Passaram 40 anos sobre a data de aprovação da Constituição da República. Não obstante a retórica declaratória que emana do seu preâmbulo e de algumas partes do articulado, a verdade é que o texto que hoje rege a vida do Estado português está já muito distante daquele que então mereceu amplo apoio, no termo da Assembleia Constituinte (só o CDS se lhe opôs, num gesto a que hoje não podemos deixar de reconhecer alguma coragem e coerência).
Há também que convir que foi o PSD (com o CDS) o principal propulsor das mudanças que o texto constitucional sofreu, desde 1976. Ao PS, sem o qual nenhuma revisão constitucional se faria, coube o papel menos glorioso, mas pragmático, de ir cedendo em pontos importantes da matriz socializante do documento original. Os socialistas foram fazendo isso de uma forma que, ao mesmo tempo, acompanhou a sua própria "social-democratização" interna ou, para ser mais claro, à medida que o partido caminhou mais "para a direita". Com o passar dos tempos, ao PS deve ter parecido importante, como partido de governo, ser visto como "market-friendly" e em sintonia com alguns padrões europeus predominantes. A sua, às vezes algo "envergonhada", associação a algumas revisões constitucionais foi sintoma disso.
A formação política que sempre se revelou mais imobilista face à Constituição foi, sem surpresa, o PCP, que nunca se associou ao desmantelamento das "conquistas de abril" e à deriva, no sentido conservador, do texto constitucional. Embora a doutrina do Bloco de Esquerda sobre o tema me escape, estou certo de que não deverá ter uma atitude muito diversa.
A direita, em geral, continua a não gostar desta Constituição e, por sua vontade, "limpá-la-ia" fortemente do seu caráter programático e adoraria transformá-la num simples esqueleto regulador do funcionamento das instituições, neutralizando-a ideologicamente. Para mostrar as suas razões, tenta escandalizar com a revelação (porque ninguém lê a Constituição) da anódina linguagem socializante e quase revolucionária de algumas proclamações e disposições. Não é por acaso que o órgão mediático da direita radical, o "Observador", associado ao reduto do pensamento universitário mais conservador, a Universidade Católica, procurou lançar este ano uma reflexão "científica" sobre a Constituição, com vista a sublinhar os seus alegados anacronismos.
Devo dizer que só não fico surpreendido com esta iniciativa porque conheço "de ginjeira" a nossa direita e a sua estrutural obstinação em entender que esta Constituição é o produto de uma época, de uma conjuntura histórica específica, pelo que nela sobreviverão sempre dimensões datadas, da mesma maneira que o "às armas!" do nosso hino não nos convoca necessariamente, nos dias de hoje, para as trincheiras. O que a muita dessa gente irrita na Constituição é que ela continua a lembrar o 25 de abril, uma data com que alguns ainda convivem mal e procuram fazer apagar da memória afetiva do país. Esses setores não entendem, nem entenderão nunca, que o caráter radical do texto original de 1976 (e do que disso ainda resta) se deveu precisamente à necessidade de nele consagrar "o dia seguinte" à 1974, que derrubou um regime que muitos continuam a só criticar "com pinças". Se a ditadura do Estado Novo tivesse evoluído, como aconteceu com o fascismo espanhol, a Constituição que iria substituir a documento congénere de 1933 (aprovado num plebiscito em que as abstenções contaram como votos a favor!) seria, com toda a certeza, bem mais "serena" no seu léxico.
Tal como hoje está, é para mim mais do que evidente que a Constituição não constitui, em si, um fator bloqueador da modernidade do país, não condicionando minimamente o investimento externo e a sintonia de Portugal com a economia de mercado europeia. E, como os últimos anos bem provaram, foi ela que serviu de escudo protetor a algumas malfeitorias que a direita no poder procurou levar a cabo face aos direitos dos cidadãos mais desfavorecidos, tendo como alibi oportunista a "ajuda externa". Ver o presidente Rebelo de Sousa afirmar-se garante desta Constituição é algo que me agradou e que só posso desejar que venha a ser confirmado ao longo de todo o seu mandato.
Se alguma ideia havia de que fosse possível, a breve trecho, proceder a uma nova revisão constitucional, um simples juízo lógico afastará logo essa possibilidade. Como é de regra, a "modernização" do texto far-se-ia sempre num sentido de um pendor mais conservador. Mesmo na improvável hipótese dos socialistas se mostrarem abertos a isso, em aliança com o PSD e o CDS, é mais do que evidente PCP e Bloco não deixariam de retirar imediatas consequências políticas em termos do apoio ao governo. Por isso, quem pensa que pode haver condições, nos tempos mais próximos, para alterar a Constituição da República, bem pode "tirar o cavalo da chuva".