha uma eventual sucessão de Junker na Comissão Europeia.

No dia 4 de outubro, quando o P5, os membros permanentes do Conselho de Segurança, tiverem de mostrar as cartas, isto é, revelarem quem vetam, tudo ficará mais claro. Veremos se terão a "lata" de afastar o candidato cuja qualidade relativa ficou bem patente neste processo, cuja transparência acabou por prejudicar os "trade-off" que tradicionalmente eram a regra do jogo. 

Nesse dia, verificaremos se David ganhou a Guterres. Refiro-me a Mário David, o antigo secretário de Estado do PSD que se sabe ser um dos "operadores" da candidatura de Georgieva, sob o impulso do governo húngaro desse expoente da democracia que é Viktor Órban. Claro que ninguém é obrigado, por mero patriotismo, a apoiar António Guterres. Mas parece poder haver alguma esquizofrenia no seio do PSD quanto a este assunto, que ganharia em ser de imediato clarificada: a linha oficial do partido afirma defender a candidatura portuguesa e um dos seus homens de mão no seio do PPE trabalha por Georgieva. Onde ficamos?

1968


Eu tinha vinte anos, nesse final de Setembro de 1968, naquela noite em que, em casa de um familiar, de passagem por Vila Real, vi na televisão um emocionado Américo Tomaz anunciar que ia substituir Salazar por Marcelo Caetano. Não esqueço aquele instante, que pressentia ir ser uma esquina da nossa história política.

Aquele iria ser o último dia de várias semanas em que o poder político da ditadura mostrara, finalmente, que era humano, frágil e suscetível de ser abalado pela saúde do ditador. O país viu-se "voyeur" da luta pelo poder que se sabia estar a ser travada, espreitando, com a curiosidade de quem nada tem a ver com o seu próprio futuro, a coreografia dos dignitários da "situação", da antecâmara do Conselho de Estado às visitas ao hospital da Cruz Vermelha, onde Salazar estava internado. Uma novela que a televisão nos trazia todas as noites (a televisão de então "abria" ao final da tarde), no preto-e-branco da imagem do país político de então.

Um amigo de casa dos meus pais, que assinara as listas do MUD e, anos mais tarde, viria a assustar-se com o 25 de abril, mostrava-se francamente desiludido. Durante anos, tinha proclamado que "gostava que Salazar não morresse na cama" e, agora, isso não iria acontecer. 

Tal como no Totobola, que era então o casino dos pobres, o país fazia vaticínios. "Fala-se muito do Adriano Moreira", diziam uns. "Não, os ultras querem o Antunes Varela, porque o Adriano teve um conflito com o Venâncio Deslandes. Os militares não deixam". Outros interrogavam-se: "E o Caetano? Diz-se que tem as suas "tropas" bem colocadas". O ceticismo opunha-se: "Talvez, mas o episódio da crise académica de 62 pode ter-lhe sido fatal".

Acabou por não ser. Marcelo seria mesmo o escolhido. Fez um discurso de "sim, mas", onde se adivinhava o compromisso que tinha feito com Tomaz e que, no essencial, passava por um imobilismo "de facto" na questão colonial. E daí derivava a "necessidade" da continuidade da ditadura, onde a "primavera política" anunciada por Gonçalves Rapazote, na posse da nova revoada de Governadores Civis, foi uma mera flor de retórica.

Poucos meses depois, a lista associativa universitária em que eu fora eleito acabaria por ser "não homologada" pelo ministro da Educação, o divulgador da História em historietas, José Hermano Saraiva, tio do agora "infamous" José António Saraiva. A vontade democrática, no Estado Novo, estava subordinada ao arbítrio e "old habits die hard". Só o 25 de abril os "convenceu". Não tendo sido possível fazer as coisas através das "armas da crítica", não restou outra solução que não fosse a "crítica pelas armas", para usar conceitos consagrados por um economista alemão cujo nome me está a escapar.

"Eu tinha vinte anos. Não consentirei que alguém diga que é a idade mais bela da vida", afirmou um dia Paul Nizan. Tinha razão, ter vinte anos é ter uma idade como qualquer outra. Mas esse ano de 1968, em que eu tinha vinte anos, seria o ano do maio parisiense, do esmagamento da "primavera de Praga" e do massacre estudantil no México. Por essas e muitas outras razões, não seria um ano igual aos outros. Pelo menos para mim.

terça-feira, setembro 27, 2016

País abafado

Liga-se os canais da dita informação ou os noticiários generalistas e é só futebol, mais futebol e futebol! São horas de treinadores, de imagens de estádios, de camionetas a caminho dos ditos. Depois serão balanços, especialistas, o público cachecolado, jogadores a repetir como sua a linguagem da Bola, do Record ou do Jogo. Ah! E, pelo meio, há os jogos, claro, pretexto para tudo. 

Em que raio de país nos transformámos?! Saberão os portugueses que não há nenhum país no mundo onde as coisas se passem desta forma?! NENHUM!

Europa a dois tons


Estive ontem, sucessivamente, em dois exercícios "europeus".

O primeiro, de âmbito "luso-português". Coube-me coordenar um debate, à porta fechada (e sob a "Chatham House rule", isto é, podendo revelar-se o que se tratou, mas não podendo atribuir-se nominalmente as ideias expressas), com quinze especialistas nacionais, oriundos de diversas áreas. Tratava-se de preparar um documento com perspetivas portuguesas sobre o futuro da Europa, para integrarem um exercício intitulado "New Pact for Europe", organizado por várias fundações europeias.

Não obstante a heterogeneidade dos intervenientes, foi muito interessante constatar uma larga convergência de perspetivas, quer no diagonóstico da situação que atravessamos, quer nalgumas das principais perspetivas para o futuro. Não vou aqui elaborar sobre isto, a montante da síntese que outros têm a seu cargo, mas devo dizer que fiquei impressionado pela maturidade e pragmatismo do que foi dito. Sente-se a existência de um pensamento português sobre a Europa, já muito longe da agenda "paroquial" que fez escola por muito tempo.

O segundo exercício foi bastante diferente. Tratava-se de uma intervenção, num "mano-a-mano" com José Manuel Félix-Ribeiro, sobre geopolítica global, no meu caso competindo-me falar sobre a evolução do quadro dos "global players" nas últimas décadas. A audiência eram estudantes estrangeiros, na grande maioria europeus, pelo que a "questão europeia" acabou por ser o centro do debate, por quase uma hora. Foi curioso perceber as suas diferentes prioridades e preocupações, mas todos com uma agenda muito pertinente. 

A Europa mudou muito, desde os tempos em que me ocupava todos os dias. Faz-me bem "revisitá-la" nestas tarefas pontuais. Porque, qualquer que venha a ser o seu futuro, ele será sempre o nosso.

O debate


Trump perdeu? Não sei. Aos olhos dos seus potenciais votantes aquele estilo é adequado, a vacuidade do seu discurso não é punível. Clinton ganhou? Claro que teve uma melhor "performance", numa perspetiva racional e objetiva. Mas, este ano, nas eleições americanas, a racionalidade não parece ir ser o fator decisivo. Saí preocupado do debate.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Guterres

António Guterres teve um excelente resultado na votação de hoje nas NU.

O facto dos seus imediatos "perseguidores" não se terem aproximado pode ter inviabilizado o surgimento de Kristalina Georgieva, como candidata de desempate - com a "vantagem" de ser mulher e de Leste.

Este modelo de escolha do novo SG acabou por favorecer a emergência da "qualidade", em detrimento de outros critérios. Isto parece tornar muito difícil, com risco de se tornar num escândalo, uma reversão drástica da tendência sustentada que favorece o candidato português.

Mas nunca confiar...

Embaraços socialistas


Duas semanas fora do país, olhando-o apenas através do iPad, têm a desvantagem de reduzir o quotidiano político às caricaturas dos "faits" mais ou menos "divers".

Saí de Portugal com o livro de revelações de Fernando Lima como o "escândalo" editorial, cheguei com ele esquecido e com o volume de José António Saraiva convertido no tema de debate. Este país adora revelações, é a pátria do coscuvilho.

Para o que verdadeiramente importa, isto é, para além da espuma dos dias e do diz-que-disse, este período trouxe duas novidades. Na minha opinião, ambas embaraçantes para o Partido Socialista e incómodas para António Costa. 

A primeira tem a ver com as questões fiscais. O que Mariana Mortágua disse, em termos de substância, não deveria ser notícia, não teve o menor radicalismo, contrariamente àquilo que a desonestidade intelectual de alguma oposição quis fazer crer. O relevante nesta história foi não ser Mário Centeno a dizê-lo. 

Seja verdade ou não, o PS projeta a imagem de estar, em certas temáticas, a reboque do Bloco. Mais do que se saber se isso é ou não verdade, preocupa-me que o PS não perceba que isso afeta fortemente a sua reputação internacional - e, com isso, a sua credibilidade europeia, com reflexos em termos negociais. 

Ainda neste plano, o que está a passar-se com a instabilidade fiscal em que o país continua a viver é também inquietante. Eu sei que os constrangimentos europeus transformam a variável fiscal num instrumento apetecível. Mas o governo tem, de uma vez por todas, de decidir sobre se quer dar de Portugal a imagem de um país "investment friendly" ou de um catavento fiscal. É que o nosso futuro passa por aqui.

A segunda novidade embaraçante chama-se José Sócrates.

É uma evidência que uma parte do PS nunca aceitou bem a linha imposta por António Costa, no sentido de "separação de águas", no tocante ao "caso Sócrates". Há quem seja mais sensível ao lamentável comportamento da justiça que ao país saiu em rifa e, acreditando ou não na inocência de Sócrates, considere que o PS deveria não se excluir da condenação do espetáculo vergonhoso que é o indefinido protelamento de uma decisão sobre o assunto, manchado por cirúrgicas quebras deliberadas do segredo de justiça, em conluio com uma comunicação social sem qualquer ética.

E há quem, como julgo deva ser o caso de António Costa - e qualquer que possa ser a sua íntima convicção sobre a eventual culpabilidade de Sócrates -, entenda que não teria sentido amarrar o destino do PS a este caso, poluindo indevidamente a vida política com um caso de justiça, que projetaria uma imagem de ingerência num múnus institucional específico. Eu estou de acordo com esta perspetiva.

Dito isto, percebe-se a estratégia de José Sócrates. É uma aposta na mobilização de uma parte do país - que, contudo, creio menor do que ele julga que é - que conserva uma imagem positiva da sua governação, e que está profundamente escandalizada pelo comportamento dos agentes da justiça. Ao fazê-la, para reforço da sua posição, Sócrates, optou também por atacar diretamente a direção do partido, por alegada falta de solidariedade. José Sócrates sabe bem que, entrando por aí, está a fazer correr um risco grave aos socialistas. E, porque o faz na prossecução de uma agenda que é eminentemente pessoal (embora ele entenda que é muito mais do que isso), deve estar preparado para que a direção socialista venha a reagir, a seu tempo, à altura do desafio. E mais não digo.

São estes os mais recentes embaraços para o PS e para António Costa.

domingo, setembro 25, 2016

Saraiva


José António Saraiva contou em livro algumas conversas com políticos. Hoje, apetece-me contar uma conversa minha com Saraiva.

Um dia de 2002, o "Expresso" trouxe, na primeira página, uma versão falsa sobre uma questão que me dizia pessoalmente respeito. Com ela se pretendia "branquear" uma patifaria política que tinham acabado de me fazer na minha vida profissional.

Telefonei a José António Saraiva e dei-lhe conta, com pormenores, da verdade incontroversa dos factos. Saraiva disse-me ter sido o principal responsável pela notícia e, em especial, pelo seu título enganador. Pareceu-me ter percebido que havia sido enganado por quem o tinha informado: "Foi uma muito alta fonte do governo que me passou a informação dessa forma". Eu presumia. Na semana seguinte, o "Expresso" viria a corrigir o tiro.  

Os governantes, às vezes, também mentiam a José António Saraiva. Contrariamente a ele, eu não guardo apontamentos de conversas, mas tenho boa memória.

João Cravinho


O meu querido amigo João Cravinho fez 80 anos, segundo consta. Um imenso grupo dos muitos amigos e admiradores que tem oferece-lhe hoje um almoço.

Deixo o texto que escrevi para o livro que hoje é editado em sua homenagem:


Um rapaz do meu tempo

Esta ideia de que o João Cravinho é 12 anos mais velho do que eu é apenas uma insuportável sujeição ao calendário, sem a menor aderência a realidade objetiva das coisas. Sempre vi o João como « um rapaz do meu tempo », mesmo que a expressão seja já de outro tempo. Por isso, os seus ditos 80 anos impressionam-me muito pouco.

Lembro-me – ele não se lembra, claro – de me ter cruzado com o João nos idos de 74, naqueles corredores, entre fardas e guedelhas, onde se construía uma confusa esperança, com alegria, ingenuidade e, vá lá !, confessemos, alguma irresponsabilidade. Ele era ou viria a ser « quase ministro », eu andava por ali a exercitar a política que tinha lido, absolvido nos erros pela boa intenção de ajudar a desenhar uma alternativa feliz à ditadura. Um dia, a vida levou-me para fora e, por muito tempo, perdi o João de vista, de quem ia ouvindo falar – sempre bem, com respeito e admiração. Só mais tarde, a « mesa dois » do bar Procópio, sob o humor ímpar do Nuno Brederode, nos voltaria a juntar, em largas e divertidas charlas. Finalmente, numa tarde quente de outubro de 1995, assobiando o Vangelis, entrámos ambos para essa aventura simpática que foi o governo de António Guterres. Já amigos, passámos a conhecer-nos melhor, com ele a tratar-me por um eterno « meu caro Francisco ».

Foi então que « aprendi » o João Cravinho. Podem crer que foi « um espetáculo » poder observar um ministro criativo, ousado, muitas vezes polémico, sempre teimoso, coerente, sólido como uma rocha, olhando dossiês técnicos com a vivacidade de um adolescente brilhante, mostrando-nos a modernidade de um olhar singular sobre a política. Posso confessar um segredo ? Foi ao ter o privilégio de assistir a algumas « performances » do João em Conselho de ministros que eu verdadeiramente entendi o que podia significar, em certas áreas especializadas, uma política « de esquerda » – sem chavões ideológicos, mas com um pragmatismo de onde nunca estava distante a solidariedade e a discriminação positiva para quem dela necessitava.

O que sempre me impressionou no João Cravinho foi a sua abertura ao contraditório, atitude de onde me pareceu, aliás, que retirava imenso gozo, porque isso lhe permitia exercitar a dialética, onde a firmeza dos seus argumentos melhor brilhava. Vi-o em confrontos complexos, em que aquele seu eterno sorriso, às vezes gargalhante, irritava, não raras vezes, o interlocutor. Mas pude apreciar e beneficiar da sua abertura a ideias diferentes, que sempre explorava com benevolência e simpatia. É talvez por isso que nunca o vi com uma « idade » diferente da minha.

Uma tarde, fui confrontado com um João Cravinho inesperado, de cuja cara desaparecera o sorriso para dar espaço quase às lágrimas. Foi numa evocação do embaixador Ruy Teixeira Guerra, nas Necessidades. O João não tinha esquecido, e lembrava isso com emoção, a mão amiga que lhe tinha sido por ele estendida, creio que num momento difícil de vida. Marcou-me muito esse momento e « esse » João Cravinho.

O João faz 80 anos ? Pois isso ! Ele que espere agora pelos meus 80, para comemorarmos a idade comum da esperança, que será sempre a daqueles que acreditam que a vida coletiva pode ser vivida de outro modo, mais solidário e mais justo.

sábado, setembro 24, 2016

O rolo



Aquela imagem ficou-me na cabeça. Dois carros parados, na estrada entre a Barra do Quanza e Cabo Ledo, a Sul de Luanda, pedindo, aos poucos que paravam, um cabo emprestado para rebocar um deles. Nenhum de nós tinha um cabo. A noite caía e eu imaginava o que poderia significar deixar por ali um dos carros até ao dia seguinte. E pensei: e se um dia me acontece o mesmo? Como é que vou levar o meu carro para Luanda? Tenho de arranjar um cabo!

Contudo, isso era mais fácil de imaginar do que realizar. Nessa Angola dos anos 80, as lojas estavam desertas, quase tudo tinha de ser importado pessoalmente. O pouco que aparecia à venda surgia de uma forma errática, às vezes só por horas, sob uma lógica de oferta comercial impenetrável: buchas plásticas para parafusos, blocos de papel almaço, porcas metálicas de um único modelo e coisas assim, sem o menor critério. Eram quase sempre coisas baratas, mas que fazer com elas?

Com a ideia do cabo "rebocador" na cabeça há várias semanas, dei-me um dia conta de que uma montra pela qual passava numa rua de Luanda, habitualmente vazia, mostrava algo que me parecia ser corda. Travei o carro e, perante a incredulidade da minha mulher, disse: "Parece-me que há ali corda à venda". Devo ter dito "parece que está a sair corda", porque essa era a expressão consagrada pelos tempos.

Entrei na loja, olhei para os três imensos rolos de corda que estavam por ali e exultei quando o empregado me disse que, de facto, estavam "a vender corda". Disse que queria uns 7 ou 8 metros, que avaliei suficientes para poder improvisar dali um cabo rebocador. "Não podemos, camarada!" ("Camarada" era o tratamento ritual de regra). Mau! Então a corda estava à venda e não podiam vender? O mistério esclareceu-se logo: só podiam vender o rolo inteiro.

Mas para que é que queria um rolo imenso de corda, com dezenas de metros, um peso brutal e grande dimensão? O preço era uma ridicularia. Perguntei se podia ficar só com dez metros, pagando a totalidade e deixando o resto para a loja. Os olhos do empregado sorriram de antecipada felicidade, logo interrompida pela constatação: "Loja não tem faca, camarada!".

Recordo o olhar espantado da minha mulher quando comecei a rebater o banco de trás do Golf e viu aproximarem-se quatro empregados, carregando um rolo imenso de corda. Um espanto só equivalente ao "sucesso" que fez a entrada do mesmo rolo na embaixada, para o que foi necessário mobilizar a boa vontade de alguns funcionários, impressionados pelos "bons contactos" que seguramente tinham facilitado aquela aquisição.

Cortei a corda necessária para o meu cabo e coloquei o resto do imenso rolo num anexo ao meu gabinete. A notícia da insólita compra correu a embaixada e tive de fazer "visitas guiadas" ao objeto. Todos invejavam a minha compra mas, quando perguntados se queriam alguns metros de corda, ninguém avançava, talvez porque não fosse evidente a sua utilidade. Mas se precisassem...

Um dia, quase um ano depois, fui transferido para Lisboa. Na relativa confusão da partida, esqueci-me da existência do rolo de corda, o qual, de qualquer forma, sempre ficaria para trás. Passaram, entretanto, uns meses. Uma tarde, em Bruxelas, regressado de uma reunião desses primeiros tempos das instituições europeias, tinha um recado de Lisboa: era um colega que me informava que telefonara de Luanda o "senhor António", com um assunto urgente. O "senhor António"? Seria um dos contínuos da embaixada? O que quereria?

Chegado a Lisboa, no dia seguinte, falei para Luanda, para a embaixada e pedi para falar com o senhor António. Ouvia-se muito mal. Tinha sido de ele, de facto. Algum problema? Era o rolo de corda!

O rolo de corda?! O que é que havia com o rolo de corda? Havia uma "grande confusão" com o rolo, que eu tinha lá deixado. "O senhor doutor lembra-se que, no dia da sua partida para Lisboa, lhe pedi o rolo e me disse que podia ficar com ele?" Não me lembrava, mas imagino bem que o pudesse ter feito. Mas qual era o problema? "É que o Toni diz que o rolo é de todos e quer tirar uns metros!" O Toni era um motorista. "Anda aqui uma grande maka por causa do rolo!"

Decidi seguir a regra africana da prioridade ao "mais velho" e confirmar (?) ao António, prestes a reformar-se, a minha "doação". E pedir que dissesse ao Toni, da minha parte, que o rolo "tinha dono". O António ficou contentíssimo. Foi a última vez que o ouvi. Para que lhe teria servido o rolo de corda? Provavelmente para nada, mas, naqueles tempos, era preciso aproveitar tudo o que estivesse "a sair".

(O Manuel Serra pediu-me ontem para lembrar esta historieta, que um dia lhe contáramos.  Ela aqui fica.)

sexta-feira, setembro 23, 2016

A outra América


« Um espetro ameaça a Europa » : a possível vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Karl Marx usou a expressão para qualificar o medo que o comunismo estava  provocar no mundo burguês. Agora, responsáveis e analistas de setores europeus com diferente lateralização ideológica convergem no seu pânico perante a possibilidade de Trump vir a ocupar a Casa Branca. Haverá razões para tal ? Tentemos simplificar a resposta.

Em matéria de política interna, graças ao sistema de « checks and balances » que a constituição americana impõe, através da força da Câmara de Representantes e do Senado, o ocupante da Casa Branca pode ficar de mãos atadas, com grande facilidade, quando pretender executar a sua agenda política. Clinton e Obama sentiram-no na pele. Um eventual presidente Trump deverá, ainda com maior probabilidade, vir a enfrentar o mesmo problema, atento o radicalismo de algumas das suas propostas.

Porém, quem ocupa a presidência americana tem um imenso poder sobre o mundo. Goste-se ou não, os EUA determinam grande parte dos equilíbrios globais. Essa relevância reforça-se nos momentos de maior tensão, como é aquele que atravessamos. Ora o presidente americano, como « chief-in-commander » das Forças Armadas e indisputado gestor da política externa do país, tem escassas peias internas na liberdade da sua ação internacional. Por essa razão, não é indiferente, para todos os não-americanos, quem vier a ser escolhido para o lugar. E, desde logo, para os europeus.

Por muitos anos, o sistema americano produziu figuras que chegaram a Washington com o beneplácito das elites nacionais, republicanas ou democratas. Hillary Clinton, se vier a ser eleita, é uma expressão clara dessa elite. Trump não o será.

Muito de nós, ao longo dos anos, falávamos da « América profunda », desse mundo voltado para si mesmo, que caricaturávamos como ignorante, preconceituoso e cultor de um nacionalismo saloio. Vimos nascer Sarah Palin e o « Tea Party”, mas vivíamos confortados na ideia de que “essa América” nunca condicionaria, de modo decisivo, a atitude do país. No fundo, todos confiávamos que, fosse quem fosse que a América viesse a escolher, seria sempre alguém que emergeria da elite que sempre dominou Washington.

Enganámo-nos. Um dia, isto é, agora, essa América fora do “mainstream”, no seio da área conservadora, produziu um candidato a que a tal elite foi incapaz de opor uma alternativa. Alguém com um discurso errático, um “gaffeur”, com uma agenda internacional que vai do “muro” mexicano à sedução por Putin, passando pela ameaça da saída da NATO e outras bizarrias. Uma certa América cansou-se dos partidos do “mainstream” e está a impulsionar figuras fora da matriz tradicional. Não foi Sanders do lado democrata, é Trump nos republicanos.

Por isso, temos de ser realistas: os pesadelos, às vezes, também se concretizam.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, setembro 22, 2016

Tecnologia

Há pequenas coisas que qualificam um país, que nos levam a apreciar a sua tecnologia e, através dela, a interiorizar um respeito profundo pela sua cultura industrial. Casos simples podem fazer muito por uma imagem nacional. Aqui vai um exemplo: as balanças caseiras para pesar pessoas.

Por uma coincidência de viagens muito rara, tenho andado a mudar de hotel com frequência nas últimas semanas. Nas casas de banho dos quartos dessa quase dezena de hotéis encontrei sempre dessas balanças, de marcas diferentes e, naturalmente, vou testando o meu peso. Até hoje, todas praticamente coincidem entre si, apresentando números que são um chocante (e até insultuoso) exagero. É incrível como é possível que marcas de balanças oriundas de vários países revelem estes erros de fabrico, sem que haja sido exposta, por uma aferição de qualidade, esta verdadeira fraude comercial, que, como se vê, tem uma dimensão global!

Por que razão trago o assunto aqui e agora? 

Por uma razão simples: porque acabo de me pesar numa balança sul-africana e, finalmente, tive o ensejo de experimentar um produto de indiscutível qualidade, fiel ao rigor, com a tecnologia certa. As outras balanças, ridiculamente, apresentavam quase dois quilos a mais, imaginem! 

Nunca mais quero balanças que não sejam produzidas na África do Sul!

quarta-feira, setembro 21, 2016

Praxes

O ministro Manuel Heitor teve a coragem de pôr o dedo na ferida: não há más praxes nem boas praxes. A praxe é uma prática discriminatória, reveladora de uma espécie de desforço por parte de quem se quer vingar daquilo que terá sofrido no passado, instituindo uma ridícula hierarquia entre os alunos, tudo disfarçado numa falsa medida de integração. Os praxistas são, em geral, uns sadicozinhos que se aproveitam circunstancialmente de uma suposta "autoridade" etária ou similar para humilharem os outros. Há alunos que gostam de ser praxados? Claro que sim, como há quem deseje masoquistamente ser açoitado ou humilhado, o que, as mais das vezes, justificaria uma oportuna consulta psiquiátrica.

Um dia, quando era presidente do Conselho Geral da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, suscitei nesse âmbito a questão das praxes. Apenas um professor levantou a sua voz para apoiar o meu repúdio sobre aquela prática. Vou ser muito claro: as praxes persistem, não porque sejam inevitáveis (hoje, só existem em Portugal e Espanha, estando proibidas no mundo civilizado, de que assim nos auto-excluímos), mas porque há uma muito generalizada cobardia por parte das autoridades universitárias, extensiva a muitos professores, que não querem passar pelo incómodo de "comprar uma guerra" com os estudantes. Bastaria ter o bom senso de incluir nos regulamentos universitários a proibição absoluta da praxe, assumida como gratuita violência, disruptora e punível da disciplina académica, afastando liminarmente das universidades os estudantes comprovadamente envolvidos na sua organização (começando por interditar a sua prática dentro das instalações) e, em poucos anos, podem crer, as praxes desapareceriam. É que os energúmenos que se dedicam a esses vícios de autoritarismo cedo acabariam por verificar que seus títulos de "dux veteranorum", e outras designações ridículas de corruptelas latinas, lhes serviriam de muito pouco quando tentassem arranjar trabalho sem qualquer diploma.

Manuel Heitor, ministro da Ciência e do Ensino Superior, pessoa que praticamente não conheço, é alguém que honra o exercício da política neste país.

terça-feira, setembro 20, 2016

A torneira


Aquele pequeno apartamento no edifício da nossa embaixada em Angola, na rua Karl Marx (antes fora Vasco da Gama, agora é avenida de Portugal), nunca tinha sido ocupado por ninguém, desde que, depois da independência, fora adquirido à pressa, para instalar os escritórios e alojar alguns funcionários e as suas famílias. 

Contra a minha vontade, depois de esgotadas outras soluções e de quatro incómodos meses de hotel, fui obrigado a ir viver para ali. Poupo os pormenores sobre o épico que foi montar uma casa nesse atribulado período da vida angolana. Imensas coisas por ali não funcionavam, outras resistiam a fazê-lo. 

A mais misteriosa peça da casa era, contudo, uma luzidia torneira da cozinha, de onde, por muitos esforços que se fizessem, não se conseguia extrair uma única gota de água. Os especialistas rareavam em Luanda, mas lá se conseguiu desencantar um canalizador que, depois de aturada reflexão, decretou que era preciso "arrebentar" com a parede, para tentar perceber o enigma. Eu olhava já com carinho os banais azulejos que revestiam a cozinha, cuja possibilidade de substituição não era evidente, num tempo extremo de penúria de materiais. Mas acabei por dar luz verde à operação.

Foi então que o canalizador, ao tentar retirar a torneira para desobstrução do cano, se deu conta de uma trágica realidade: a torneira estava cimentada - isso mesmo, cimentada! - à parede. E, surpresa das surpresas, por detrás dela ... não havia qualquer cano! Assim se percebia melhor por que razão não havia por ali qualquer vestígio de água. O desonesto "pato bravo" lusitano que concluíra as obras, antes de se pisgar para o "puto", atamancara os trabalhos e quem viesse atrás que fechasse a porta... 

segunda-feira, setembro 19, 2016

Os "Guedais"


Era assim que, carinhosamente, em família, nos quatro anos que vivi em Luanda, nos anos 80 donséculo passado, tratávamos os três primos lisboetas que, creio que de três em três meses, aí se revezavam, para assegurar a gestão local da Guedal, uma empresa de representação de comércio automóvel. Ele eram o Sérgio Guedes de Sousa, o José António Arantes Pedroso e o Vasco Correa Mendes. Os dois primeiros já desapareceram. O seu pouso angolano era um amplo apartamento, com um grande terraço, na rua da Missão, muito próximo dos dois locais onde vivi na capital angolana: o Hotel Trópico e um apartamento que vim a ocupar no "compound" da embaixada.

Só quem conheceu a dureza da vida em Luanda, nesse tempo de conflito militar e desoladora penúria de comércio e serviços, poderá avaliar o que foi a "bênção" de poder dispor da imensa generosidade desses três amigos, que, com frequência, nos chamavam para sua casa, para divertidas jantaradas e, nos fins de semana, organizavam caravanas a Cabo Ledo. 

Cada um desses três primos desenhava, curiosamente, um estilo diferente de vida social, durante as suas estadas. Se havia gente sempre comum (e nós, afortunadamente, pertencíamos a esse "núcleo duro", com várias outras pessoas, de que a mais animada era sempre a Ana Poppe), muitos outros convidados variavam nesses ciclos, o que coloria e diversificava os vários eventos. Comum era também a presença risonha do Manuel Guterres, um minhoto de Seixas, funcionário da Guedal, um operacional indispensável dessas ocasiões. 

Naquela casa havia um pouco de tudo, desde a zona da sala, cheia de sofás, onde passavam filmes, clássicos ou novidades, que cada um ia trazendo, fruto de encomendas ou visitas à Europa, até ao terraço sobre a baía, com mesas recheadas de vitualhas, que surgiam sabe-se lá de onde, que nos alimentavam conversas intermináveis ou relatos de episódios desse estranho mundo angolano de então. Ah! e música, com bailes improvisados que duravam até à meia-noite (a "Cinderela time" do recolher obrigatório) ou, passada esta, nos "forçava" a ficar por ali, a charlar e bebericar, pelo menos até às cinco da manhã.

Nesta minha visita a Luanda, passei em frente àquele prédio e senti uma imensa gratidão pelo gesto daqueles que, por simples amizade e simpatia, muito nos ajudaram a atravessar, com ímpar generosidade, esses tempos que só a passagem dos anos suavizou, decantando para a nossa memória afetiva apenas essas coisas boas que a sorte quis que nos acontecessem.

domingo, setembro 18, 2016

Ajuda


O meu colega e amigo Luís Castro Mendes, ministro da Cultura, que transitou entre dois palácios que são a verdadeira cara do país que temos - das Necessidades para a Ajuda -, lançou mãos à obra do "fechamento" do Palácio desta última. Que todos os anjos e querubins o protejam na consecução da empresa. Se a "geringonça" tiver conseguido tornar irreversível o completamento daquela "santa ingrácia", eu voluntario-me para ir ao primeiro comício da história dos Verdes...

O "Expresso" publicou ontem a "solução" arquitetónica encontrada. Devo dizer, com franqueza, que me é quase indiferente, desde que se acabe, de uma vez por todas, com a vergonha daquilo que lá está. A imagem é, creio, elucidativa.

É claro que, agora, vão aparecer os "espertos", os que queriam um "fechamento" mais clássico, os que iam para o vidro e outros materiais, os que acham que a maquete parece a sede da Caixa Geral de Depósitos, etc. Vai ser um fartote de debate. Até eu, se calhar, vou meter a minha colherada, achando que o que ficava bem era atirar abaixo aqueles proto-arcos e proto-janelas, abrindo por completo o pátio a poente - solução barata e rápida, mas que imagino que deve arrepiar os puristas, os quais, no entanto, viveram toda a sua vida serenos com aquela vergonha!

Não ligues, Luís! Faz o que quiseres, mas acaba de vez com aquilo que lá está!


Darocha

Um dia, quando era embaixador em França, fui a Arras para uma exposição que envolvia artistas portugueses. Um deles, pintor, um pouco mais velho do que eu, perguntou-me: "O nome de Alberto Couto diz-lhe alguma coisa?" Claro que dizia! Era um grande amigo do meu pai, como ele oriundo de Viana do Castelo, cuja morte prematura muito o entristecera. "Pois eu sou filho do Alberto Couto!", disse-me o pintor. 

Chamava-se José Luís Páris Couto da Rocha, mas, ao longo da sua carreira como pintor, utilizou vários nomes, do qual o mais conhecido será Luiz Darocha, que muito o identificava em França, onde já vivia há mais de meio século.

Semanas mais tarde, convidei-o, com a mulher, para almoçar na embaixada. Foi a última vez que nos vimos. Curiosamente, trocámos emails, há precisamente um ano, com fotografias dos nossos pais. Num deles, ele escrevia isto, já com a língua francesa a marcar o seu português: "Não tenho ideia de quando volto a Portugal. Nesse caso talvez houvesse um momento para trocarmos boas palavras. Se vier a Paris também poderíamos nos ver." Nem ele voltou, nem eu tive ocasião de o voltar a ver, das vezes que, entretanto, estive em Paris. Morreu há uma semana.

Aqui deixo a sua fotografia e a reprodução de um quadro seu que está em Serralves.



Guias turísticos

Se há coisa em que não me importo de gastar algum dinheiro é na compra de um guia sobre uma cidade que visite pela primeira vez. Tenho sempre o sentimento de que por ali está um repositório dos locais de interesse a ver, uma ajuda para que não percamos tempo e locais importantes. Temo sempre que a "poupança" em não adquirir o guia me faça correr o risco de perder algo essencial. E, muitas vezes, a probabilidade de voltar a certos países é muito reduzida, como é o caso da Ucrânia, onde me encontro agora.

Não há nada de mais "ideológico" de que um guia turístico. A impressão que ele nos transmite sobre os países que visitamos é essencial para formatar a nossa opinião sobre ele. Para o bem e para o mal.

Quando vivi em Londres, decidi adquirir todos os vários guias publicados sobre Portugal e verifiquei que, por erro, omissão ou preconceito deliberado, algumas narrativas sobre o nosso país eram incorretas, marcadas por uma visão paternalista e, frequentemente, com dados factuais errados. Foi a correção destes últimos que utilizei como pretexto para escrever a cada uma das editoras, propondo-lhes uma colaboração da embaixada para revisão das suas próximas edições. Creio que todas aceitaram e, naturalmente, aproveitei para lhes propor, além dos dados de facto, textos alternativos sobre diversos capítulos. Algumas foram sensíveis à "revisão" dessa parte mais substantiva, outras perceberam a nossa intenção e reservaram a sua liberdade de opinião. Em particular, era a História e a vida social, tal como a arte e literatura, que mais nos interessava "corrigir". Alguma coisa se avançou.

Os guias sobre um país são, muitas vezes, escritos por quem dele tem uma visão distante, uma informação acumulada de várias fontes. Nas sucessivas edições não há, em geral, o cuidado de proceder a atualizaçōes e, na maioria dos casos, fica a sensação de que o responsável pelo texto se baseia em "informadores" locais, que impõem as suas escolhas. (Há um bom teste para a qualidade de um guia: ler nele algo que conheçamos bem). E quanto menos conhecido é o país, mais as versões deturpadas sobre a sua realidade podem perdurar. É mesmo famoso o caso de um guia escrito sobre um pequeno país latino-americano que terá sido elaborado por alguém que nunca o visitou. Com a internet, tudo hoje é possível.

Porém, o guia que comprei aqui em Kiev não era desses. É uma belíssima edição nacional, bastante barata, muito bem escrita, num excelente inglês. 

Ao comprá-lo, logo após a chegada, lembrei-me de um guia sobre Ialta que adquiri quando fui à Crimeia em 1980. Chamava-se "Greater Ialta", era razoavelmente ilustrado para a época e tinha a curiosidade de nos chamar a atenção para zonas da periferia da cidade... onde era proibido deslocarmo-nos! Os textos eram num estilo gongórico-soviético, que descreviam o mundo local de então como "o sol da terra", para usar uma expressão consagrada.

Voltando ao guia de Kiev que agora adquiri, é muito interessante analisar nele o modo como é feita referência ao período comunista, as ironias sobre as motivaçōes ideológicas de certos estilos arquitetónicos, sobre valores culturais que entretanto foram abandonados e rejeitados e, muito em especial nos textos históricos, o esforçado sublinhar, em detrimento até de algum rigor, das pulsões independentistas ucranianas. 

Os guias turísticos, repito, podem ser muito ideológicos, mesmo que, à partida, aparentem não o serem.

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.