Acho que quando alguns dos participantes neste Encontradouro ouviram dizer que era um antigo embaixador na Unesco que ia encerrar este encontro - um festival literário - ninguém teve a menor dúvida de quem era o orador: Luis Filipe Castro Mendes.Pois bem, desenganem-se, não é! Talvez para o ano, seja ele a vir...
Quero começar por agradecer o simpático convite que me foi feito para estar aqui hoje.Foi já há alguns meses, creio que neste mesmo espaço, numa conversa que aqui tive com o presidente do município de Sabrosa, o meu amigo José Marques, que a ideia surgiu.
Não sou escritor, tive uma vida como cultor dessa língua terrível que é o oficiês e nunca publiquei nenhum livro, apenas editei alguns volumes de compilação de textos - o que está para a escrita como a noite está para o dia. Hoje, dedico-me a tentar provocar ondas nas redes sociais através de pequenas notas, num blogue e nessa loja dos 300 das redes informáticas que é o Facebook. Nelas escrevo sobre o quotidiano ou registo, sem pretensões, algumas memórias avulsas, que é aquilo que se dedicam os velhos, antes que se esqueçam de tudo...
No resto, a minha escrita resume-se a colunas na imprensa - e, como antes se dizia, os jornais leem-se num dia e, no dia seguinte, servem para embrulhar peixe (hoje a ASAE já nem isso deixa, imagino eu). Duas dessas colunas, porém, merecem algum destaque. São notas críticas sobre restaurantes. E assim aprendi que nos podem pagar para nos incitar a comer. Não fosse eu já ter dado o fígado pela pátria ao longo da minha carreira, acho que me passaria a dedicar a isto como modo quotidiano de vida... Aqui fica a história singela da minha relação com a escrita.
Assim, e não obstante as minhas qualificações neste domínio não rimarem claramente com este festival, fiquei muito honrado com o convite e aproveito para felicitar vivamente o Município de Sabrosa e este fantástico Espaço Miguel Torga, e organizador científico do evento, Francisco Guedes, pelo êxito evidente desta iniciativa.
E, já agora, devo confessar que não esperava que o governo "da Nação", como antes se dizia, se tivesse dado ao cuidado, num ato de extrema gentileza, de abrir, precisamente hoje, o túnel do Marão, com o objetivo de facilitar a minha deslocação... Mas registo a amabilidade do gesto, como é natural... Fica hoje provado, da forma mais concludente possível, que para furar definitivamente um túnel dá sempre jeito utilizar uma geringonça...
Mais a sério, aproveito para saudar todos quantos aqui vieram colaborar com a sua presença e a sua palavra, - alguns meus amigos, outros pessoas que me habituei a admirar - neste magnífico exercício cultural. A sua participação é, em si mesma, um elogio à coragem e à louvável ambição desta terra, que se orgulha de aliar Magalhães a Torga, ao lançar uma iniciativa desta dimensão, juntando artes e letras - como se dizia noutros tempos. A ousadia de Sabrosa foi assim muito bem correspondida, uma vez mais.
Pelas razões que já referi, a mim, que encerro estes trabalhos, colocou-se-me a interrogação sobre que tema deveria aqui abordar. Surgiram-me várias ideias, mas nenhuma, confesso, ligada à literatura, porque se há coisa que aprendi com a vida foi a não me meter por caminhos que não domino. Também pensei abordar o tema dos diplomatas e da literatura, mas achei melhor não me meter por aí, para não ter de elencar colegas, o que é sempre polémico.
Assim, decidi revisitar uma questão que sempre me fascinou: a ligação do local ao nacional, numa perspetiva de gestão de poder, abordada através da questão do peso relativo das cidades. Isso pareceu-me adequado aqui, em Sabrosa, uma terra que, com iniciativas como esta e com espaços desta natureza, procura romper a fronteira, mudar a geografia, de uma certa forma elevar o local ao nívelnacional. São assim alguns comentários soltos sobre este tema, em jeito nada académico e numa perspetiva assumida de sociologia empírica, que vos vou aqui deixar.
Há um lema que ficou famoso, atribuído ao político americano Tip O’Neill, segundo o qual “toda a política é local”. A ideia é bastante simples, como todas as boas ideias: nas decisões públicas, o impacto na proximidade é aquele que, no final de contas, determina o essencial da sua perceção.
Não é correto inferir daqui que a formatação de uma vontade política, à escala nacional, é apenas um somatório dos interesses expressos pelas realidades locais. Porém, a verdade é que, nas democracias mais representativas e em que a “accountability” se faz mais perante os eleitores do que perante os líderes partidários (pelo resulta claro que não estou a falar de Portugal...), o fator local prevalece nos interesses mais relevantes a salvaguardar pela comunidade.
Basta pensar em Estados com estruturas regionais, sejam de natureza federal ou não, para sermos levados a concluir que a dimensão de proximidade se constitui hoje como uma componente essencial de legitimação da ação política.
E, como é óbvio, as cidades situam-se no centro dessa mesma realidade. Eu não sou um especialista em cidades, sou apenas um mero utente delas. Faço as contas. Na minha vida, morei, sempre por alguns anos, em dez cidades, de dimensão e importância muito diversas - de Vila Real a Nova Iorque, de Oslo a Londres, de Luanda a Paris, do Porto a Brasília, de Viena a Lisboa.
Mas se todas essas experiências foram marcantes e me ajudaram a olhar o mundo de outra forma, a verdade é que ser um cidadão com um estatuto diplomático nos retira sempre alguma riqueza, em matéria de imersão cívica, que só a cidadania local nos poderia conceder.
Talvez por isso, um pouco como os emigrantes que se focam no que deixaram para trás, tive sempre o cuidado de me manter muito atento a Portugal e às nossas cidades, à sua especificidade, à identidade que projetavam no passado e ao que agora projetam. Há décadas que viajo por este país, conheço-lhe todas as suas cidades, a esmagadora maioria das vilas e, aqui entre nós e com imodéstia, quase tudo aquilo nelas vale a pena na sua rede gastronómica - uma das riquezas culturais que é preciso saber explorar. Agora, regressado de vez a Portugal desde há mais de três anos, mantenho um olhar ainda mais atento, até na dimensão retrospetiva, sobre as cidades portuguesas que melhor conheço.
Talvez por ser oriundo da província, daqui de Trás-o-Montes, tive sempre uma perceção muito nítida da diferença que existe entre as nossas cidades, da evidente hierarquia que entre elas se estabelece, seja em riqueza, cultura e qualidade de vida, seja no modo como elas conseguem objetivar a expressão dos seus interesses relevantes à escala nacional. Acho, aliás, talvez porque é um dado tido por adquirido e que se torna banal, por fazer parte da nossa paisagem de todos os dias, que o poder diferenciado das cidades continua a ser uma das componentes pouco trabalhadas da nossa cultura democrática. Desde logo, porque sendo uma realidade histórica - ligada à geografia, à demografia, ao PIB e a variáveis sócio-económicas - ela teima em persistir mesmo para além dos regimes.
Nascido em Vila Real, recordo, desde muito jovem, o modo peculiar como, durante o Estado Novo, a afirmação da realidade política à escala local se fazia junto do poder central. O modelo era muito interessante, porque, perante uma evidente escassez de recursos públicos para acorrer, por exemplo, a necessidades de equipamentos para a melhoria das condições de vida, esse modelo assentava numa espécie de pequenos lóbis, centrados em figuras com projeção “lá em baixo”, em Lisboa, as quais conseguiam, alegadamente a custo, através dos seus contactos privilegiados, convencer os decisores centrais a alocarem alguns financiamentos. Era assim que aparecia dinheiro para estradas, escolas e fontanários ou outro tipo de equipamentos que, de alguns maneira, pudessem reduzir os custos de perifericidade.
Estamos perante um modelo muito primário, quase rústico, mas que tinha a superior "vantagem", se assim se pode dizer, no quadro da cultura da ditadura, de estruturar uma rede de subordinações, de dependências, de gerar um clima de favores, que potenciava a arbitrariedade e, por essa via, um reforço dos poderes fácticos.
Alguns objetarão que, nesse tempo, o modelo de representação de interesses “bottom-up” era esmagado pelo centralismo.A meu ver, um certo pragmatismo do poder ditatorial levava a que as coisas não fossem exatamente assim, a que houvesse uma tentativa de preservar uma certa legitimidade, assente numa suave presença da vontade local, através da relativa audição das personalidades de relevo ou dos dirigentes nomeados.
Voltando à minha terra, ali a Vila Real, numa escala diferente e muito menos poderosa, era também assim que se passavam as coisas. A cidade, como todas as outras, não dispunha de uma representação sufragada pelo voto, e, muito em especial, não tinha interesses económicos fortes na sua proximidade que conseguissem fazer ouvir a sua voz junto do poder político central. Mas a cidade não deixava de existir como sujeito de algum poder residual. Essas tais figuras mais destacadas de que antes falei faziam um papel de representação e, no fundo, de alguma legitimação do próprio regime junto das populações, na medida em que este fosse capaz de ser sensível a alguns anseios atendíveis.
Era um mundo mesquinho, pequeno em todos os sentidos, miserável no método e ridículo na forma.
A cidade era isso: era o Governador Civil (escolhido por ter alguma ligação local e que, de uma qualquer forma, se havia ilustrado junto de alguém em Lisboa), era o presidente da Câmara (tutelado pelo Governador, também sempre nomeado, rodeado de escassos vereadores designados da mesma forma), era o presidente local da União Nacional, eram uns escassos deputados “da Nação”, como então se dizia. A isso se somavam, nesse tempo e no caso de Vila Real, umas tantas figuras, quase sempre com um diploma ou um titulo ou, na falta de estes, com alguns cabedais, na expressão da época. Tínhamos, além disso, um general e um padre com bons contactos. E por ai ficava a nossa "massa critica" de influencia.
Este modelo, com maiores ou menores adaptações, com mais mais ou menos padres, generais ou doutores, era o retrato do poder da generalidade das cidades que eram capitais de distrito. Abaixo desse nível, as coisas era menos expressivas e a vontade local tinha muito maior dificuldade em fazer ouvir-se.
Eu referi Vila Real, mas, mantendo-me neste Norte, poderia falar de Bragança, onde preponderaram nomes como Trigo de Negreiros, Camilo de Mendonça ou Gonçalves Rapazote. Ou de Chaves, ou de Mirandela ou mesmo de pequenas aldeias - daquelas que os escritores gostam de utilizar no fim das introduções dos seus livros, para dar um toque de ruralidade lúdica.
Mas há muito outros casos por esse país. Nesta análise impressionista, acho que, fora da escala Lisboa-Porto, uma cidade, ainda nortenha, como Braga constitui, com Coimbra, um dos melhores exemplos de um modelo de expressão política local com algum sucesso de representação de interesses à escala nacional, naquele tempo da ditadura. Não sei se esse privilégio se deve à duvidosa honra de ter sido o ponto de partida para o golpe militar de 28 de maio - daqui a dias alguns saudosos comemorarão, pela certa, os 90 anos passados sobre esta data - mas a estátua de Santos da Cunha lá está em Braga, como uma espécie de “instalação" da expressão política local.
E até o nosso novo presidente gosta de se reivindicar nos seu afeto ao clube da terra (que tem a grande virtualidade de se chamar Sporting), de que parece que aprendeu a gostar quando o respetivo estádio se chamava 28 de maio.
Mas falemos também de Coimbra. Coimbra foi, durante muitos anos, um fenómeno muito particular. É que, muito para além das dimensões materiais, Coimbra funcionou, durante o Estado Novo, como um original centro de produção simbólica do poder. O facto do ditador ter por lá nascido politicamente, entre borlas, capelos e beatas, e muito do pessoal político da ditadura ter sido daí recrutado (o que era comum à República, bastando lembrar SidónioPaes e Afonso Costa), conferiu a Coimbra uma centralidade política que ia muito para além do seu real estatuto enquanto cidade. É claro que muito do pessoal dito "de Coimbra" não era de lá, era da província, mas era o carimbo académico coimbrão que lhe dava esporas de ascensão potencial na ladeira da governação. No fundo, pode dizer-se que Coimbra era representada em Lisboa pela sua Universidade – o que também nos deve ajudar a refletir sobre o modo como algumas instituições podem, elas próprias, moldar as urbes onde se situam e fazê-las projetar em círculos mais alargados.
E isto conduz-nos necessariamente ao penúltimo dos exemplos, ao Porto. Curiosamente, sendo embora a segunda cidade do país, o Porto só com a democracia consegue obter uma expressão significativa a nível do poder central. Se olharmos para a história da ditadura – e mesmo da primeira República - verificaremos que a influência política do Porto, como cidade, junto do poder central, foi sempre muito escassa. E, curiosamente, é uma evidência que o Porto tinha, em particular nesse tempo, um forte tecido de instituições, formais e informais, desde logo na área empresarial, mas igualmente no domínio cultural e no terreno social.
Tudo indica que Salazar nunca gostou do Porto, talvez porque a cidade projetasse uma sofisticação, quiçá algo snobe e elitista, que se contrapunha ao ruralismoesclarecido que ele próprio representava e que Coimbra, com Lisboa, aqui também através da universidade, era suficiente na sua tarefa de cooptar o pessoal político. Graças à sua força económica – recordo que então se dizia: “o Porto trabalha, Lisboa diverte-se” -, o Porto como que se isolou um pouco no processo político à escala nacional, mantendo uma dinâmica própria, uma burguesia longe do cosmopolitismo do dinheiro “novo” de Lisboa, mais Clube Portuense e muito pouco Linha do Estoril.
Porém, o Porto burguês não era maioritariamente anti-regime, muito longe disso. O peso da igreja e a proteção dos negócios encontraram sempre no Porto um terreno sólido de apoio ao salazarismo. Mas o Porto da ditadura foi também aquele que deu o maior banho de multidão a Humberto Delgado, em 1958, como já tinha proporcionado o maior comício a Norton de Matos, nove anos antes, na Fonte da Moura. E é o Porto que gera um bispo que atazanou o ditador e, verdadeiramente, abriu caminho às vias católicas dissidentes à escala nacional. Esse é, alias, o mesmo Porto que produziu Sá Carneiro, esse inesperado incómodo que veio a revelar a fraude da abertura marcelista.
Mas foi o 25 de Abril que levou o Porto a perder esse seu relativo isolamento político.Com Sá Carneiro e as suas adjacências, o Porto entrou muito cedo para a partilha do poder político central.E por lá tem ficado, há uma décadas de forma bastante mais influente, nos tempos que correm apenas através de alguns “tokens”, que às vezes parecem destinados a garantir uma presença simbólica. Quando se forma um novo governo, à esquerda ou à direita, eu imagino que a pergunta deve surgir: “E do Porto, quem é que se põe?”. Eu sei que pode soar um tanto cruel estar a dizer isto, mas é esta parece ser a realidade. Desta vez, no novo governo, o Porto não se pode queixar... Porém, não obstante a inegável excelência de muito do pessoal político que os governos foram buscar ao Porto, nas últimas décadas, isso só marginalmente quis significar o peso real da cidade no jogo político nacional.
Mas Porto desenha um outro modelo curioso, sendo quase um “case-study”. Refiro-me ao seu perfil reivindicativo. A cidade do Porto assume sempre um discurso tenso, uma mostra de mal-estar permanente, uma queixa de quem se sente mal tratado. Até as distritais portuenses dos dois partidos do novo rotativismo sofrem desta obsessiva necessidade de terem uma idiossincrasia própria, um discurso façanhudo e de cara dura frente aos aparelhos de Lisboa.
Com regularidade, o Porto convoca os poderes económicos e os nomes sonantes para a retoma dos vários episódios dessa espécie de permanente batalha virtual com Lisboa. Porém, com o tempo, mas sempre com o sobrolho cerrado, nas entrevistas e proclamações, o Porto lá vai conseguindo levar a água ao seu moinho de vento, melhorar o aeroporto, ter as suas novas pontes, o seu metro, as vias que o seu jogo de cintura interna é sempre capaz de arrancar.
Mas convém que fique muito claro: essa guerrilha política, nas formas curiosas, típicas e mediáticas que por vezes assume, não deixa de ter uma indiscutível legitimidade. Porque é verdade que, neste país, continua a haver uma macrocefalia muito evidente em torno e em favor de Lisboa. Só que o Porto, por muitas queixas que tenha, consegue, apesar de tudo, ter uma capacidade reivindicativa, e uma capacidade de imposição, muito maior do que todas as outras urbes de província.
Por uma evolução perversa do processo de construção do poder em Portugal, as cidades, enquanto tal, perderam peso, deixaram de ter uma capacidade para se projetar no centro das decisões. Algumas figuras, mais mediáticas ou influentes nas maquinas partidárias, conseguem compensar isso. Mas muitas cidades estão longe de o conseguirem. Hoje, o poder que resta às cidades - e, contudo, não é tão pouco como isso! - é a expressão do poder local, como forma de representação paralela e até, às vezes, de contra-poder ao executivo central, o qual, tendo álibis convenientes para não respeitar a lei das finanças locais, costuma jogar a gestão dos fundos comunitários como uma espécie de “saco azul”. Ora a gestão dos fundos é uma reserva de discricionariedadeque, como é sabido, encontra sempre artifícios técnicos para, como se diz no meu Ministério dos Negócios Estrangeiros, “proteger os amigos, atacar os inimigos e, aos outros, aplicar a lei”. Sem o país sob formato regional, onde poderiam encontrar um espaço de recriação e controlo de alguma “devolution”, as cidades são assim quase obrigadas a viver nesta relação tensa de forças, como todos os dias se vê no muro das lamentações que é a comunicação social.
É claro que, no final deste roteiro sobre a afirmação das cidades, Lisboa é um caso atípico. Capital do país, o seu município beneficia imenso do facto das instituições nacionais estarem aí centradas. Não apenas as instituições de natureza política, mas todas as restantes dimensões que se acolhem no local de onde emana poder, das grandes empresas à Gulbenkian, das principais universidades à comunicação social relevante. É aquilo a que os anglo-saxónicos chamam "the powers that be".
Uma capital é sempre uma cidade diferente, que ganha nacional, e até internacionalmente, um protagonismo que é produto dessa centralidade muito particular. Há quem veja no autarca-mor de Lisboa uma espécie de ministro, umas vezes "sombra", outras vezes iluminado pela cumplicidade com o poder central, mas sempre acima dos seus pares. Pode usar-se a presidência do município de Lisboa como passo para uma putativa chegada a Belém. Ora a Câmara do Porto não parece ser o caminho certo para tais voos, como ainda há meses se viu. E isso faz toda a diferença.
Digo isto apenas para tornar uma vez mais evidente que persiste, no Portugal contemporâneo, uma hierarquia entre as cidades. Isso é talvez inevitável. Só o que não é inevitável é que essa hierarquia se reflita, por virtude modelo de organização e funcionamento das políticaspúblicas em Portugal, na limitação dos cidadãos e das instituições para afirmarem, à escala nacional, os seus interesses. E isto conduz-nos à questão fundamental: numa sociedade democrática, será normal que os cidadãos possam ver parte substancial dos seus interesses subalternizados apenas pelo facto de provirem de urbes com menor peso?
Estamos perante um problema de harmonia do tecido nacional que tem de ser pensado. E só pode sê-lo se conseguirmos garantir que a organização sociedade cívica respeita, cada vez mais, o principio da subsidiariedade - isto é, a necessidade das decisões deverem ser tomadas a um nível o mais próximo possível dos sujeitos a que respeitam. E isso implica duas coisas: uma eficiente (e respeitada) lei das finanças locais e uma nova organização da responsabilidade do exercício das funções de Estado, através de um quadro muito claro dos níveis desejáveis de descentralização do poder local.
Fica por discutir a questão sobre se tudo isso não deveria articular-se, num modelo de novo tipo, num quadro regional. Esse é um tema que vai continuar a andar por aí, porque, não obstante podermos considerar que o tempo não será o mais adequado para o suscitar, a racionalidade aponta para que seja esse modelo aquele em que as cidades, num quadro de desigualdade e desequilíbrios territoriais como o que temos atualmente em Portugal, encontrariam o seu espaço ideal de expressão de interesses, simultaneamente com a preservação das suas singularidades.
Deixo-os com esta interrogação sobre a regionalização. Mas também com a ideia de que não é possível desenhar um equilíbrio à escala nacional, em que os interesses de todos os cidadãos estejam protegidos, sem que o país seja capaz de entender que, a nível local, emergem hoje, em alianças institucionais que passam muito para alem das fronteiras, iniciativas que fazem hoje parte da nova identidade de Portugal.
Volto à ideia com que comecei. O essencial é quase sempre local. O sucesso ocorre no aproveitamento inteligente daquilo que nasce das comunidades, onde se cultiva a respetiva diferença, onde se estimula o novo - às vezes ligado ao antigo, mas preso ao quotidiano e pressentido como tal por quem vive perto ou quem se sente próximo. Esta é a verdadeira riqueza de um país, ao que me, também hoje aqui em Sabrosa, foi dado observar.
Sabrosa, 7 de maio de 2016
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