domingo, maio 01, 2016

Paulo Varela Gomes


Em 2007, andei uns dias por Goa, com a curiosidade de perceber a ambiguidade de uma sociedade onde alguma lusofobia convive com uma complexa memória afetiva de Portugal.

O embaixador de Portugal na Índia e hoje ministro da Cultura, Luís Castro Mendes, disse-me então que não podia deixar de falar ali com Paulo Varela Gomes, que então dirigia o centro cultural da Fundação Oriente em Goa. Conhecia-o apenas da escrita em jornais e de programas de televisão. Sabia das suas andanças políticas, onde revelara uma saudável inquietação, que o arrancara de alguma ortodoxia original.

Conversámos durante um jantar. Por um par de horas, tive o privilégio de ouvir a sua leitura viva, polémica e informada da realidade de Goa. Era um homem frontal, que dizia o que pensava, num registo às vezes tenso, muitas vezes irónico. 

Foi a primeira e única vez que falámos. A partir de então, passei a lê-lo com muito mais atenção do que tinha feito até então. E ganhei bastante com isso. Homem de uma escrita límpida e profunda, ficou-me a ideia clara de que crescia e se apurava a cada livro publicado, como se a doença inexorável que o afetava lhe trouxesse um sopro de lucidez essencial.

Morreu ontem. Ao seu pai, coronel Varela Gomes, figura que conheço há muitos anos (e de quem, por coincidência, estou a ler uma biografia recentemente publicada), expresso as minhas condolências.

17 comentários:

Anónimo disse...

Embaixador, para encontrar lusofobia nem precisamos ir ás ex colónias. Para mim os piores lusofóbicos, são todos aqueles que falam mal da nossa colonização, mesmo sendo portugueses da Metrópole, digo mais metem-me nojo todos aqueles como o Manuel Silva, Freitas, Reys e outros mais que aqui vem destilar ódio contra o exército português que combateu em áfrica. O Manuel Silva vem já aqui dizer que andou lá na Marinha, mas devia ter vergonha de se invocar portugu~es. As colónias não eram de um regime(Salazarista), as colónias eram de Portugal e do povo português. Estes artistas e que atrás citei e muitos outros, acham que com isso estavam a lutar contra o regine salazarista, estavam a lutas e estão a lutar é contra Portugal e a sua História. Sou de esquerda, mas mete-me nojo todo o "intelectualoide" que fala mal da nossa História, da nossa cultura e do nosso antigo Império. Calem-se seus ratinhos insignificantes. Vão viver para esses países se assim gostam tanto deles. RUA.

Francisco Seixas da Costa disse...

Nos últimos tempos - e os leitores regulares já se terão dado conta de que faço isso, ciclicamente, de propósito - tenho deixado publicar por aqui "coisas" impensáveis, em forma de comentários. Porquê? Porque me parece algo pedagógico revelar o que, sob um subterrâneo anonimato, vai por aí em algumas cabeças. O comentário das 13.19 ilustra bem esse mundo. Sob um "sou de esquerda", em jeito de "disclaimer" para tentar adocicar a permissividade do dono do blogue, escreve-se que "as colónias eram de Portugal", escreve-se "Império" e afirma-se que não são patriotas os que "falam mal da nossa colonização". Este mundo, coitado, está a acabar, ácido, perdido no passado, cheio de adjetivos de raiva e ressabiamento. Vale a pena continuar a dar-lhe espaço por aqui? Não sei. Eu gosto do contraditório, mas fico triste com esta linguagem típica do "Diário da Manhã" ou do "Agora", que não traz nada de novo ao debate. Deixar publicar este tipo de coisas configura, no entanto, um gesto de simpatia por fenómenos em vias de extinção. E eu gosto de antiguidades...

Anónimo disse...

quem era?

Anónimo disse...

Embaixador, eu sou o anónimo das 13.19. Quando ai digo que sou de Esquerda é porque o sou mesmo, acredite que não o digo para o "adocicar", não me presto a esse tipo de coisas. Deixar a defesa da História de Portugal a uma direita atrasada não me parece ser uma boa opção. Tenho orgulho e muito do Império que Portugal construiu, já agora porque haveriamos de ter vergonha de mencionar essa palavra"Império", todas as antigas grandes potências assim se pronunciam, porque razão nós portugueses haveriamos de ter essa vergonha? fomos os primeiros da Europa a fazer essa grande gesta. Pouco me importa se existem "parolos" que tenham vergonha de Portugal ter tido um Império, para alguns o Império era simbolo do Salazar. O Império começou muitos séculos antes de Salazar. O Império era de Portugal, não era de nenhum regime em especial, nem de ninguém em particular. Alguns dogmáticos ainda não conseguiram ultrapassar a pequenez do trauma do Salazarismo e então para eles tudo o que enalteça a História de Portugal é sinónimo de salazarismo, pobres idiotas que nasceram, vivem e vão morrer nesta idiotice pegada de falarem mal da nossa colonização e da nossa História. Eu detesto por exemplo personagens como Cavaco Silva ou José Sócrates bem como Passos Coelho, mas era o que faltava agora falar mal de Portugal, da sua História e tudo mais, só porque acho estes politicos que atrás mencionei pouco mais que miseráveis.

António Pedro Pereira disse...

Caro Senhor Embaixador:
O senhor não precisa da minha opinião para saber o que deve fazer com este espaço que é seu.
E no qual tem a amabilidade de acolher os nossos comentários.
Mas deixo-lhe a minha opinião.
Com certo tipo de pessoas e certos comentários a única coisa que resulta é deixá-los publicar e não lhes dar resposta.
Eles descredibilizam-se por si próprios.
Cortar-lhes a palavra seria o melhor álibi de que passariam a dispor.
Eu, por mim, abaixo de determinado nível de argumentação que raie o insulto «ad hominem» jamais responderei, mesmo que seja directamente visado.
Sempre gostei de ver certo tipo de pessoas a falar sozinhas, que se entretenham com as suas ideias arqueológicas, afaguem-nas e conservem-nas bem protegidas com formol.


APS disse...

Pensando por mim e pela minha experiência de ter um blogue, eu diria que ninguém gosta de ver a "sua casa" conspurcada.
Raramente apaguei um comentário vindo do exterior, arrostando até com a opinião contrária de quem me acompanha, até porque é sempre um acto censório que perturba o nosso exercício democrático de ver e aceitar as coisas vindas das antípodas do nosso pensar. Mas, por vezes, a higiene da "nossa casa" a isso obriga. Quando os limites da decência, a raiva animal, a cobardia anónima daqueles a quem a mãe não deu nome nem o pai concedeu apelido, são ultrapassados de forma soez e contumaz.
Permito-me discordar, senhor Embaixador, do lado pedagógico de tudo permitir, para isso nos bastam alguns taxistas na sua insuficiência mental desbragada. Porque já sabemos que existem...
Os meus melhores cumprimentos,
APS

Anónimo disse...

Ó Manuel Silva, você fala fala, mas não diz nada. Diz que não responde, mas está sempre a responder nos seus textos. Por outro lado fala ai em arqueologia, mas repare que voc~e é precisamente um dos maiores representantes aqui dessas ideias arqueológicas. Ainda não se deu conta que falar mal do Império já não produz moda? na sua pobre cabeça você ainda vive os dias cinzentos do Salazarismo, será que nunca vai conseguir sair dessa tristeza? Ainda não entendeu que as novas gerações portuguesas tem é raz~oes de queixa é do Passos Coelho, do Sócrates, do Cavaco etc etc. Você é um "mastodonte" paralisado no tempo.

Anónimo disse...

Ó APS esse é o seu nome? o senhor que o foi registar devia estar muito envergonhado do que ai vinha. Tem um lindo nome e apelido.

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

TEXTO MUITO BONITO DE PAULO VARELA GOMES, que hoje morreu

Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes repetida, “Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor já não esteja vivo”.

São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela tem algumas características muito peculiares que podem interessar a todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: “Falhar melhor”.

Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: “O senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente.” Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer “massa” em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a Patrícia, minha mulher e minha “curadoura”, não me acompanhou. Estava a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.

Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.

Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.

Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era branca.

Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena fazer.



(...)

Anónimo disse...

Nada tenho que ver com a discussão entre as diversas personalidades anónimas, mas penso que o APS veio cá para dizer que tem um blogue que deve estar ás moscas.

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres.”

Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.

Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a todos.

Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos oncologistas.

A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.

Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não de morrer.

As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu. Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e finalizei mais um romance e um livro de contos.

Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se pode ganhar, doutor…”
(...)

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?

A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.

Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de quem eu preciso.

O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.

Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde, alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras dos serviços continuados de saúde.

E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio acordar-me, pensou que tudo estava acabado.

Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem que grassava à minha volta.
(...)

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se arrepender, precisamente aquilo que eu não queria na altura, mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e corajoso do que de facto era.

Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?

Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.

Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.

Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:

“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.

S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes,

Anónimo disse...

Em memória de Paulo Varela Gomes, que muito li mas nunca conheci, conviria que houvesse um pouco de dignidade nos comentários e que dissessem respeito ao falecido. Já agora, se as prosas fossem assinadas não seria má ideia.

JPGarcia

Isabel Seixas disse...

Também achei o texto de Paulo Varela fascinante pela partilha, pela expressão clara do turbilhão de emoções que o pré aviso de morte e a definição do espaço temporal até à finitude na declaração do cancro traz.

Além da excelente reflexão constitui-se um caso de estudo em que uma questão de partida paira e fica sem responder, será que se enveredasse pelo tratamento protocolar teria mais longevidade e maior qualidade de vida?

De uma sensibilidade profunda é também o percurso de mãos dadas com a Patricia.

o meu pesar a quem o amava, também a minha admiração.

Anónimo disse...

Eu sei o que é ver morrer um pai com cancro, mas nem imagino o que será ver morrer assim um filho. É tudo o que consigo agora dizer, embora sempre tenha admirado o Paulo Varela Gomes. Era diferente.

Senhor anónimo, você é de uma esquerda bem estranha... Não será melhor deixar de nos tomar por parvos? E quem diabo se lembra de escrever textos desses num post que homenageia um pessoa falecida tão tragicamente? Nunca cesso de me espantar com as pessoas.

António

Joaquim de Freitas disse...

O Senhor comentador António tem razão : Como é possível para alguém com um mínimo de decência, vir impor-nos um comentário indecente e tão estúpido, num tema tão triste como o da morte de alguém que nos deixa um testemunho de dor e de dignidade.

Pensava que o tema estava fechado. E pois que assim não é, permita-me o Senhor Embaixador de lhe deixar o comentário seguinte: Não creio, como também escreveu outro comentador, que a pedagogia possa ter um efeito qualquer neste tipo de indivíduos: anonimamente cobarde , mesmo no facto de se dizer de esquerda, procurando enxovalhá-la, e sobretudo ignorante da História.
Porque o argumento que evoca em defesa do Império e do “direito” a ter colónias, para qualquer regime que seja, prova que não sabe o que aconteceu na Índia, prova que não soube que os racistas do Apartheid não conseguiram demover a vontade do povo Negro da África do Sul pelo facto de deportar Mandela para Ruben Island, que o facto de deportar o Gungunhana para a Ilha Terceira, para ai morrer, não fez avançar o nosso suposto “direito” colonial, que o facto da França deportar o Sultão Mohamed V para Madagáscar para o substituir por um “subalterno” não impediu a emergência da independência do Marrocos. Poderia acrescentar a Tunísia, e Bourguiba enjaulado pela França.

Não, Senhor Embaixador, este tipo de indivíduos que se proclama de esquerda, mais patriota que os outros, que se sente “mal” quando se fala de Salazar, como se Salazar não tivesse cartas no cartório, é tudo menos um democrata. Ele não compreende que quando o Senhor José Tomaz Mello Breyner grita: Viva o Rei, tem todo o direito de o fazer, mas que eu também posso responder: Viva a República, sem faltar ao respeito ao Senhor Mello Breyner.

Sobretudo, Senhor Embaixador, que ele se permita de escrever RUA àqueles que não têm a mesma ideia dele, este anónimo devia ficar anónimo realmente.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...