sábado, maio 07, 2016

O local e o poder

Acho que quando alguns dos participantes neste Encontradouro ouviram dizer que era um antigo embaixador na Unesco que ia encerrar este encontro - um festival literário - ninguém teve a menor dúvida de quem era o orador: Luis Filipe Castro Mendes.Pois bem, desenganem-se, não é! Talvez para o ano, seja ele a vir...


Quero começar por agradecer o simpático convite que me foi feito para estar aqui hoje.Foi já há alguns meses, creio que neste mesmo espaço, numa conversa que aqui tive com o presidente do município de Sabrosa, o meu amigo José Marques, que a ideia surgiu.


Não sou escritor, tive uma vida como cultor dessa língua terrível que é o oficiês e nunca publiquei nenhum livro, apenas editei alguns volumes de compilação de textos - o que está para a escrita como a noite está para o dia. Hoje, dedico-me a tentar provocar ondas nas redes sociais através de pequenas notas, num blogue e nessa loja dos 300 das redes informáticas que é o Facebook. Nelas escrevo sobre o quotidiano ou registo, sem pretensões, algumas memórias avulsas, que é aquilo que se dedicam os velhos, antes que se esqueçam de tudo...


No resto, a minha escrita resume-se a colunas na imprensa - e, como antes se dizia, os jornais leem-se num dia e, no dia seguinte, servem para embrulhar peixe (hoje a ASAE já nem isso deixa, imagino eu). Duas dessas colunas, porém, merecem algum destaque. São notas críticas sobre restaurantes. E assim aprendi que nos podem pagar para nos incitar a comer. Não fosse eu já ter dado o fígado pela pátria ao longo da minha carreira, acho que me passaria a dedicar a isto como modo quotidiano de vida... Aqui fica a história singela da minha relação com a escrita.


Assim, e não obstante as minhas qualificações neste domínio não rimarem claramente com este festival, fiquei muito honrado com o convite e aproveito para felicitar vivamente o Município de Sabrosa e este fantástico Espaço Miguel Torga, e organizador científico do evento, Francisco Guedes, pelo êxito evidente desta iniciativa.


E, já agora, devo confessar que não esperava que o governo "da Nação", como antes se dizia, se tivesse dado ao cuidado, num ato de extrema gentileza, de abrir, precisamente hoje, o túnel do Marão, com o objetivo de facilitar a minha deslocação... Mas registo a amabilidade do gesto, como é natural... Fica hoje provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça...


Mais a sério, aproveito para saudar todos quantos aqui vieram colaborar com a sua presença e a sua palavra, - alguns meus amigos, outros pessoas que me habituei a admirar - neste magnífico exercício cultural. A sua participação é, em si mesma, um elogio à coragem e à louvável ambição desta terra, que se orgulha de aliar Magalhães a Torga, ao lançar uma iniciativa desta dimensão, juntando artes e letras - como se dizia noutros tempos. A ousadia de Sabrosa foi assim muito bem correspondida, uma vez mais.


Pelas razões que já referi, a mim, que encerro estes trabalhos, colocou-se-me a interrogação sobre que tema deveria aqui abordar. Surgiram-me várias ideias, mas nenhuma, confesso, ligada à literatura, porque se há coisa que aprendi com a vida foi a não me meter por caminhos que não domino. Também pensei abordar o tema dos diplomatas e da literatura, mas achei melhor não me meter por aí, para não ter de elencar colegas, o que é sempre polémico.


Assim, decidi revisitar uma questão que sempre me fascinou: a ligação do local ao nacional, numa perspetiva de gestão de poder, abordada através da questão do peso relativo das cidades. Isso pareceu-me adequado aqui, em Sabrosa, uma terra que, com iniciativas como esta e com espaços desta natureza, procura romper a fronteira, mudar a geografia, de uma certa forma elevar o local ao nívelnacional. São assim alguns comentários soltos sobre este tema, em jeito nada académico e numa perspetiva assumida de sociologia empírica, que vos vou aqui deixar.


Há um lema que ficou famoso, atribuído ao político americano Tip O’Neill, segundo o qual “toda a política é local”. A ideia é bastante simples, como todas as boas ideias: nas decisões públicas, o impacto na proximidade é aquele que, no final de contas, determina o essencial da sua perceção.


Não é correto inferir daqui que a formatação de uma vontade política, à escala nacional, é apenas um somatório dos interesses expressos pelas realidades locais. Porém, a verdade é que, nas democracias mais representativas e em que a “accountability” se faz mais perante os eleitores do que perante os líderes partidários (pelo resulta claro que não estou a falar de Portugal...), o fator local prevalece nos interesses mais relevantes a salvaguardar pela comunidade.


Basta pensar em Estados com estruturas regionais, sejam de natureza federal ou não, para sermos levados a concluir que a dimensão de proximidade se constitui hoje como uma componente essencial de legitimação da ação política.


E, como é óbvio, as cidades situam-se no centro dessa mesma realidade. Eu não sou um especialista em cidades, sou apenas um mero utente delas. Faço as contas. Na minha vida, morei, sempre por alguns anos, em dez cidades, de dimensão e importância muito diversas - de Vila Real a Nova Iorque, de Oslo a Londres, de Luanda a Paris, do Porto a Brasília, de Viena a Lisboa.


Mas se todas essas experiências foram marcantes e me ajudaram a olhar o mundo de outra forma, a verdade é que ser um cidadão com um estatuto diplomático nos retira sempre alguma riqueza, em matéria de imersão cívica, que só a cidadania local nos poderia conceder.


Talvez por isso, um pouco como os emigrantes que se focam no que deixaram para trás, tive sempre o cuidado de me manter muito atento a Portugal e às nossas cidades, à sua especificidade, à identidade que projetavam no passado e ao que agora projetam. Há décadas que viajo por este país, conheço-lhe todas as suas cidades, a esmagadora maioria das vilas e, aqui entre nós e com imodéstia, quase tudo aquilo nelas vale a pena na sua rede gastronómica - uma das riquezas culturais que é preciso saber explorar. Agora, regressado de vez a Portugal desde há mais de três anos, mantenho um olhar ainda mais atento, até na dimensão retrospetiva, sobre as cidades portuguesas que melhor conheço.


Talvez por ser oriundo da província, daqui de Trás-o-Montes, tive sempre uma perceção muito nítida da diferença que existe entre as nossas cidades, da evidente hierarquia que entre elas se estabelece, seja em riqueza, cultura e qualidade de vida, seja no modo como elas conseguem objetivar a expressão dos seus interesses relevantes à escala nacional. Acho, aliás, talvez porque é um dado tido por adquirido e que se torna banal, por fazer parte da nossa paisagem de todos os dias, que o poder diferenciado das cidades continua a ser uma das componentes pouco trabalhadas da nossa cultura democrática. Desde logo, porque sendo uma realidade histórica - ligada à geografia, à demografia, ao PIB e a variáveis sócio-económicas - ela teima em persistir mesmo para além dos regimes.


Nascido em Vila Real, recordo, desde muito jovem, o modo peculiar como, durante o Estado Novo, a afirmação da realidade política à escala local se fazia junto do poder central. O modelo era muito interessante, porque, perante uma evidente escassez de recursos públicos para acorrer, por exemplo, a necessidades de equipamentos para a melhoria das condições de vida, esse modelo assentava numa espécie de pequenos lóbis, centrados em figuras com projeção “lá em baixo”, em Lisboa, as quais conseguiam, alegadamente a custo, através dos seus contactos privilegiados, convencer os decisores centrais a alocarem alguns financiamentos. Era assim que aparecia dinheiro para estradas, escolas e fontanários ou outro tipo de equipamentos que, de alguns maneira, pudessem reduzir os custos de perifericidade.


Estamos perante um modelo muito primário, quase rústico, mas que tinha a superior "vantagem", se assim se pode dizer, no quadro da cultura da ditadura, de estruturar uma rede de subordinações, de dependências, de gerar um clima de favores, que potenciava a arbitrariedade e, por essa via, um reforço dos poderes fácticos.


Alguns objetarão que, nesse tempo, o modelo de representação de interesses “bottom-up” era esmagado pelo centralismo.A meu ver, um certo pragmatismo do poder ditatorial levava a que as coisas não fossem exatamente assim, a que houvesse uma tentativa de preservar uma certa legitimidade, assente numa suave presença da vontade local, através da relativa audição das personalidades de relevo ou dos dirigentes nomeados.


Voltando à minha terra, ali a Vila Real, numa escala diferente e muito menos poderosa, era também assim que se passavam as coisas. A cidade, como todas as outras, não dispunha de uma representação sufragada pelo voto, e, muito em especial, não tinha interesses económicos fortes na sua proximidade que conseguissem fazer ouvir a sua voz junto do poder político central. Mas a cidade não deixava de existir como sujeito de algum poder residual. Essas tais figuras mais destacadas de que antes falei faziam um papel de representação e, no fundo, de alguma legitimação do próprio regime junto das populações, na medida em que este fosse capaz de ser sensível a alguns anseios atendíveis.


Era um mundo mesquinho, pequeno em todos os sentidos, miserável no método e ridículo na forma.
A cidade era isso: era o Governador Civil (escolhido por ter alguma ligação local e que, de uma qualquer forma, se havia ilustrado junto de alguém em Lisboa), era o presidente da Câmara (tutelado pelo Governador, também sempre nomeado, rodeado de escassos vereadores designados da mesma forma), era o presidente local da União Nacional, eram uns escassos deputados “da Nação”, como então se dizia. A isso se somavam, nesse tempo e no caso de Vila Real, umas tantas figuras, quase sempre com um diploma ou um titulo ou, na falta de estes, com alguns cabedais, na expressão da época. Tínhamos, além disso, um general e um padre com bons contactos. E por ai ficava a nossa "massa critica" de influencia.


Este modelo, com maiores ou menores adaptações, com mais mais ou menos padres, generais ou doutores, era o retrato do poder da generalidade das cidades que eram capitais de distrito. Abaixo desse nível, as coisas era menos expressivas e a vontade local tinha muito maior dificuldade em fazer ouvir-se.


Eu referi Vila Real, mas, mantendo-me neste Norte, poderia falar de Bragança, onde preponderaram nomes como Trigo de Negreiros, Camilo de Mendonça ou Gonçalves Rapazote. Ou de Chaves, ou de Mirandela ou mesmo de pequenas aldeias - daquelas que os escritores gostam de utilizar no fim das introduções dos seus livros, para dar um toque de ruralidade lúdica.


Mas há muito outros casos por esse país. Nesta análise impressionista, acho que, fora da escala Lisboa-Porto, uma cidade, ainda nortenha, como Braga constitui, com Coimbra, um dos melhores exemplos de um modelo de expressão política local com algum sucesso de representação de interesses à escala nacional, naquele tempo da ditadura. Não sei se esse privilégio se deve à duvidosa honra de ter sido o ponto de partida para o golpe militar de 28 de maio - daqui a dias alguns saudosos comemorarão, pela certa, os 90 anos passados sobre esta data - mas a estátua de Santos da Cunha lá está em Braga, como uma espécie de “instalação" da expressão política local.


E até o nosso novo presidente gosta de se reivindicar nos seu afeto ao clube da terra (que tem a grande virtualidade de se chamar Sporting), de que parece que aprendeu a gostar quando o respetivo estádio se chamava 28 de maio.


Mas falemos também de Coimbra. Coimbra foi, durante muitos anos, um fenómeno muito particular. É que, muito para além das dimensões materiais, Coimbra funcionou, durante o Estado Novo, como um original centro de produção simbólica do poder. O facto do ditador ter por lá nascido politicamente, entre borlas, capelos e beatas, e muito do pessoal político da ditadura ter sido daí recrutado (o que era comum à República, bastando lembrar SidónioPaes e Afonso Costa), conferiu a Coimbra uma centralidade política que ia muito para além do seu real estatuto enquanto cidade. É claro que muito do pessoal dito "de Coimbra" não era de lá, era da província, mas era o carimbo académico coimbrão que lhe dava esporas de ascensão potencial na ladeira da governação. No fundo, pode dizer-se que Coimbra era representada em Lisboa pela sua Universidade – o que também nos deve ajudar a refletir sobre o modo como algumas instituições podem, elas próprias, moldar as urbes onde se situam e fazê-las projetar em círculos mais alargados.


E isto conduz-nos necessariamente ao penúltimo dos exemplos, ao Porto. Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia consegue obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto tinha, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.


Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismoesclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político. Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: “o Porto trabalha, Lisboa diverte-se” -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro “novo” de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril.


Porém, o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo. Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a revelar a fraude da abertura marcelista.


Mas foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu relativo isolamento político.Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou muito cedo para a partilha do poder político central.E por lá tem ficado, há uma décadas de forma bastante mais influente, nos tempos que correm apenas através de alguns “tokens”, que às vezes parecem destinados a garantir uma presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, eu imagino que a pergunta deve surgir: “E do Porto, quem é que se põe?”. Eu sei que pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas é esta parece ser a realidade. Desta vez, no novo governo, o Porto não se pode queixar... Porém, não obstante a inegável excelência de muito do pessoal político que os governos foram buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real da cidade no jogo político nacional.


Mas Porto desenha um outro modelo curioso, sendo quase um “case-study”. Refiro-me ao seu perfil reivindicativo. A cidade do Porto assume sempre um discurso tenso, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa.


Com regularidade, o Porto convoca os poderes económicos e os nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de permanente batalha virtual com Lisboa. Porém, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo levar a água ao seu moinho de vento, melhorar o aeroporto, ter as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna é sempre capaz de arrancar.


Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque é verdade que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa. Só que o Porto, por muitas queixas que tenha, consegue, apesar de tudo, ter uma capacidade reivindicativa, e uma capacidade de imposição, muito maior do que todas as outras urbes de província.


Por uma evolução perversa do processo de construção do poder em Portugal, as cidades, enquanto tal, perderam peso, deixaram de ter uma capacidade para se projetar no centro das decisões. Algumas figuras, mais mediáticas ou influentes nas maquinas partidárias, conseguem compensar isso. Mas muitas cidades estão longe de o conseguirem. Hoje, o poder que resta às cidades - e, contudo, não é tão pouco como isso! - é a expressão do poder local, como forma de representação paralela e até, às vezes, de contra-poder ao executivo central, o qual, tendo álibis convenientes para não respeitar a lei das finanças locais, costuma jogar a gestão dos fundos comunitários como uma espécie de “saco azul”. Ora a gestão dos fundos é uma reserva de discricionariedadeque, como é sabido, encontra sempre artifícios técnicos para, como se diz no meu Ministério dos Negócios Estrangeiros, “proteger os amigos, atacar os inimigos e, aos outros, aplicar a lei”. Sem o país sob formato regional, onde poderiam encontrar um espaço de recriação e controlo de alguma “devolution”, as cidades são assim quase obrigadas a viver nesta relação tensa de forças, como todos os dias se vê no muro das lamentações que é a comunicação social.


É claro que, no final deste roteiro sobre a afirmação das cidades, Lisboa é um caso atípico. Capital do país, o seu município beneficia imenso do facto das instituições nacionais estarem aí centradas. Não apenas as instituições de natureza política, mas todas as restantes dimensões que se acolhem no local de onde emana poder, das grandes empresas à Gulbenkian, das principais universidades à comunicação social relevante. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "the powers that be".


Uma capital é sempre uma cidade diferente, que ganha nacional, e até internacionalmente, um protagonismo que é produto dessa centralidade muito particular. Há quem veja no autarca-mor de Lisboa uma espécie de ministro, umas vezes "sombra", outras vezes iluminado pela cumplicidade com o poder central, mas sempre acima dos seus pares. Pode usar-se a presidência do município de Lisboa como passo para uma putativa chegada a Belém. Ora a Câmara do Porto não parece ser o caminho certo para tais voos, como ainda há meses se viu. E isso faz toda a diferença.


Digo isto apenas para tornar uma vez mais evidente que persiste, no Portugal contemporâneo, uma hierarquia entre as cidades. Isso é talvez inevitável. Só o que não é inevitável é que essa hierarquia se reflita, por virtude modelo de organização e funcionamento das políticaspúblicas em Portugal, na limitação dos cidadãos e das instituições para afirmarem, à escala nacional, os seus interesses. E isto conduz-nos à questão fundamental: numa sociedade democrática, será normal que os cidadãos possam ver parte substancial dos seus interesses subalternizados apenas pelo facto de provirem de urbes com menor peso?


Estamos perante um problema de harmonia do tecido nacional que tem de ser pensado. E só pode sê-lo se conseguirmos garantir que a organização sociedade cívica respeita, cada vez mais, o principio da subsidiariedade - isto é, a necessidade das decisões deverem ser tomadas a um nível o mais próximo possível dos sujeitos a que respeitam. E isso implica duas coisas: uma eficiente (e respeitada) lei das finanças locais e uma nova organização da responsabilidade do exercício das funções de Estado, através de um quadro muito claro dos níveis desejáveis de descentralização do poder local.


Fica por discutir a questão sobre se tudo isso não deveria articular-se, num modelo de novo tipo, num quadro regional. Esse é um tema que vai continuar a andar por aí, porque, não obstante podermos considerar que o tempo não será o mais adequado para o suscitar, a racionalidade aponta para que seja esse modelo aquele em que as cidades, num quadro de desigualdade e desequilíbrios territoriais como o que temos atualmente em Portugal, encontrariam o seu espaço ideal de expressão de interesses, simultaneamente com a preservação das suas singularidades.


Deixo-os com esta interrogação sobre a regionalização. Mas também com a ideia de que não é possível desenhar um equilíbrio à escala nacional, em que os interesses de todos os cidadãos estejam protegidos, sem que o país seja capaz de entender que, a nível local, emergem hoje, em alianças institucionais que passam muito para alem das fronteiras, iniciativas que fazem hoje parte da nova identidade de Portugal.


Volto à ideia com que comecei. O essencial é quase sempre local. O sucesso ocorre no aproveitamento inteligente daquilo que nasce das comunidades, onde se cultiva a respetiva diferença, onde se estimula o novo - às vezes ligado ao antigo, mas preso ao quotidiano e pressentido como tal por quem vive perto ou quem se sente próximo. Esta é a verdadeira riqueza de um país, ao que me, também hoje aqui em Sabrosa, foi dado observar.


Sabrosa, 7 de maio de 2016

As mesas ao fundo do túnel


A abertura no túnel do Marão, que hoje tem lugar, não facilita apenas a possibilidade dos transmontanos se deslocarem para lá da serra. Abre também o ensejo a que muitos mais os visitem.

Por isso, e, como antes se dizia, "a pedido de várias famílias", aqui vai um brevíssimo guia para quem pretenda aproveitar uma ida a Vila Real e aí experimentar a gastronomia local.

Para comer bem, uma cozinha tradicional com toque não excessivamente contemporâneo, num ambiente muito agradável, serviço atento e simpático, o visitante deve ir ao "Cais da Vila" (259 351 209), num armazém anexo à antiga estação de caminho de ferro.

Uma das mais antigas casas de pasto da cidade, o "Chaxoila" (259 322 654), foi renovada e modernizada e oferece hoje, na antiga estrada nacional para Chaves, em pouco adiante do quartel, uma bela cozinha, com uma lista marcada pela tradição gastronómica da região.

Num registo de preços mais reduzido que os dois nomes anteriores (ambos com espaços ao ar livre, quando o tempo ajuda), uma excelente "terceira via" pode ser o "Lameirão" (259 346 881), muito próximo do "Chaxoila", com uma lista curta de cozinha "autêntica", que varia todos os dias, onde o toque regional e a simplicidade com qualidade é a marca da casa. Que posso dizer mais senão revelar que é a minha "cantina"?

Para quem andar pelo centro da cidade, uma escolha agradável, num ambiente típico, é o "Terra de Montanha" (259 372 075), um pouco acima da Capela Nova. Na zona do circuito (não sabem o que é o Circuito de Vila Real?), em Abambres, vale a pena fazer uma visita ao "Maria do Carmo" (259 322 407), onde, na minha juventude, passei muitas tardes de "lerpa", a beber "lapardana" (uma mistela com cerveja, vinho branco e açúcar que não só já não servem como eu não aconselharia).

Finalmente, para uma refeição de petiscos, coisas simples e boas, experimentem o (ainda novo) "Tralha" (nas instalações onde funcionou o saudoso "Espadeiro", junto ao Jardim da Carreira) e o velho "Cardoso", perto do Cabo da Vila, com as suas famosas "francesinhas".

Ainda duas notas. Quem visita Vila Real não pode deixar a cidade sem se munir da histórica bola (leia-se "bôla") de carne e dos ultra-famosos covilhetes, também de carne, da Pastelaria Gomes, na avenida Carvalho Araújo. Ali a dois passos, junto à igreja da Misericórdia, dê uma saltada à Casa Lapão, para dali levar as cristas de galo, um imperdível pastel com recheio de ovos.

Aqui fica um mini-guia de Vila Real, para quem gosta das coisas boas da mesa.

sexta-feira, maio 06, 2016

Obama e o mundo


Notei o desapontamento em muitas caras quando, na tarde de hoje, no painel de encerramento da 2ª Conferência de Lisboa, afirmei que Obama nos vai deixar um mundo mais inseguro do que aquele que existia ao tempo em que assumiu funções. Apesar da liderança demonstrada na negociação nuclear com o Irão e da descompressão nas relações com Cuba (numa "esquina" da ilha, chamada Guantanamo, não cumpriu o que prometeu), o saldo da política externa de Obama é medíocre.

Claro que gostei do discurso do Cairo, como agora apreciei o de Hanover, mas a paz e a segurança não se fazem com palavras. A sua gestão das "primaveras árabes" foi péssima, com responsabilidades muito sérias, partilhadas com a França e com o Reino Unido, na exploração ilegal do mandato do CSNU quanto à Líbia, com as consequências à vista das costas europeias. Quanto a Israel, mostrou a tibieza habitual dos presidentes democráticos e não deu um único passo relevante na resolução do conflito - embora Telavive continue a ser mantido como o principal recetor da ajuda externa dos EUA. No Iraque, a diplomacia americana foi um completo desastre, o "phasing-out" do Afeganistão é pavoroso e nada conseguiu fazer no caso importantíssimo do Paquistão. Grande parte da tragédia da Síria deve-se ao desregramento de toda essa zona e, salvo o compromisso das "armas químicas" (com Lavrov a ajudar), os EUA revelaram uma falta total de estratégia para a região. Obama não é culpado pela emergência do Estado Islâmico, mas a América é a grande culpada do desmembramento regional que lhe facilitou o surgimento e expansão. Mas serão os EUA responsáveis por não resolver problemas dos outros?, perguntarão alguns. Eu respondo: são, porque, no essencial dos casos, foram eles que ajudaram fortemente à sua eclosão. O presidente de um país que se arroga o direito de intervir em todo o mundo, na defesa dos seus interesses, tem a responsabilidade de ter de responder pela sua ação global. 

Para o que à União Europeia importa, Obama deixou-se envolver pela agenda da "nova Europa" (e pela Alemanha) no conflito ucraniano, que já havia conseguido contaminar setores de Bruxelas, a começar pela Comissão. O resultado é o que se vê: Moscovo "empochou" a Crimeia, empatou o conflito e controla a crise, com Putin mais popular do que nunca. Do lado de cá, a NATO (que é um "heterónimo" dos EUA) foi obrigada a instalar no seu seio um certo pânico e a descrispação parece agora pouco provável.

Se não nos sair em rifa Trump, teremos Hillary Clinton a suceder a Obama. A senadora democrática que esteve ao lado de Bush na invasão sem mandato do Iraque, que teve um gestão "republicana" do State Department e que tem um postura internacional muito ao estilo da "guerra fria", promete uma presidência '"hawkish" e confrontacional com Moscovo, com tensões que não deixarão de provocar clivagens na NATO e na própria Europa. Essa é também uma das partes da herança (negativa) de Obama.

A eleição de Obama foi, para mim, uma imensa alegria. Como homem, é uma figura respeitável, vê-lo na Casa Branca foi um salto importante para o mundo e tomou algumas decisões internas muito corajosas. Porém, no plano diplomático, foi uma imensa desilusão.

O túnel


Era um jovem engenheiro, originário do Porto, que a vida levou um dia para Vila Real, nos anos 50 do século passado. Rapidamente chegou a presidente do município e, mais tarde, a Diretor de Estradas e deputado pelo distrito. Chamava-se Humberto Cardoso de Carvalho e era meu tio. 

A serra do Marão era o “muro” que ele se tinha habituado a atravessar, entre as duas cidades a que, para sempre, ficou ligado afetivamente. Um dia, ouvi-o falar pela primeira vez no “túnel do Marão”. Foi, seguramente, há mais de meio século. 

Recordo as análises que fazia sobre as “cotas” dos dois lados dos montes, com as alternativas possíveis. Sei que abordara a ideia “lá em baixo”, em Lisboa, mas pode imaginar-se que nem a melhor boa vontade do seu amigo Arantes e Oliveira permitiria dar sequência ao sonho. Mas nunca deixou de falar nele, até ao final da vida.

À época, para mim, que era uma criança, a imagem de um túnel era apenas a de uma realidade ferroviária, muito pouco sossegante, que conhecia à saída da Régua e à chegada ao Porto. Ou no Tamel. Ouvir dizer que os automóveis também se podiam enfiar por aqueles buracos negros soava-me a coisa muito estranha. Mas ele mostrava fotografias de obras idênticas, na França e na Suíça, com um entusiasmo que ajudava a tornar a ideia, não apenas plausível, como desejável.

Para quem, como eu, nasceu em Vila Real, atravessar o Marão, nesses tempos de infância e adolescência, era uma programada aventura. A serra impunha-se como uma imensa barreira entre o nosso mundo e o mundo, com as suas centenas de curvas que davam direito a enjoos e uma longa viagem. Era o tempo em que se ia ao Porto aos “especialistas” ou para uma estada em casa de familiares. Ou para estudar na faculdade. Eram horas de caminho, de cansaço, de distância.

Foi a construção do IP4 que começou a mudar o Marão. Mas, também, a espalhar muitos mortos por aquela via perigosa, até que um “ovo de colombo” veio reduzir a carnificina regular. O desejo de uma autoestrada, que pudesse quebrar o isolamento de Trás-os-Montes, não era um dispêndio inútil em « betão » e défice. Era um gesto mínimo de solidariedade nacional para com uma das regiões mais sacrificadas do país, vítima de uma interioridade que, por muitos e maus anos, Lisboa desprezou. E, sem o túnel, nunca haveria autoestrada.

Amanhã, com a abertura oficial do túnel do Marão, a geografia vai mudar no norte do país, a coesão nacional reforça-se e a justiça faz-se. Neste dia, vou lembrar o meu tio Humberto Cardoso de Carvalho, um cidadão de vontade e coração, a primeira pessoa que me fez ver que, ao fundo daquele túnel com que persistentemente sonhava, estava um país para o qual Trás-os-Montes tinha um indiscutível direito a ter fácil acesso.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quarta-feira, maio 04, 2016

Notícias do anonimato

É muito interessante, por reveladora, a diferença entre os comentários insertos na minha página do Facebook e neste blogue.

Na primeira, porque quem ali surge tem um nome em princípio verdadeiro, os comentários são em geral urbanos, mesmo quando profundamente discordantes e até com alguma agressividade.

Já neste blogue, como se sabe, o anonimato é possível. Não é coisa que eu aprecie, confesso, mas admito que os anónimos (ou os nomes falsos) possam subscrever comentários, positivos ou negativos, desde que assumam uma atitude razoável. Por vezes, anónimos e não-anónimos "pegam-se" entre si e, em certos casos, há excessos. Mas esse é um terreno natural.

Porém, há alguns outros anónimos aqui do blogue (ou nem por isso, porque, através dos IP que ficam registados, já descobri o nome verdadeiro de alguns desses "corajosos") que, conhecedores da permissividade com que me divirto a testar os limites, tentam fazer passar insinuações soezes, provocações rasteiras, sempre dotados da imensa liberdade de expressão e potencial impunidade que a ausência de nome lhes estimula. E nem imaginam o que por ali chega! Insultos, ameaças, até físicas, são o pão nosso de cada dia, tendo-se, aliás, agravado nos últimos tempos. É um excelente espelho sobre algum país que por aí anda, podem crer. Às vezes, penso: coitados, não devem ter mais nada para fazer e esse anonimato agressivo deve confortá-los. Por isso, associo-me a essa terapia ocupacional.....

Manifesto

RECONFIGURAÇÃO  DA  BANCA  EM  PORTUGAL

–  DESAFIOS  E  LINHAS  VERMELHAS  –
  1. Tudo indica que os problemas de reconfiguração da banca em curso em Portugal permanecem, infelizmente, uma questão de relevante actualidade. É público e manifesto o desagrado e preocupações com o modo como esta questão têm sido abordada e decidida, e com a evolução daí resultante. O recente resgate do BANIF é apontado, a vários títulos, como um mau exemplo, que não pode repetir-se: excessivo voluntarismo, pouca transparência, deficiente gestão estratégica, falta de liderança política, destruição de valor e custos significativos e prolongados, para a economia portuguesa. Em particular, são motivos de inquietação  a metodologia e objectivos adoptados pelas autoridades europeias, não devidamente compensados pela actuação dos decisores nacionais.  O  receio de que as falhas identificadas no processo possam vir a afectar qualquer  outro banco português, com graves consequências para o sistema bancário e para o futuro do País, justifica, em nosso entender, uma tomada de posição clara por parte dos que não concordam com o recente curso dos acontecimentos.         
  2. A actividade bancária constitui um sector estratégico, que assegura a intermediação indispensável ao funcionamento de qualquer economia e ao desenvolvimento das suas relações com o exterior. As avaliações e decisões dos bancos  em matéria de concessão de crédito seleccionam, na prática, quais  as empresas e projectos que irão ser financiados. Desse modo, influenciam a composição das actividades produtivas, o crescimento  e a criação de emprego. Por outro lado, o sistema bancário – pelo contacto directo com a diversidade da actividade económica – pode e deve desempenhar também um relevante papel na concretização de iniciativas de investimento e comércio, parcerias e aquisições ou fusões.
  3. A importante função da banca numa economia só poderá no entanto ser assegurada se o sector estiver adequadamente estruturado. Não sendo garantidas as necessárias condições de competitividade na configuração do sector,  é previsível que qualquer banco, ao preferir menor risco e maior rendibilidade nas suas aplicações, oriente as poupanças que lhe são confiadas para os centros de maior dinamismo, agravando assim eventuais desequilíbrios regionais, não apenas no espaço nacional mas também no europeu.
  4. A diversidade de instituições financeiras  pode, pois,  contribuir significativamente para uma concorrência mais transparente, melhor aderência às realidades económicas  e sociais locais, e até para mais eficaz resposta às políticas monetárias, evitando-se  assim a dependência excessiva em bancos “too big to fail” e outros conglomerados financeiros, com os associados riscos sistémicos conhecidos.  Não é aliás por acaso que na Europa e noutras regiões desenvolvidas do globo a propriedade das instituições bancárias tem sido preservada em estreita relação com as comunidades nacionais e regionais.
  1. A crise do sector bancário em Portugal (a partir de 2011) e o recente arranque da implementação da União Bancária Europeia tornam inevitável uma profunda reconfiguração do nosso sector financeiro. É indispensável que esta seja acompanhada com realismo , rigor e transparência  pelas autoridades nacionais e europeias, de forma a permitir que, em complemento de uma adequada política fiscal, o sector bancário em Portugal  contribua para o reforço da poupança nacional e do  investimento produtivo no País.  Uma reconfiguração mal orientada, pelo contrário, redundará previsivelmente no agravamento do actual quadro de estagnação económica e desemprego, podendo mesmo contribuir para  suspeitas e rejeição do projecto de integração europeia.
  1. A diversificação da origem do capital é neste contexto factor determinante da concorrência, i.e.  a estrutura  bancária tem de assentar na diversidade  das instituições accionistas e  da correspondente origem, por forma a que  as empresas portuguesas possam beneficiar de fontes de financiamento provenientes de diferentes nacionalidades e de centros de interesse distintos. Tal não poderá  manifestamente ser garantido, se a propriedade da banca privada portuguesa vier a estar concentrada e/ou dominada por instituições de um qualquer único país estrangeiro.
  1. O triste caso do resgate do BANIF indicia a adoção de um paradigma inaceitável, que não pode ser replicado em casos futuros. Se o que parece é, a actuação do BCE neste caso, em vez de viabilizar soluções com menores custos e igualmente credíveis, antes reflecte uma estratégia que coloca a banca privada nacional na dependência de um muito escasso número de bancos de um país estrangeiro. Além de colocar Portugal numa posição de evidente vulnerabilidade relativamente a quaisquer questões bilaterais ou sistémicas, tal estratégia resultaria em claro detrimento da concorrência e da diversificação do relacionamento bancário externo.
  1. Neste caso do BANIF é também patente que a actuação do BCE menosprezou a dimensão da concorrência e a possibilidade das empresas portuguesas poderem beneficiar de fontes de financiamento  provenientes de nacionalidades diversas e de centros de interesse distintos. Não é compreensível a razão para terem sido afastados do concurso concorrentes de nacionalidade distinta, detentores de licença para o exercício da actividade bancária e com ofertas de montantes significativamente superiores.
  1. Não cabe ao BCE pré- definir a configuração do sector bancário de qualquer país, nem o quadro das suas relações externas. Uma vez definido claramente,  no âmbito  da União Bancária, o quadro estratégico a prosseguir, sem discriminação  de países ou regiões geográficas, compete aos reguladores nacionais, em articulação com os respectivos governos, zelar pela apropriada estruturação, sustentabilidade e solvabilidade da configuração resultante. O regulador nacional não é uma mera delegação do BCE, e não pode eximir-se  a prestar contas às entidades nacionais, especialmente nesta fase de transição para a União Bancária, em que as decisões críticas são tomadas pelo BCE  mas os inerentes custos são suportados exclusivamente pelo país em causa.
  1. No processo de venda do BANIF, registaram-se igualmente fragilidades e omissões na actuação das autoridades portuguesas e em particular do regulador, nomeadamente ao aceitarem – sem devido escrutínio e explicita ponderação de alternativas – um processo de resolução que, além de não devidamente experimentado na Europa, acarreta significativos custos para o sistema bancário e os portugueses.
  1. O caso do BANIF leva-nos a rejeitar a repetição de desenlaces semelhantes  em casos futuros, e desde logo para o Novo Banco e o BCP. Em particular, não é aceitável  que a reconfiguração do nosso sistema bancário possa decorrer em condições menos favoráveis – quanto a prazos e exigências de resgates – do que as facultadas  a outros países europeus,  e que permanecem em vigor.  Há que ter em conta soluções que tornem possível a valorização dos activos, tendo em vista a sua eventual alienação, fusão ou detenção pública a título trasitório. Ou seja, sem recursos públicos adicionais, para além dos requeridos para a continuação da CGD na posse do Estado, uma vez que não é aceitável que, também neste caso, o accionista não deva capitalizar a sua empresa, como é sua obrigação. Acresce que os Tratados em vigor não autorizam discriminações de acordo com a natureza dos accionistas  – privados, públicos ou mutualistas. Compete , pois, ao Governo diligenciar junto das entidades europeias ( e em particular da DGConcorrência) para que as soluções indispensáveis sejam susceptíveis de concretização.
  1. Em síntese, há que assegurar que em futuros casos, incluindo o do Novo Banco, a solução a adoptar tenha em conta a dimensão estratégica ( de longo prazo ) do problema e não somente os aspetos financeiros de curto prazo. Impõe-se por isso que, no caso da venda do Novo Banco, o momento e a forma escolhidos para a sua eventual concretização sejam clara e objectivamente discutidos. Uma extensão do prazo de venda, até Agosto de 2019, tal como a lei permite, poderá justificar-se, tendo em vista o estudo de soluções alternativas, nomeadamente processos de fusão entre instituições, ou de oferta pública de venda (IPO) que assegure um  elevado número de novos accionistas. É igualmente importante que a modalidade de venda escolhida permita que entidades portuguesas relevantes possam participar do processo. Neste contexto não é de excluir, e seria mesmo desejável, a emergência de um banco de capitais portugueses, com expressão significativa no mercado. Importa, assim,  que o processo seja clarificado, definido , tornado público e aberto a todos os potenciais interessados, em totais condições de igualdade,  sendo inadmissível qualquer forma de escolha antecipada dos vencedores.
  1. A finalizar, considera-se indispensável que no âmbito da definição da estrutura accionista do Novo Banco e do BCP, sejam conhecidos os intervenientes que irão contribuir para a clarificação da situação e identificados os responsáveis pela decisão final, por forma a assegurar a transparência do processo, a competitividade do sistema e a sua contribuiçaõ efectiva para o desenvolvimento da nossa economia.
  1. O sector bancário português encontra-se actualmente numa encruzilhada entre dois caminhos distintos: A) reconfigurar-se por forma a conseguir a emergência de bancos fortes ( quer portugueses quer de  nacionalidades diversas) que facilitem e promovam as relações de Portugal com os diferentes continentes; B) aceitar uma redução de autonomia, com crescente dependência da nossa economia do espaço ibérico – como parece decorrer da actuação  recente das instituições europeias – interrompendo e contrariando a longa tradição portuguesa de participação activa e independente na globalização mundial.
O primeiro caminho exige um combate político determinado, com  demarcação clara, por parte dos responsáveis – sem por em causa compromissos europeus e regras inerentes ao funcionamento da economia social de mercado em que nos inserimos – de uma linha vermelha entre soluções que são aceitáveis e as que  não são admissíveis.

É este o desafio que se coloca aos portugueses e em particular  aos seus governantes.

Lisboa, 28 de Abril de 2016

-  Alberto Ramalheira
– Alberto Regueira
– Alexandra Costa Gomes
– Álvaro Beleza
– Ângelo Correia
– António Bagão Felix
– António Barreto
– António d’Orey Capucho
– António Mendonça Pinto
– António Leite Garcia
– António Santiago Baptista
– Aurélio de Sousa
– Bernardo Frazão Sardinha
– Bruno Bobone
– Carlos Fernandes
– Carlos Melancia
– Carlos Morais
– Carlos Pereira
– Carlos Silva
– Celeste Coimbra
– Clemente Pedro Nunes
– Diogo Freitas do Amaral
– Eduardo Catroga
– Eduardo Madeira Correia
– Eduardo Marçal Grilo
– Feliciano Barreiras Duarte
– Fernando Bello
– Fernando Gomes da Silva
– Fernando Correia da Silva
– Francisco Seixas da Costa
– Henrique Neto
– Henrique Simões dos Reis
– Jaime Lacerda
– Joaquim Lopes
– João Baptista da Silva
– João Cortez de Lobão
– João Duque
– João Ferreira do Amaral
– João Miranda
– João Salgueiro
– João Vieira Lopes
– João Alexandre Oliveira
– José António Girão
– José Ribeiro e Castro
– José Roquette
– José Sales Henriques
– José Torres Campos
– Júlio Castro Caldas
– Luís Janeiro
– Luís Aires de Sousa
– Manuel Pinto Barbosa
– Manuel Ramalhete
– Manuela Ferreira Leite
– Manuela Morgado
– Miguel Beleza
– Miguel Lobo Antunes
– Nuno Diniz
– Nuno Morais Sarmento
– Olga Correia
– Paulino Balão Fernandes
– Pedro Ferraz da Costa
– Pedro Teles Baltazar
– Renato Baptista
– Rui Rio

terça-feira, maio 03, 2016

Nações Unidas

Jorge Moreira da Silva, um dos mais competentes políticos que passou pelos governos de Passos Coelho, é candidato a um lugar equiparado a subsecretário-geral das Nações Unidas. Tenho por ele consideração e sincero respeito pelo modo como está na política. 

Faço votos para que seja eleito: seria mais uma consagração internacional da sua qualidade pessoal como técnico e um orgulho para o nosso país.

Nas redes sociais alguns têm, contudo, dado a ideia de que se trata de um lugar "logo abaixo" daquele a que concorre António Guterres - secretário-geral.

Sem minimamente pretender subestimar a importância do lugar a que Moreira da Silva é candidato, convém deixar claro que o título de subsecretário-geral é atribuído a mais de 70 lugares no quadro das NU e órgãos dependentes, sendo que alguns desses lugares foram ou são já ocupados por alguns portugueses.

Repito: não se veja aqui uma menorização de um cargo que seria sempre muito importante e prestigiante para Moreira da Silva e para Portugal, mas não se confundam ou equiparem as coisas.

segunda-feira, maio 02, 2016

Pinto da Costa


O Futebol Clube do Porto atravessa um mau momento. Provavelmente, um dos seus tempos menos gloriosos das últimas décadas. Não sou portista, não tenho a menor simpatia pelo clube das Antas (sou dos que não dizem "do dragão"), fiquei contentíssimo ao ver o Sporting lá ganhar e acho que faz muito bem àquela gente um forte banho de humildade, embora lamente que disso seja o Benfica o beneficiário.

Dito isto, quero deixar claro que considero inconcebível ler e ouvir o que alguns portistas dizem por estes dias sobre Pinto da Costa. É de uma ingratidão sem limites não respeitar o que ele fez pelo FC do Porto, levando-o de um estatuto de província, de eterno "terceiro", aos píncaros do futebol mundial, com conquistas à escala europeia e global que nenhum clube português alguma vez pode sonhar igualar.

O FC do Porto deve tudo a Pinto da Costa, desde a dedicação de uma vida até à capacidade de gestão do futebol que fica a anos luz de qualquer outro clube português e só igualada ou superada por poucos outros clubes pelo mundo. Claro que para isso contribuiu o "desequilibrar" do poder da arbitragem para o Norte. Mas o que é que faziam, até então, o Benfica e o Sporting? O Porto não ganhou o que ganhou pelas qualidades nutricionais da "fruta" servida no Pérola Negra ou pelo facto de apitos mais ou menos dourados terem mostrado amarelos intimidatórios no início de muitos jogos ou livres à entrada da área nos últimos minutos. Ganhou-os também por isso (há agora quem lhe esteja a suceder e sempre o tivesse pretendido) mas, essencialmente, porque os "andrades" foram, a uma distância imensa, o clube mais bem dirigido do nosso país.

Não aprecio o estilo público de liderança de Pinto da Costa, a sua pesporrência e desprezo pelos adversários, a radicalização regionalista e algo saloia do seu discurso, a fanfarronice a que só Rui Rio teve coragem para pôr cobro. Mas tenho uma imensa admiração pelo grande homem de futebol que é, sem par em Portugal, pelo que entendo como profundamente injusta a rejeição que, por estes dias, sofre por parte de quem lhe deve imensas alegrias. O que não é o meu caso.

Alto e bom som

O documento sobre a Reconfiguração da Banca em Portugal, que subscrevi com outras 50 pessoas, fala por si. Não me compete interpretá-lo, sendo apenas proprietário das razões pessoais por que a ele aderi. 

Considero que o texto faz um apelo necessário à assunção de responsabilidades, seja no âmbito dos atores políticos, seja no domínio da ação do regulador, seja na imperatividade da articulação virtuosa entre ambos. O momento do surgimento do texto pareceu-me adequado, porquanto os dias que a banca portuguesa atravessa são o que são e aproximam-se, neste domínio, decisões da maior relevância estratégica para o país. 

Da parte do chefe do Estado, houve já sinais claros de atenção e preocupação com a crescente concentração da sede do poder bancário em Portugal, o que me pareceu muito positivo. Também o primeiro-ministro assinalou o seu desconforto com os constrangimentos europeus colocados às necessidades de capitalização do principal banco público, nomeadamente limitativos do exercício dos deveres de responsabilidade solidária que lhe são exigidos.

Incomoda-me que, da parte do Governador do Banco de Portugal, não tenham emergido, até agora, mais do que uns murmúrios ligeiros sobre a atitude das instituições europeias, em sede de comissão parlamentar, a propósito da saga Banif. É sabido que a parcimónia nas palavras é geralmente tida como a virtude idiossincrática maior da rua do Ouro. Mas, porque «o regulador nacional não é uma mera delegação do BCE», gostava que o presidente do banco que leva o nome do meu país, alguém que co-gere em Frankfurt uma fatia decisiva da nossa soberania, no seio de um processo atípico em que Portugal serve de «cobaia» no laboratório de uma União Bancária que, não por acaso, alguns se recusam a deixar completar, ecoasse em público as razōes do país que representa. 

O dr. Carlos Costa fala, em geral, em tom baixo. O país ficar-lhe-ia grato se, por uma vez, exprimisse as graves preocupações nacionais, alto e bom som - quer o BCE ou a Comissão europeia gostem ou não. Lamento ter de dizer isto, mas, a título exclusivamente pessoal, se acaso entende que não tem condições para o fazer, então talvez fosse seu dever criar as condições naturais para que alguém o possa vir a fazer em seu lugar.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

domingo, maio 01, 2016

Paulo Varela Gomes


Em 2007, andei uns dias por Goa, com a curiosidade de perceber a ambiguidade de uma sociedade onde alguma lusofobia convive com uma complexa memória afetiva de Portugal.

O embaixador de Portugal na Índia e hoje ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, disse-me então que não podia deixar de falar ali com Paulo Varela Gomes, que então dirigia o centro cultural da Fundação Oriente em Goa. Conhecia-o apenas da escrita em jornais e de programas de televisão. Sabia das suas andanças políticas, onde revelara uma saudável inquietação, que o arrancara de alguma ortodoxia original.

Conversámos durante um jantar. Por um par de horas, tive o privilégio de ouvir a sua leitura viva, polémica e informada da realidade de Goa. Era um homem frontal, que dizia o que pensava, num registo às vezes tenso, muitas vezes irónico. 

Foi a primeira e única vez que falámos. A partir de então, passei a lê-lo com muito mais atenção do que tinha feito até então. E ganhei bastante com isso. Homem de uma escrita límpida e profunda, ficou-me a ideia clara de que crescia e se apurava a cada livro publicado, como se a doença inexorável que o afetava lhe trouxesse um sopro de lucidez essencial.

Morreu ontem. Ao seu pai, coronel Varela Gomes, figura que conheço há muitos anos (e de quem, por coincidência, estou a ler uma biografia recentemente publicada), expresso as minhas condolências.

sábado, abril 30, 2016

"A minha terra é Viana..."


A minha terra não é Viana, mas Viana também é a minha terra. Olho para os velhos álbuns de fotografias e vejo-me com meses nos braços da minha avó, no quintal da casa do Largo Vasco da Gama. Aprendi a andar de bicicleta no Límia Parque e a nadar na Doca, enrijei nas águas do Cabedelo, passei horas de vento, para "apanhar iodo", em tardes na Praia Norte, para onde caminhava através da Ribeira, do Campo e dos Estaleiros. Testemunhei as conversas do meus pais na Caravela e no Girassol, com muitos amigos vianenses que, como eles, há muito se desvaneceram com o tempo. Aprimorei-me no bilhar do Sport e no ping-pong da Nun'Alvares. Enchi-me de cinema no Palácio e no Sá de Miranda. Adolescente, passei horas no Oceano e no Viana-Mar, que vi nascer. Fui em romagem, por madrugadas em bandos divertidos, ao Cais Novo, comprar pão à padaria, lançando da ponte, com o Sales cangalheiro, garrafas ao Lima, com mensagens definitivas para o mundo. Por muitos anos, passei todas as minhas férias "grandes" e Natais em casa da minha avó, rodeado de primos, de tios, de afeto e de brincadeira. Da minha cama de infância, a janela recortava Santa Luzia, cujo escadório subi em teima de records. Da "torre" da casa, o sótão, via-se o mar e eu perdia-me entre livros e coisas mais velhas do que todas as histórias daquela família que, num dia de 1912, veio de barco de Ponte de Lima para a mais bonita cidade do país. E, claro, vivi em Viana muitas Festas da Senhora da Agonia.

Já adulto, Viana passou a ser um destino regular de visita e férias, com momentos muito bons e outros bem tristes. Tenho por lá família, sinto-me ali em casa, uma casa de que conheço alguns cantos melhor do que muitos vianenses mais distraídos. 

O convite que a Câmara de Viana me fez para ser este ano o presidente das Festas da Senhora da Agonia, mais do que honrado, deixou-me emocionado pelo ensejo que me é dado para assim acarinhar a memória do meu pai, um vianense saudavelmente "exilado" em Vila Real, que ao longo da vida me ensinou a gostar daquela terra como se fosse a minha. Em rigor, não posso dizer, como Pedro Homem de Melo um dia pôs na boca de Amália, que "a minha terra é Viana". Mas - quem me conhece sabe isso - é como se fosse. 

sexta-feira, abril 29, 2016

Homenagem

No dia de hoje, em Lisboa, apetece-me muito homenagear esta cidade brasileira, cujo nome me está a escapar.

Um historiador improvável

Já não me recordo da primeira vez que falei com Fernando Rosas. Mas não foi há muitos anos. O seu nome era-me bastante familiar na vida política portuguesa mas, embora caminhássemos do mesmo lado da estrada, acabámos por não coincidir na maioria das opções cívicas que fizemos.

Um dia, convidei-o a ir a Paris com outros historiadores, numa evocação que organizei na embaixada sobre a "Liga de Paris", a estrutura de coordenação política que juntou os exilados na luta contra a Ditadura Militar, implantada em 1926. Desde então, através de amigos comuns, temo-nos visto mais. E, algumas vezes, "contracenámos" nas televisões a comentar a política.

Fernando Rosas deu ontem a sua última lição na Universidade Nova. Foi uma carreira curta de alguém que, à partida, não estava academicamente vocacionado para a História. Mas o país ganhou imenso com essa sua opção, ainda que tardia. A História contemporânea portuguesa encontrou nele uma figura que se constituiu como uma referência muito importante, em especial nos seus trabalhos de análise e desconstrução do salazarismo, bem como na interpretação dos grandes movimentos da sociedade portuguesa no século XX. Com uma excelente capacidade expositiva, Rosas é, nos dias de hoje, e além do mais que é muito, um magnífico divulgador histórico na televisão, que, ao contrário de outros no passado, tem o mérito de aliar um rigor sem concessões a um discurso muito apelativo.

Não conheço bem as regras do mundo académico. Mas, a avaliar por tantos outras pessoas a quem já vi dar a "última lição", acho que o dia de ontem abriu apenas um novo capítulo para aquilo que Portugal pode vir ainda a aproveitar do grande historiador que é Fernando Rosas.

Um abraço para si, Fernando!

A agenda do presidente


O discurso presidencial de 25 de abril trouxe este ano um estilo novo, mais pedagógico, acessível e descrispado. Terá mesmo contribuído para atenuar o “vício” parlamentar para converter um evento que deveria ser de festa num terreno de polémica confrontacional, marcado pela conjuntura.

O novo presidente sabe que vive um estado de graça que tem muito a ver com o contraste pouco subliminar que projeta sobre a imagem do seu antecessor. Com o tempo, veremos se algum frenesim que marca estes primeiros dias é, em absoluto, compatível com o seu estatuto e, em especial, com alguma distância mais formal que o futuro pode vir a requerer face a alguns temas. Porém, e por ora, os portugueses parece apreciarem o novo estilo.

Daquilo que o chefe do Estado tem dito, fica a certeza de que é sua intenção dar uma oportunidade ao atual governo para levar à prática o seu projeto, evitando que este encontre razões para poder vir a acusá-lo de contribuir para os eventuais azares que lhe possam vir a suceder. Acho mesmo que o presidente corre alguns riscos nessa sua atípica solidariedade interinstitucional.

A “acalmação” que o presidente se esforça por levar a cabo não tem a ver com qualquer sintonia ideológica de fundo com a agenda de um PS apoiado pela extrema-esquerda. Porém, conhecendo muito bem o país, Rebelo de Sousa já entendeu que o “mood” público maioritário é, por ora, simpático a um executivo que está a tentar uma “quadratura do círculo” em matéria financeira.

Ao proceder desta forma, o presidente sabe que está a causar engulhos numa antiga maioria que, muito simplesmente, gostaria de ter em Belém uma pessoa que, de uma qualquer forma, ajudasse ao seu rápido regresso ao poder. O discurso de Paula Teixeira da Cruz não engana e, de forma evidente, revela a hipocrisia da falsa resignação de Passos Coelho, na sua reentronização em congresso. A raiva e a amargura estão por ali ainda muito  evidentes e, cada vez mais fica claro que o voto esforçado do PSD em Rebelo de Sousa foi apenas a opção por um mal menor, que agora lhes parece estar a sair “pior do que a encomenda”.

Deste 25 de abril ficou também a insistência nos consensos, visível no discurso do presidente. Ela revela muito bem o país político “ideal” de Marcelo Rebelo de Sousa: dois partidos alternantes no poder, muito “à europeia”, com diferenças entre si menores do que as similitudes do modelo de sociedade que partilham. Uma coisa me parece clara: este projeto não é compatível com Passos Coelho, com o PCP e com o Bloco. A grande questão é saber se, a prazo, o será com António Costa.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, abril 28, 2016

A contracosta de Angola

“Tudo, menos Angola!”. Foi o conselho que recebi quando, por graça, perguntei a algumas pessoas, ligadas a atividades bem diferentes das minhas, sugestões sobre o tema a abordar hoje aqui.

Irrita-me esta obsessiva atitude de tratar com pinças o tema angolano. Enquanto a não ultrapassarmos, a possibilidade das coisas mudarem para melhor mantem-se afastada. Acharia saudável que mais pessoas surgissem nos media portuguesa a falar e escrever sobre Angola. Não para passar “recados” de qualquer um dos muitos lados do tema ou para incendiar irresponsavelmente o ambiente. Mas para escalpelizar friamente cada uma das questões que se abrem, sem suscitar de imediato a suspeição da conspiração ou do frete.

Fui diplomata em Angola nos anos 80, no auge da guerra civil, numa Luanda tensa, com recolher obrigatório nas ruas e estantes vazias nas lojas. Nunca as relações bilaterais estiveram num ponto tão baixo como então. Mais tarde, em Lisboa, vivi de bastante perto a intermediação portuguesa para a paz precária obtida em Bicesse, muito apreciada por Angola. Depois, já no governo, vi esforços sinceros, de ambos os lados, para contrariar a malapata que persiste entre Lisboa e Luanda. Já testemunhei um pouco de tudo neste relacionamento bilateral.

Assisti à quase permanente inabilidade socialista para conseguir estabelecer uma relação estável com Luanda, que sempre deu mostras de apreciar o maior pragmatismo (alguns chamam-lhe outra coisa) da direita lusa. Assisti a “diplomatas paralelos” voarem de Lisboa para Luanda, tentando bons ofícios, apoiados na cumplicidade política ou militar gizada noutros tempos- Depois, foram sucedidos por lobistas com o IBAN no cartão. Não deve haver dimensão da nossa relação externa mais “poluída” do que a que vivemos, nas últimas quatro décadas, com Angola.

Esse mundo, que balança entre a boa vontade e a intriga, convive, lado a lado, com gente séria e disponível para trabalhar lealmente com Angola, profissionais e empresas, de vária dimensão, que procuram estabelecer relações de confiança com os parceiros locais. Tenho observado, do lado português, não obstante as dificuldades que a atual crise angolana suscita, uma extraordinária compreensão para tentar acomodar os efeitos de problemas de que não foram culpados nem ajudaram a potenciar.  

É manifesto que Angola se habituou – e não é apenas com Portugal que tal sucede – a confundir algumas águas, entre o oficial e o privado, tirando disso consequências desproporcionadas. Luanda tem de entender que isso não pode ser aceite por nós, sob nenhum pretexto.

Espero que a próxima visita de António Costa a Angola possa contribuir para desfazer alguns equívocos, embora aqui a experiência me recomende a não criar expetativas elevadas a prazo.

O PM português, com certeza, deixará claro o porquê de decisões relevantes no plano bilateral no passado recente, mas igualmente os limites daquilo que está ao seu alcance vir a poder fazer no futuro. A prisão de um seu antecessor é a melhor prova de que a separação de poderes é, por cá, um facto. Angola sabe bem que dependemos, em setores decisivos da soberania, de instâncias que não controlamos, cujas decisões sofremos, e que hoje, mais do que nunca, sobredeterminam as nossas relações com terceiros – por exemplo, no setor financeiro. 

Termino com um desejo: que, neste particular, o PCP possa, por uma vez, mostrar-se útil à política externa do seu país.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

quarta-feira, abril 27, 2016

Guerra dos Tronos

Anda por aí uma coisa cinzenta ou esverdeada escura, com o que me parece ser uma ceguinha, tudo de longos e tristes balandraus e gente desgrenhada ou de ar espantado e sem sorrisos, com uns cavalos à mistura, num clima que me lembra tardes invernosas de Vila Real, com o vento a puxar do Marão. Só vi fotografias, mas parece que são filmes de televisão. E, claro, "imperdíveis". 

Às vezes, tenho pena de não poder acompanhar algumas conversas sociais sobre isto, mas ando assim há décadas. Havia, em tempos, uma coisa chamada "Twin Peeks", em que aparecia nos anúncios uma cabeça de mulher num saco de plástico e que, também, me fez surgir como ignorante em dezenas de conversas.

Tenho sempre uma curiosidade residual face a estas coisas, mas ela acaba por não ser suficiente para lhes dedicar o meu tempo. E o tempo, nestes dias que me correm rápido, é a "commodity" mais preciosa.

terça-feira, abril 26, 2016

Dito

Nunca percebi muito bem a irritação daqueles que, face à liberdade dos outros, dizem: "Ele faz o que quer e sobra-lhe tempo". Não será esse o ideal da vida? Pelo que me toca, a frase nunca se me aplicou. Passei grande parte do tempo a fazer, não o que queria, mas aquilo que necessitava de fazer para viver (como queria). Mas nunca me sobrou (muito) tempo. No dias de hoje, é verdade: faço o que quero, mas continua a não me sobrar tempo algum. Será que a frase completa se me aplicará algum dia?

segunda-feira, abril 25, 2016

"Há qualquer coisa no ar..."

"Há qualquer coisa no ar, qualquer coisa que está a renascer, um certo espírito de abril" - disse há pouco Manuel Alegre, ao receber um prémio das mãos do presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Alegre tem razão. Podemos estar todos equivocados, isto pode não passar de uma ilusão passageira, mas que a nova magistratura presidencial está a induzir algo de novo no país, essa é uma realidade iniludível. São escassas as vezes em que se vê gente rotinada na desesperança a olhar para um chefe de Estado com uma expetativa tão positiva. Marcelo Rebelo de Sousa tem uma imensa responsabilidade, porque lhe está a ser dado um crédito de confiança muito pouco comum.

Há semanas, perguntei a um amigo, professor universitário em Chicago, ligado ao mercado americano de capitais, como é que esses meios estavam a avaliar a situação económica portuguesa, agora que um governo de esquerda estava a seguir uma orientação bem diferente daquela que eles tinham "acarinhado". Esse amigo, que detesta a solução governativa portuguesa, disse-me uma frase que me surpreendeu: "Agora, a avaliação está a ser bem melhor". Fiquei intrigado. Ele esclareceu-me: "Desde que foi eleito um presidente de da República de direita, houve uma evidente acalmia na perceção negativa sobre a situação global portuguesa". 

O curioso é que eu, e creio que muitos portugueses, não identificamos necessariamente Marcelo Rebelo de Sousa com a imagem de "um presidente de direita". Hoje, ao ouvir Paula Teixeira da Cruz na sua ressabiada intervenção no parlamento, fiquei com a sensação de que, também ela, concorda comigo. E só espero que, nos próximos cinco anos, ela esteja certa.

domingo, abril 24, 2016

"Name-dropping"


Nunca a expressão anglo-saxónica "name-dropping" me pareceu tão adequada, aplicada ao que está a acontecer à "alambicagem" semanal dos nomes portugueses nos Panama Papers.

Em cada número semanal do "Expresso" aparece meia dúzia de nomes e, depois, ficamos à espera, como nas revistas de banda desenhada, com o clássico "à suivre".

Posso estar enganado, mas, a menos que surja por aí uma bernarda em torno de uma figura totalmente insuspeita mas muito sonante social ou politicamente, isto ameaça converter-se numa grande "seca". Falo por mim que, sendo interessado razoavelmente pelo tema, começo a perder a paciência com toda aquela enxurrada informativa, prenhe de nomes de advogados, firmas e adjetivos escandalizados.

Com a banalização destes "leaks", com cada vez mais gente metida "ao barulho", pergunto-me se não veremos um dia certos figurões a "meter cunhas" para também surgirem referenciados. Porque isto de ter um "offshore", por muita diabolização que mobilize na nossa casta imprensa, continua a dar algum prestígio em certos meios...

União bancária


Passou por todos os testes de stress e, confirma-se, contribui para retirar o dito. Quando afetado por produtos tóxicos, limpa-se com um pano. Só tem problemas de liquidez quando chove. De uma solidez à prova de toda a supervisão, oferece créditos de sol (aprendi isto já nas renováveis) a taxas imbatíveis, embora exija um recurso ao Panamá (ao chapéu, claro). Assumo que é um "offshore", mas face ao meu quarto. As imparidades até facilitam o espaço, embora dê bem para pares. É feminista nos juros: só dá para juras...

É o meu banco preferido.

A data

- Ó Francisco! Você transmite sempre a toda a gente a ideia de que eu sou um fascista, só porque fiz parte, em tempos, de um partido que se opunha ao MFA, por onde você andava.

A conversa tem mais de uma década.

O meu interlocutor sabia que estava a fazer um "número". Talvez não fosse um "facho" no sentido puro do termo, mas era um reacionário de grande calibre. Aliás ainda hoje o é e deixa transparecer isso, nas atitudes da vida. Ora eu conhecia-o "de ginjeira", sabia-lhe o currículo, as histórias e os episódios, um deles que pretendeu afetar-me negativamente, que definitivamente o qualificaram e definiram, perante mim e muito mais gente, ao longo dos anos.

Nada tenho contra quem pensa de forma diferente de mim, mas quando não está estabelecido um registo natural de empatia, e era o caso, prefiro a frieza cristalina das coisas, sem equívocos. Naquele particular, por várias razões que não vêm apara aqui chamadas, não me apetecia deixar que a menor ambiguidade se instalasse entre nós.

- Meu caro, você não precisa de disfarçar. Eu sei muito bem onde é que você está, você não tem a menor dúvida sobre aquilo que eu sou e ainda bem que, de há muito, as coisas são muito claras entre nós. Ninguém se engana de campo. Você, aliás, é como é e isso ficou definido desde o seu nascimento...

- Desde o meu nascimento? Não estou a perceber...

- Ai não?! Então em que dia do ano é que você nasceu?

- 24 de abril. Porquê?

- Já percebeu agora?

Ele, que é tudo menos parvo, percebeu e sorriu...

Deve estar hoje a soprar velas.

sábado, abril 23, 2016

O otoviciado


Havia várias mesas livres na esplanada daquele restaurante. Mas, depois de lançar olhares em volta, curioso com algumas das nossas caras, que teria visto em algum lado, veio plantar-se junto daquela em que eu e três amigos almoçávamos, charlando despreocupadamente, com o ruído dos treinos do autódromo lá em fundo.

Falávamos alto, porque dois dos convivas são já duros de ouvido. E, também, porque, nos dias que correm, não temos o menor receio de que oiçam as nossas opiniões, por mais apimentadas que elas sejam.

Começámos por notar que esse esforçado vizinho tinha um reflexo pavloviano, ligado ao surgimento, na conversa, de nomes mais sonantes. As orelhas como que lhe cresciam, quando tal acontecia. Ficava visivelmente deliciado se, num repente de um de nós, algum adjetivo mais cáustico crismava um desses nomes.

Era jovem, nos "early thirties", com ar "da Linha", talvez universitário, com pinta de ter amigalhaços na imprensa das notícias curtinhas, da que se faz sem palavras que obriguem a dicionário. Isso mesmo: a imprensa "das gordas", querendo com isto significar os jornais de títulos fortes (não vá o Bloco suspeitar que estou aqui a falar insidiosamente de sexismo adiposo).

O interesse obsessivo do fabiano começou a chamar a nossa atenção e a encanitar-nos.

A certa altura, decidimos, como dizem os militares, "explorar o sucesso". Embarcámos então numa conversa de exageros, de fabulação, de "affaires" inventados, de "complots" em gestação, de atribuição a implausíveis autores de episódios inacreditáveis. Tudo isto acompanhado de uma adjetivação criativa, às vezes raiando o insulto a gente insuspeita, outras angelicando no comentário inapeláveis canalhas. O que o rapaz aprendeu! E parecia que tomava afanosamente notas!

Acabada a função, com ele já longe, ao telefone, saímos às gargalhadas. Combinámos ficar atentos à blogosfera e ao "garbage" mediático. Se sair alguma coisa, vai ter graça, podem crer!

Ao entrar no carro, arrependi-me, contudo, de não ter explicado ao fulano que, na próxima segunda feira, faz 42 anos que acabou uma atividade, às vezes remunerada, a que ele, com as suas "qualidades", poderia ter fácil acesso: ser informador da Pide. Mas saberá lá ele o que isso foi..

sexta-feira, abril 22, 2016

Abril e a doença

Um jornal informático ideológico, criado para que a maioria cessante não tivesse cessado de existir, decidiu agora promover um curso, orientado por um politólogo, sob o título "Ser de direita - normalidade ou doença?"

Devemos ser um dos poucos lugares democráticos do mundo onde o setor conservador da sociedade vive ainda com estas ridículas angústias existenciais, não se dando conta de que, ao colocar em público este tipo de questões, agrava o sentido de gueto e de auto-exclusão em que, de há muito, se deixou cair. Como se já não bastasse a direita da paróquia disfarçar-se, por regra, em "centro-direita", em "liberal" ou em "não ser de esquerda"...

Ser de direita é tanto uma "doença" quanto o é ser de esquerda. São maneiras diferentes de olhar a sociedade e o seu futuro, ambas admissíveis, e concorrentes na captação das ideias e do voto, na democracia que temos. 

O que uma certa direita portuguesa nunca percebeu - e já começo a perguntar-me se alguma vez perceberá - é que continuará a viver num beco envergonhado, onde adubará estes complexos, enquanto não tiver a coragem de vir para a rua de cravo vermelho ao peito no 25 de abril, enquanto não fizer luto e a denúncia aberta das patifarias da ditadura e dos malefícios da guerra colonial. Até lá, deixará inevitavelmente os louros da liberdade à esquerda.

Repito o que sempre pensei e disse: o 25 de abril também se fez para dar direito de cidade à direita democrática. Prouvera que ela o saiba aproveitar.

Os legisladores


O mundo, e creio que o próprio Brasil, acordou, há dias, para a realidade do que é, na crueza da evidência, a representação parlamentar brasileira. Poucas coisas terão feito pior à imagem do Brasil do que o espetáculo patético daquela turbamulta ululante, no processo de destituição da presidente. Fiquei triste pelo Brasil. Vou contar-lhes uma história de que fui testemunha naquele mesmo espaço.

Era o dia 19 de agosto de 2005. Tinha sido convidado para estar presente numa homenagem que a Câmara dos Deputados ia promover a Sérgio Vieira de Mello, o funcionário brasileiro das Nações Unidas que, precisamente dois anos antes, tinha sido vítima mortal de um atentado em Bagdad. 

Quando cheguei à sala, dei-me conta de que era o único embaixador presente. As restantes missões diplomáticas estavam ali a nível inferior. Não estranhei: de toda aquela gente eu era, com grande probabilidade, a única pessoa que conhecera pessoalmente Vieira de Melo. A diplomacia brasileira também estava debilmente representada, mas isso também não surpreendia: o Itamaraty, o MNE brasileiro, nunca apreciara excessivamente Vieira de Mello. Também sentada nos lugares dos deputados, estava uma luzidia banda de música, que iria abrilhantar o início do ato com a execução do belo hino brasileiro. 

A sessão foi aberta pelo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, um inopinado presidente, escolhido como efeito colateral de um dissídio entre fações, que não durou mais de seis meses, suficientes para o consagrarem no anedotário político local. Cavalcanti começou a sua intervenção dirigindo-se ao «Senhor Sérgio Vieira de Mello». Um fâmulo acorreu, pressuroso, informando-o de que, tendo o passamento do homenageado ocorrido já há dois anos, era justificável a sua ausência da sala. Cavalcanti tinha lido mal, deveria ter-se dirigido ao «Senhor familiar de SVM», que ocupava um lugar na mesa. Passou a um texto laudatório e, acabada a função, saiu da sala. 

A presidência passou então a ser ocupada pelos oradores seguintes, que emergiam sucessivamente dos bastidores, representando os mais de vinte partidos. Logo que acabavam de falar, zarpavam de imediato.

Entretanto, na assistência, foi-se registando uma discreta debandada dos convidados diplomáticos. Eu resisti, estoicamente. No fim da longa cerimónia, chegou-se a um momento patético: eu era o único convidado que permanecia sentado nas cadeiras da Câmara. Na mesa, restava o último orador e o familiar de Vieira de Mello. Ah! Mas não estávamos sós: os músicos da banda, alguns já adormecidos, com as cabeças pousadas sobre as mesas parlamentares, continuavam à espera de que os mandassem embora. Aparentemente, ninguém lhes tinha dito nada!

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...