quarta-feira, novembro 12, 2014

Perder a mão

Terá o PS  "perdido a mão", como se diz dos tenistas ou dos cirurgiões? Terá o afastamento do poder, por alguns anos, conduzido os socialistas a revelar uma incapacidade para aguentarem mediaticamente os ataques políticos, oferecendo o terreno da ofensiva ao adversário? 

Ao olhar-se o espetáculo montado pela maioria contra a taxa turística anunciada por António Costa, na sua qualidade de presidente da municipalidade de Lisboa, fica-se com a sensação de que o PS ficou meio aturdido face a uma reação que era mais do que esperada. Alguns recuos registados revelam mesmo algum amadorismo na preparação da medida. Ou será que não era expectável que a questão dos cidadãos nacionais, dos voos internos e a questão das ilhas surgisse? E porque não se anteviu a necessidade do acordo da ANA ou do porto de Lisboa? Porque se não explicou isso tudo, em detalhe, desde o início? Será que, depois da premonitória e histriónica "performance" de Pires de Lima, não se estava à espera que a decisão da Câmara lisboeta provocasse uma atitude como a que veio a ter lugar?

O que é irónico é que se tenha permitido que um governo que, ao longo do seu mandato, foi o autor de um dos maiores aumentos de impostos sobre os cidadãos portugueses de que há memória na nossa História recente, tivesse podido, sem uma gargalhada geral, vir a terreiro "indignar-se" sobre uma taxa minúscula, imposta a estrangeiros, que reverte diretamente para o fomento do setor turístico. Como se uma taxa aeroportuária de um euro e, depois de 2016, outra de dois euros por dormida, pudesse vir a afetar a competitividade turística de Lisboa e do país. Há muitos anos que, por esse mundo fora, se pagam taxas idênticas (muitas vezes, bem mais elevadas) e não consta que isso afete, ainda que marginalmente, os fluxos turísticos para essas cidades e regiões.

O governo e a maioria foram bastante hábeis nesta operação de ataque ao PS enquanto entidade de poder local, ao mesmo tempo que procuraram fragilizar a figura de António Costa, neste tempo que antecede a sua consagração como novo líder dos socialistas. E, surpreendentemente, conseguiram-no. O PS tem, rapidamente, que "recuperar" a mão, se não quiser vir a ter outras surpresas. Espero que tenha aprendido com esta lição.

terça-feira, novembro 11, 2014

Os escribas do bago


A possibilidade de Isabel dos Santos vir a adquirir a PT fez subitamente emergir, na nossa imprensa, uma classe agora muito em voga (e a preços baixos): os escribas "do bago".
 
Leiam-se algumas das ácidas diatribes editadas nos últimos dias contra a iniciativa da filha do presidente angolano, num claro reflexo de outros interesses, alguns dos quais há muito combatem as incursões angolanas pelos nossos meios empresariais. No outro extremo de opinião, apreciem-se alguns dos que incensam essa salvífica intervenção lusófona, como se fosse a pátria que, através dela, se regenerasse.
 
Eles, esses escribas "do bago", estão hoje um pouco por toda a parte, neste tempo em que mandar bitaites sobre negócios empresariais é de bom tom e em que fazer análises serenas e ponderadas sobre as vantagens/desvantagens de certos investimentos, com raras exceções, parece ter passado já de moda. Qual é a minha opinião sobre a iniciativa de Isabel dos Santos? Não tenho ou, como dizia a outra, "sei lá!" 
 
Termino apenas com um conselho: olhem para a composição do capital das empresas de comunicação social, vejam as posições que tomam e "façam as contas". É tão simples...

Caseirinho

Hoje é dia de S. Martinho e - deve ser da idade! - ando dado à observância de algumas tradições mais agradáveis. Vou, por isso, beber uma jeropiga a acompanhar as castanhas, mesmo sabendo que isso pode afetar o efeito do antibiótico com que combato um princípio de gripe. Quem me mandou a mim não tomar a vacina e pôr-me para aqui no blogue a saudar o regresso do frio e da chuva...

Esta possível ligação negativa entre o álcool e os antibióticos traz-me à memória uma historieta antiga, testemunhada por uma pessoa amiga, numa farmácia de Vila Real. Um episódio bem popular na tradição oral da minha família.

Ao balcão, uma senhora idosa, de aldeia, era instruída sobre os medicamentos que acabara de "aviar", receitados pelo médico. O empregado, pacientemente, ia dando indicações sobre as horas e as doses. Explicou, a certo passo, que, enquanto um determinado medicamento, um antibiótico, estivesse a ser tomado, não deveria ser consumido álcool. Este imperativo causou algum alarme na senhora, cujos hábitos seriam desta forma radicalmente alterados: 

- Mas nem um copito de vinho? Para acompanhar "o comer"?...", inquiriu a senhora.

O empregado da farmácia, experiente, ciente de que o rigor na observância do receituário em condições ótimas estaria sempre posto em causa, ensaiou um compromisso sábio:

- E o vinho, é caseirinho? 

A senhora confirmou ser "a pinga" de produção caseira. Isso "sossegou" o vendedor:

- Ah! Se é caseirinho, então pode beber. Mas não muito...

A minha jeropiga é do Pingo Doce. É caseirinha...

Justiça estrangeira

Os portugueses acordaram, há dias, para uma situação que a maioria desconhecia: há juízes portugueses a atuar no sistema judiciário de Timor-Leste. Não estão lá apenas como formadores dos novos quadros timorenses, mas são, eles próprios, quem ministra justiça, quem profere sentenças, as quais obrigam e impendem sobre os cidadãos e as instituições timorenses, a começar pelo próprio Estado.

Este modelo não é original. Por exemplo, em África, no período subsequente à descolonização britânica, mantiveram-se vários executores de justiça provenientes do anterior poder colonial, apoiados no facto  da nova ordem jurídica se ter mantido, por muito tempo, próxima da que antes fora utilizada. No caso de Timor, foram as próprias autoridades a solicitar esse apoio e, ao que julgo saber, grande parte da cooperação nesse setor foi útil e bem aceite, colmatando temporalmente as lacunas locais. 

Os incidentes que recentemente levaram à expulsão de juízes portugueses vieram, contudo, pôr a nu a relativa incongruência deste tipo de cooperação. Ser juíz não é a mesma coisa que ser engenheiro ou economista. A um juíz deve reconhecer-se a autoridade de um órgão de soberania, a qual, de acordo com a divisão tradicional de poderes, só pode ser limitada pela lei e não releva da vontade dos restantes parceiros institucionais do Estado, na equação de poderes que Montesquieu consagrou. Ora é para mim evidente que um estrangeiro, contratado a prazo por um governo, só por um exercício de ficção pode surgir ungido desse poder soberano. É assim uma receita fácil para o desastre, em especial perante dossiês que se prendem com grandes interesses internacionais do Estado ou que dizem respeito a figuras deste, como aconteceu no caso timorense.

Estranho que o Estado português não tenha estado devidamente atento para a sensibilidade deste tipo de situação, que agora se vê que, a prazo, tinha fortes condições para correr mal. Os avisos e os alertas, como agora se soube, foram muitos, ao longo do tempo. E, naturalmente, também não é desculpável a forma displicente como as autoridades timorenses atuaram, sem cuidar do impacto dessa atitude num dos sistemas de cooperação mais generosos com que sempre pôde contar.

Restam os juízes. Pode compreender-se o desgosto dos atingidos, mas eles devem reconhecer que a sua defesa pelos órgãos institucionais portugueses foi cabal e solidária. Por isso, e até para proteger a sua própria imagem, exige-se-lhe agora algum recato deontológico, que marque precisamente a sua diferença face ao sistema que os atingiu. Trazer para a comunicação social elementos a que tiveram acesso por via de processos que lhe foram confiados só reforça a razão a quem os acusou e dá de si uma má imagem profissional. E já nem falo do inenarrável agente policial que diz ter mandado para fora do território de Timor-Leste - o Estado que lhe pagou e que nele confiou - um contentor com informação...

As frases não ditas

Numa entrevista há dias, François Hollande pronunciou-se sobre um determinado programa de financiamento público. Nas várias respostas dadas às questões que sobre o tema lhe foram colocadas, surgem duas frases: "Não é caro" e, a uma pergunta um pouco mais adiante, ""É o Estado que paga", referindo-se, neste caso, à circunstância do encargo caber ao Estado central e não às coletividades locais. Foi o suficiente para as redes sociais fazerem, nos últimos dias, uma campanha colocando na boca do presidente francês: "Não é caro. É o Estado que paga". O "Le Monde" de hoje desmonta a operação de intoxicação mas, como era o objetivo desta, está criada a ideia que Hollande não se preocupa com os dinheiros públicos.

Na memória coletiva sobrevivem, por vezes, expressões que, não tendo nunca sido pronunciadas, passaram a constituir-se como mitos. Recordo o "play it again, Sam", que Rick nunca disse no "Casablanca", ou o "elementary, my dear Watson", que ninguém encontrará, posto na boca de Sherlock Holmes, em nenhuma linha de Conan Doyle. 

O debate político também se faz, muitas vezes, em torno de alguns desses mitos: Salazar nunca proferiu exatamente a frase "para Angola, rapidamente e em força", contrariamente ao que muitos portugueses pensam.

Desde há muito, é atribuída uma frase ao antigo presidente da República, Jorge Sampaio: "há mais vida para além do défice". À volta desta frase tem emergido, ao longo dos últimos anos, uma imensidão de comentários. Porque tinha curiosidade em perceber o que fora efetivamente dito (e o contexto em que o fora, o que não é despiciendo), fui um dia à procura do texto verdadeiro. E o que é que descobri?

Primeiro, Jorge Sampaio nunca terá proferido a frase "há mais vida para além do défice". 

Segundo, a frase verdadeiramente dita pelo antigo presidente - "há mais vida para além do orçamento" - foi proferida num contexto específico que merece ser ponderado:

"Mas como já disse, o problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de todos: governantes, empresários e trabalhadores. Uma economia competitiva não é a que se baseia em baixos salários, mas sim a que dispõe de um sistema produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens e serviços de qualidade e bem valorizados nos mercados internacionais."

Alguém discorda?

Para alguns, "os fins justificam os meios". O diabo é que também esta frase nunca foi, contrariamente ao que a História acolheu, escrita por Maquiavel...

Guiné-Bissau

O especialista daquele programa televisivo parecia saber do que falava. As explicações dadas sobre o surto do ébola e os seus riscos eram elucidativas e convincentes. Várias vezes se referiu aos países onde a epidemia tivera maior expressão e, durante mais de uma hora, também focou os casos “surgidos na Guiné-Bissau”. Mas há ébola na Guiné-Bissau? Não, não há. O tal especialista “apenas” confundira a Guiné-Bissau com a República da Guiné. É um detalhe? Não é. Trata-se de um lapso que, nem pelo facto de ser involuntário, deixa de ter um impacto negativo na perceção subliminar que muitos milhares de pessoas passam a ter da situação na antiga colónia portuguesa, deitando assim por terra o considerável esforço de prevenção feito pelas novas autoridades daquele país, em estreita ligação com Portugal, no tocante ao surto de ébola naquela subregião.

Simultaneamente, foi divulgado que a TAP anunciou que, por “razões de segurança”, continuavam suspensos os voos de Portugal para Bissau. Na memória de todos nós está a atitude arbitrária que, há meses, as então autoridades guineenses tomaram, ao forçarem o embarque para Portugal de refugiados sírios. Portugal suspendeu então esses voos – e fez bem. Só que há um pormenor: ao contrário do tempo em que esse incidente ocorreu, as condições essenciais de segurança para as operações de transporte aéreo estão hoje asseguradas. Por que não confessar que é a recusa do pessoal da TAP, num capricho que tem muito a ver com o boato do ébola, que impede que uma linha essencial para a ligação internacional da Guiné-Bissau ao mundo exterior permaneça encerrada?

A Guiné-Bissau é um Estado historicamente frágil. O mundo associa-lhe um tropismo para a instabilidade político-militar e a ligação do território a redes de narcotráfico. Porém, é importante que saiba que aquela que foi a primeira colónia portuguesa a tornar-se independente, depois do Brasil, está atualmente a atravessar um momento de retoma do funcionamento das suas estruturas democráticas, sob uma liderança que oferece, pela primeira vez desde há muitos anos, uma janela histórica de oportunidade para a sua estabilização política. À frente do seu governo está uma personalidade que os portugueses se habituaram a respeitar, ao tempo em que foi Secretário-geral da CPLP, Domingos Simões Pereira. O executivo por ele formado é uma coligação de vários partidos e de independentes, com uma componente técnica muito forte.

Desde 1974, Portugal tem sido um dos mais fiéis amigos da Guiné-Bissau, independentemente dos ciclos políticos em que o país mergulhou. E tem de continuar a sê-lo. É absolutamente vital que o nosso país expresse uma solidariedade ativa às novas autoridades. E isso passa muito pelo modo como possamos ajudar a dar relevo aos respetivos esforços para a plena retoma da normalidade no país. Contribuir para a desinformação em torno da situação na Guiné-Bissau é um ato de grande irresponsabilidade.
 
Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, novembro 10, 2014

A outra "legionella"

Foi há cerca de sete anos. Fui ter com um amigo que me esperava para almoçar num clube privado de Lisboa, daqueles onde só entram homens (É verdade! Ainda hoje há disso!). O ambiente era, como se pode imaginar, bastante conservador - e isto é um eufemismo! Eu conhecia algumas escassas caras que por ali pousavam, a maioria gente já de uma certa idade, parte da qual ligada ao regime de antes do 25 de abril. Sinto-me, de há muito, com uma vocação antropológica ao privar com esses meios, porquanto acho que é sempre importante percebermos que, ao lado do nosso mundo, continuam a existir outros mundos, quiçá parados um pouco no tempo, mas que fazem parte do país plural que hoje somos. Às vezes "malgré eux", como dizem os franceses.

Bebíamos nós um gin tónico introdutório quando, de um círculo de sofás ocupado por um grupo de meia dúzia de cavalheiros, com idades à volta dos 80 anos, se ouviu a pergunta de um deles para outro:

- Diz-me lá! Tu entraste para a Legião antes ou depois de mim? logo adiantando a data da sua filiação nessa prestimosa instituição filo-fascista, que a ditadura manteve entre 1936 e 1974.

Não me recordo da data da resposta, mas troquei sorrisos irónicos com o meu amigo. O diálogo ia muito bem com o ambiente da casa e só a um estranho como eu ele poderia parecer bizarro. Imagino, aliás, que não seria muito popular se, naquele preciso momento, eu me identificasse como antigo e orgulhoso membro, em 1974, da "Comissão de Extinção da Pide/DGS e LP" (Legião Portuguesa)...

O meu amigo, que me conhecia bem, disse então, em voz baixa, uma frase que me ficou na memória, até hoje:

- Ainda há por aqui antigos legionários. Mas "aquilo" não se pega, não é um virus. Não é nenhuma "legionella"...

Tenho-me lembrado deste episódio nos últimos dias, em que aprendi que, tal como as ideias que suportavam a ditadura não contaminavam necessariamente quem nela viveu, a temível "legionella" não se propaga por contágio humano.

Mário António


"Com novembro a chiar nestas cigarras
as acácias sangrando suas flores
e um sol afirmativo num céu alto

Espero a tua carta e a minha vida

Uma pausa do tempo em minhas mãos
preenchida
pela contagem das horas
nas cigarras e pétalas caídas"

O pequeno livro "Amor", da autoria de Mário António, onde está o poema de que citei um estrato, vinha como oferta no saco do jornal "O Sol", da passada sexta-feira, que só hoje esvaziei. Trata-se de um facsimile de uma edição de 1960, da Casa dos Estudantes do Império, estrutura que acolheu figuras que viriam a destacar-se na luta pela independência dos seus países. 

Mário António, teve uma atividade cultural intensa em Angola, onde nasceu em 1934. Publicou considerável obra de poesia, de conto e de ensaio. Veio estudar para Lisboa, em 1963, onde ficou ligado ao ISCSPU, à Gulbenkian e à Sociedade de Geografia, cidade onde morreria em 1989.

Conheci-o em 1968. Deu-me aulas de Quimbundo (é verdade!) e não nos demos especialmente bem. Era um homem fechado, que mantinha uma distância crítica face aos agitados associativos em que eu então me inseria. Por uma qualquer razão, irritava-se facilmente comigo e eu encanitava com o seu ar muito "certinho", de mulato de sorriso presunçoso, com ar de seminarista. Na memória universitária desses tempos, corria a "lenda" de uma sua antiga ligação aos "movimentos de libertação", mas, também à época, era por demais evidente o seu deliberado afastamento de quantos, por ali, sabíamos próximos do MPLA ou da Frelimo. Ademais, era voz corrente que quebrara já esses antigos laços e estava próximo de algum "ultramarinismo", à luz do qual iria construir a sua subsequente carreira universitária. 

Desconheço muito sobre Mário António, pelo que admito que possa estar a ser injusto neste seu retrato, fácil e impressionista. Dele, lembro-me de ter lido uns contos passados em Luanda, que não me deixaram particular marca, mas nenhuma poesia, de que este opúsculo me deixou agora curioso. Perdi-o por completo de vista, até que este inesperado "Amor" caiu do saco de "O Sol". Quem havia de dizer que seria "O Sol" a trazer-me de volta a imagem do meu antigo professor de Quimbundo!

Diz-que-diz-que

Às vezes é compulsivo, para se mostrar no centro da atualidade, outras é por vocação para a intriga, outras ainda é por distração irrefletida, que raia a falta de sentido de responsabilidade. É assim que alguns se tornam em promotores de indiscrições.

A França está a ser abalada por uma "crisette" provocada por uma entrevista dada ao "Le Monde" pelo Secretário-Geral da Presidência da República, Jean-Pierre Jouyet, na qual este terá revelado extratos de uma conversa com o antigo primeiro-ministro François Fillon. Segundo Jouyet, que foi secretário de Estado dos Assuntos europeus do governo Fillon em 2007, este último terá insistido, nessa conversa, em que os processos judiciais contra Sarkozy fossem acelerados, a fim de se evitar o regresso do antigo presidente aos palcos políticos - algo que seria vantajoso para François Hollande e para figuras emergentes na direita, como ele próprio, François Fillon. Não evitaram, como se viu. Fillon, que está numa guerrilha virtual com Sarkozy pelo poder, nega ter abordado o assunto e Jouyet mete um pouco os pés pelas mãos, sem se desmentir face a uma gravação da entrevista que, a ser revelada, pode ser comprometedora. Certa direita francesa exulta: "enterra" Jouyet, que sempre considerou um "traidor" (passou do governo Sarkozy a chefe político-administrativo do Eliseu, com Hollande), pretende abater Fillon pela denúncia das suas "intrigas", credibiliza as teses do "complot" contra Sarkozy e, como cereja no bolo, vê criado um imenso embaraço para François Hollande... como se ele necessitasse de mais um!

Em França, porém, este tipo de " leaks" é vulgar, embora as mais das vezes em registos temáticos muito menos polémicos. Coisas ditas em conversas telefónicas "a dois" surgem publicadas, regulamente, no "Canard Enchainé" e na "Marianne"´e aquele país já vive com isso com certa naturalidade. O que não deixa, contudo, de provocar pequenas crises.

Não é muito comum, no seio da classe política portuguesa, a propensão para provocar o surgimento na imprensa deste tipo de indiscrições. Mas já aconteceu e todos conhecemos alguns nomes que, com regularidade, ajudam a essa "festa", embora tenha desaparecido a maioria dos órgãos de imprensa onde esse vício se revelou. Não deixa de ser saudável que, pelo menos até ver, tenhamos escapado a essa cultura de indiscrição.

Em tempo: a França é também o país do humor subtil. Leia-se uma deliciosa "carta póstuma de Michel Vaillant", o volante da ficção de banda desenhada, dirigida a François Fillon, que é conhecido como um empenhado piloto amador de competições automobilística. Nesta "carta" que o "Le Figaro" hoje traz, é recordado o conselho do grande piloto que foi Juan Manuel Fangio: "A que velocidade se deve conduzir para ganhar uma corrida? O mais lentamente possível. Basta chegar antes do segundo..." Leia aqui.

domingo, novembro 09, 2014

O problema dos títulos

- Então você quer que paguemos mais para a União Europeia?

Jaime Gama fez a pergunta com um largo e irónico sorriso, no momento em que eu entrei no Falcon, onde ele já estava sentado há uns minutos, pouco antes de uma deslocação que íamos fazer, creio que ao Luxemburgo. Não percebi a que é que se estava a referir. Foi então que o ministro dos Negócios estrangeiros me passou para a mão um exemplar de "O Diabo", o título hiperconservador que, depois de ter sido, nos anos 40 do século XX, um órgão que veiculava posições próximas do PCP, passou, após o 25 de abril, a ser uma voz da direita radical, inicialmente sob a direção de Vera Lagoa.

O título na capa de "O Diabo" era inequívoco (e cito de cor): "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia". Uma larga foto minha, identificado como responsável governativo pelos Assuntos europeus, não deixava a menor dúvida sobre o autor da frase. 

Imagino a reação do cidadão comum ao entrar numa tabacaria, ao passar uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais do dia e ao deparar com aquela insólita "tirada". Um responsável do nosso país, um Estado que passava o tempo a tentar explorar todos os possíveis "nichos de saque" das instituições europeias, no sentido de recolher financiamentos para compensar o atraso do seu desenvolvimento, tinha a "lata" de afirmar que deveríamos "pagar mais" para a Europa? "O tipo passou-se, pela certa!", devia ser o sentimento comum. Se eu estivesse no lugar do cidadão, era o que pensaria.

"O Diabo" era um jornal ao qual nunca me tinha passado pela cabeça dar uma entrevista. A sua agressividade contra o governo socialista, de que eu então fazia parte, era conhecida, não havia edição do semanário em que o executivo de António Guterres não fosse zurzido, acusado de "vende-pátrias", quase filo-comunista, de incompetente e irresponsável.

Um dia, porém, uma jornalista por quem eu tinha bastante respeito sondou-me sobre a minha possível abertura para dar uma entrevista a "O Diabo". Garantia-me um diálogo com um jornalista equilibrado, profissionalmente capaz, sem uma agenda despropositadamente agressiva. Achei que era um ensejo interessante para "meter a foice em seara alheia", que não devia desperdiçar. Preparei-me para o que desse e viesse, sem grandes preocupações: tinha plena confiança na minha capacidade de dizer só aquilo que queria. A entrevista correu muito bem. O interlocutor preparara-se convenientemente, foi rigoroso e sem concessões, mas manteve-se num registo muito decente. Esperava um bom texto.

Naquela manhã, a caminho do Falcon, esqueci-me de adquirir "O Diabo". Jaime Gama, a quem nada escapava, era um leitor completo de tudo quanto a "media" portuguesa (e não só) publicava, de jornais a revistas. "O Diabo" não lhe escapara e, nele, claro!, a minha entrevista.

Mas, afinal, eu afirmara ou não que "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia"? 

A pergunta do jornalista fora: "Portugal não paga demasiado para a UE?". Ora cada Estado membro da União paga, para suportar o funcionamento da organização, uma contribuição anual que depende diretamente da sua riqueza, isto é, todos pagam mas os países mais ricos pagam mais que os mais pobres. A minha frase era irónica: queria exprimir que até gostaríamos de pagar mais, porque isso significaria que éramos um país mais rico. Era apenas isto que eu pretendera dizer, nada mais. Porém, as ironias não "passam", necessariamente, nos textos. O paginador da capa de "O Diabo" deve ter-se desunhado para descortinar, na minha entrevista, uma frase sonante, que servisse de título. Eu fora especialmente cuidadoso, sabedor "do que a casa gasta". Ao ler o texto, o responsável pela paginação ter-se-á então apercebido que salientar essa minha frase criava uma "caixa" interessante, funcionando de forma negativa para o membro do odiado governo socialista, a que imprudentemente abrira as suas colunas. E não hesitou.

António Guterres explicou-me um dia que, nas entrevistas que concedamos, a nossa pior frase será sempre chamada para título. A minha frase não estava errada, tinha apenas sido dita num tom que não "passou"...

Mas a que propósito veio isto hoje? É que deparei, há pouco, num jornal diário, com uma fotografia minha, numa intervenção pública em Lisboa, complementada com um título onde figura algo que eu disse, embora não complementado com uma contextualização que eu próprio tivera o cuidado de precisar. Outra "simplificação", de natureza similar, descortinei ontem noutra nota, desta vez informática, atribuindo-me uma expressão que, de facto, eu utilizei na mesma sessão, mas que havia complementado com a frase "como alguns gostam de dizer, num conceito que hoje é muito contestado". Em ambos os casos, creio que não estamos perante qualquer atitude de má fé. Trata-se apenas do problema de criar um título, que, por definição, terá de ser curto e sintético. E redutor. É a vida...

Os órfãos do muro


É tão bom revisitar o passado através da consabida finura da leitura histórica do Partido Comunista Português! Apreciem esta peça-modelo do "Avante!" Com total sinceridade, devo dizer que sinto mesmo uma certa ternura por estes saudosos do "Trabant" e das glórias da URSS e dos seus "compagnons de route", a que Ialta forçou a existência. O PCP é hoje um museu de si próprio, que deve ser conservado com todo o cuidado que sempre deve ser concedido às espécies em extinção.

Custa-me ter de concluir que um partido a quem tenho, como muitos portugueses, uma eterna dívida de gratidão pela sua inigualável e sacrificada luta para derrubar a ditadura, não entenda o ridículo a que se expõe ao ficar preso a estes clichés caricaturais, que não dignificam a esperança que muitos ainda põem na sua ação política. Ao ler textos como estes, dou-me bem conta do que poderá ser o futuro da ideia da "maioria de esquerda" em Portugal. Ao auto-excluir-se do "mainstream" do bom senso, pela assunção deste género de posições, o atual PCP revela-se, uma vez mais, o grande e principal aliado (objetivo, como a doutrina marxista classifica) da direita portuguesa, ao lado de quem esteve no derrube do último governo socialista, na sua lógica imutável do "quanto pior, melhor".
 
Tenho pena, pelos bons amigos que por lá tenho e pelo respeito que conservo pelo velho PCP.

sábado, novembro 08, 2014

Francisco George


Gosto do estilo de Francisco George, diretor-geral de Saúde. A sua figura é talvez um tanto atípica, aquele bigode seria "punido" se acaso tivesse de obedecer às regras militares de corte, o cabelo é um "must" que, um destes dias, abre um modelo nacional para os barbeiros. Mas os portugueses já perceberam que têm diante de si alguém que não utiliza a "langue de bois", que não esconde as dificuldades para efeitos polìticos, que sabe do que fala, que não se intimida perante os "cornetos" das Sónias Cristinas. E que atua, mobilizando equipas e meios, num domínio que gere sempre graves incertezas e dúvidas.

Francisco George, oriundo de uma linhagem médica familiar muito respeitável, é um grande "servidor do Estado", uma categoria que talvez não esteja na moda mas que fui educado a respeitar. Perante a rotação de alguns meninotes arrogantes pelas cadeiras do poder, a manutenção de Francisco George no lugar, há muitos e bons anos, mesmo depois de mudanças drásticas na governação, mostra que ainda sobrevive uma réstea de bom senso em setores da nossa classe política. Nas gripes, no ébola ou na "legionella", ao atentar nas declarações de Francisco George, que lida com essa coisa definitiva que são as ameaças à vida, nossa e dos nossos, ficamos com a sensação, talvez estranha em face do resto que por aí vai, de que ainda há alguém "in charge".

sexta-feira, novembro 07, 2014

Presidenciais

Presumo que Jaime Gama não vai gostar daquilo que vou escrever. Mas não posso deixar de fazê-lo.

António Guterres reúne unanimidade dentro do Partido Socialista para vir a ser o candidato presidencial apoiado pelo partido (e por largos setores fora dele). Numa inevitável segunda volta, parece dificilmente batível nas urnas, seja por quem for - e Santana Lopes é, a meu ver, a carta mais provável por que Passos Coelho vai acabar por puxar, quanto mais não seja para travar as ambições do "irritante" Marcelo Rebelo de Sousa. Toda a restante esquerda, com mais ou menos entusiasmo, acabaria por alinhar atrás do atual alto-comissário das Nações Unidas para os refugiados, lugar em que Guterres se tem prestigiado.

Resta saber se a Guterres "apetece" mais Belém ou o palácio de vidro da 2ª avenida de Nova Iorque. Não estou minimamente "no segredo dos deuses", mas tenho para mim, conhecendo-o, que lhe agradaria mais o lugar internacional. Resta saber se a manutenção em aberto desta hipótese é, em termos de calendário, compatível com o "timing" ótimo para lançamento de uma candidatura presidencial. Quero com isto dizer que o eleitorado potencial de Guterres, e em particular o Partido Socialista, não pode ficar refém desta indecisão e que, prolongando-se a mesma, há que encarar tempestivamente uma outra solução, com vocação vencedora.

Neste caso, não tenho a menor dúvida: o nome de Jaime Gama é, "by far", aquele que me parece indiscutível como podendo encarnar uma candidatura presidencial de altíssima craveira. Trata-se de um dos mais qualificados e bem preparados quadros políticos de que o país hoje dispõe, tem uma grande notoriedade nacional e internacional, revela um equilíbrio e um sentido de Estado que pede meças a quem quer que seja, na nossa política doméstica.

Volto a dizer: não sei se Jaime Gama gostará desta nota, mas entendo que, se o momento assim o exigir, não poderá eximir-se a este dever, que não é só político, mas também é patriótico.

Tiradas

1. O ministro Pires de Lima mostrou-se ontem um pouco alterado numa sua prestação parlamentar. A doutrina divide-se quanto aos motivos do estilo adotado, mas não quero ir por aí. Depois de uma violenta diatribe contra aquilo que considerou ser a influência negativa do anterior governo na vida interna de uma empresa como a PT (onde o Estado, à época, ainda era acionista, note-se), não se coibiu de revelar que havia já passado alguns recados à administração do Novo Banco, no sentido de esta dever ser mais favorável ao financiamento das PME. Bem prega frei Tomás: faz o que ele diz e não o que ele faz.

2. Ainda o antigo BES. Ontem, convidado surpresa da Quadratura do Círculo, Fernando Ulrich "descaiu-se" e disse que, se acaso o montante a pagar pelos bancos, no quadro do fundo de resolução, em caso de uma venda menos favorável do Novo Banco, vier a ultrapassar um certo montante, as instituições bancárias deverão recorrer a uma litigância judicial. Quer isto dizer que será o montante a definir a legalidade da medida! Bonito! Esta é a resposta dada pela banca, depois de, com a outra mão, não ter hesitado em recorrer à ajuda dos fundos públicos europeus que foram postos à sua disposição, com apoio dos Estados. É bom saber-se!

3. A senhora Merkel continua a dar-se ares "patronizing" (ou devemos dizer "matronizing"?) face aos seus parceiros europeus. Depois das "ameaças" ao PM Cameron, saiu-se agora com um comentário sobre o "excesso" de licenciados que Portugal (e Espanha) terão, em detrimento de carreiras vocacionais profissionalizantes. Presume-se que os "gasterbeit" de que a Alemanha necessita, nas obras ou nas fábricas, e que ligam melhor com a imagem que têm de Portugal, não necessitem de grande qualificação (embora o nosso país esteja bem abaixo da média comunitária). O PS abespinhou-se, o ministro Crato, conhecido "amigo íntimo" das universidades, veio a terreiro defender a posição portuguesa. Onde chegou a Europa - melhor, onde chegou a Alemanha! - para termos de ver um país, numa descarada tirada para efeitos políticos internos, entrar neste tipo de demagogia. Vou medir as palavras: a Alemanha, e os seus dirigentes, estão a arranjar um grande sarilho para a sua imagem junto dos parceiros. Um dia vão arrepender-se e pode ser já tarde. Para a Europa e para eles. Espero, sinceramente, não vir a ter razão.

quinta-feira, novembro 06, 2014

Artur Castro Neves (1944-2014)

Era um prazer passear com o "Kiko" (Artur Castro Neves) pelas ruas de Paris. Tinha delas uma leitura muito diferente do "turista diplomático" que eu nunca deixei de ser, olhava-as com a mirada de "vieux routier", contava a história da loja de esquina que já fora outra coisa, do andar onde vivera fulano, do bistrot onde se comia, bom e barato, algo que era sempre bem diferente dos locais que eu conhecia. Era viciado na "La Une", eu na "L'Écume des Pages". Depois das livrarias de cada um, encontrávamo-nos no Lipp. Para a semana, vou beber por lá, por ele, um Chablis que sei que apreciava.

Paris era a cidade para onde ele saíra em 1962, onde se licenciou em Sociologia, onde lecionou na universidade, antes de o fazer por cá. Em Paris, escreveu na "L'Esprit", por cá editaria vários livros sobre o audiovisual, o tema que o fascinava. Por lá, viveu a sua mãe, que visitava regularmente, tendo eu, por quatro anos, sido beneficiário, pelo convívio, desse seu percurso cíclico. Surgia-nos lá em casa, com o inconfundível "papillon", sempre com uma oferta, umas flores, um livro, um chocolate ou uma compota. Trazia-nos a sua visão do país em crise, sempre original, fruto de um pensamento livre, feito de mundos que decantara. Refletia o mundo a partir dele, não de uma perspetiva paroquial. Tinha amigos de excecional qualidade, que gostava de partilhar, enriquecendo-nos. Através dele conheci gente muito interessante, em Paris ou em Brasília, onde nos visitou e nos iluminou os dias.

Conhecemo-nos nos anos 80, em Lisboa, no Procópio, onde ele parava a espaços. Ficámos amigos num segundo. A capital, contudo, parecia-me que não era a sua "praia". Era o Porto, a sua terra, que lhe dava a identidade, aquela maneira única de estar na vida e na relação franca com os outros. O Kiko era uma espécie rara de intelectual urbano, porque não se enfronhava nas folhas, antes sorvia  o quotidiano. Tinha uma graça natural, uma agitação quase adolescente. Era adepto de uma ironia culta, frequentemente feroz. Às vezes, divergíamos, politicamente e não só. No fundo, era um jogo: "picávamo-nos" um ao outro, divertidos. 

O Kiko deixou-nos, na madrugada de ontem. Quis o acaso que hoje eu estivesse de passagem no Porto. Pude, desta forma, despedir-me de um amigo com quem partilhava muitas inquietações, algumas certezas e, sempre, um olhar de esperança sobre Portugal. Deixamos aqui um abraço sentido à sua Família e um beijo muito amigo à Isabel.

Em tempo: recordemo-lo aqui.

Das embaixadas

No seu IV volume de memórias, "Acta est fabula", há dias publicado, Eugénio Lisboa, que foi conselheiro cultural em Londres entre 1978 e 1995, e com quem coincidi naquela embaixada de 1990 a 1994, traça um singular retrato de uma certa estirpe. Respigo o extrato aqui, com a devida vénia:

"À volta das Embaixadas, gravita toda uma fauna peculiar, que vive dependente de ser vista nas recepções das Embaixadas, cujo estatuto social precisa da bênção e da aura das Embaixadas e para quem é vital "ser muito das Embaixadas" e saber o que lá se passa e "quem vai ser o novo embaixador". Intrigam, telefonam, pressionam, namoram, iriam para a cama, sendo necessário, para assegurarem que receberão o "convite". Recebido este, nada lhes dá mais prazer do que alardeá-lo por todo o lado, sobretudo junto daqueles que, quase de certeza, o não receberam. Não há nada como marcar a diferença: ir ou não ir à Embaixada, eis a questão. Depois, no dia miraculado da recepção, saltitam de pessoa em pessoa, repletos, garantindo o máximo de visibilidade às suas egrégias e assaz convidadas pessoas. Quando, por uma razão qualquer ou por nenhuma razão em particular, houve uma recepção para que não foram convidados ou convidadas, ficam num desespero de ave ferida na asa, não largam o telefone, a quererem saber porquê, numa voz um bocadinho histérica, de amante abandonada. Sim, porque, no passado, tinham estado sempre "na lista". Terão sido "riscados" ou "riscadas" da "lista"? Quem foi o intriguista responsável pela erradicação? Sim, porque houve de certeza alguém mal intencionado, invejoso, que esteve por detrás daquela "intriga"! Para estas pessoas, a "Embaixada" é um lugar mágico, "a charmed place". É um mundo de mil e uma noites, de maravilhas insuspeitadas... Quando um embaixador deixa o posto, entram logo numa grande ansiedade: "Quem será o novo?" Babam-se, literalmente, de uma expectativa quase lasciva. Quando lhes dizia que ainda se não sabia, olhavam para mim, com ar de dúvida: "Sabe, mas não pode dizer..." E este "segredo", não desvelado, tornava-se, para elas, um grande motivo de emoção, de quase acarinhada ternura... Quando, por fim, era conhecido o nome do novo ocupante do posto, derramavam-se, sôfregos, compreensivelmente impacientes: "Quando chega? Como é ele? De onde vem?" Desfaleciam, literalmente, de curiosidade mal saciada. Antecipavam, mentalmente, a "recepção" em que seriam, finalmente, apresentados a Sua Excelência! A alguns, mais atrevidos, parecia-lhes que talvez fosse a ocasião de sugerir ao "novo" a oportunidade, a conveniência, a justiça de uma apetecida condecoraçãozinha..."

Não ouso dizer-lhes se, na minha opinião, as coisas são mesmo assim. Tendo servido em quatro das maiores embaixadas portuguesas - Luanda, Londres, Brasília e Paris -, onde essas situações podem ser mais frequentes, sou forçado a repetir a expressão clássica de Urquhart, na versão inglesa (não conheço a americana) da série "House of Cards": "You might think that. I couldn't possibly comment"...

quarta-feira, novembro 05, 2014

O ocaso de Obama

Depois das eleições de ontem, nas quais perdeu o controlo das duas câmaras parlamentares, o presidente Obama parte para os dois últimos anos do seu mandato numa posição de grande fragilidade. Sem maioria na Câmara dos Representantes e no Senado, dirigir a América é, historicamente, uma tarefa muito difícil para um presidente, que é agora reduzido a uma agenda minimalista e forçado a uma negociação permanente, e quase sempre frustrante, que debilitarão a imagem final do seu mandato.

O sistema americano foi desenhado com grande sabedoria, porque permite ao eleitorado, no "midterm" de um mandato presidencial, como que compensar, por uma "retificação" de parte do Senado, os equilíbrios prevalecentes nos dois anteriores anos. É uma espécie de desafio ao presidente eleito (ou reeleito): se os dois primeiros anos desse seu mandato agradarem ao eleitorado, ele poderá "premiá-lo" com uma representação favorável no Senado; se a avaliação for menos boa, os dois últimos anos poderão transformar-se num "calvário". É este último o destino de Obama.

Depois de Kennedy, nenhum presidente americano tinha criado tantas expetativas, na América e no mundo. As desilusões são sempre maiores quando partem de ilusões que acabam frustradas. Obama era o presidente dos EUA pós-Bush, a figura predestinada a mudar a imagem de um país que, com o seu antecessor, mostrara, ainda mais do que no passado, que o respeito pela ordem institucional internacional parava à porta dos seus interesses.

Obama provou, uma vez mais, que um presidente americano, mesmo com a força da sua legitimidade eleitoral própria, tem sempre à sua volta um colete de interesses e compromissos que é obrigado a respeitar e que, a cada dia que passa, a sua capacidade de os enfrentar, quando existe essa vontade, diminui e se esvai. Contrariamente à ideia de que um presidente negro poderia apaziguar um país fortemente dividido, raramente as clivagens internas estiveram tão acesas e radicalização político-partidária foi tão forte. E tudo isto não obstante o crescimento pós-crise ter surgido, o défice do Estado ter diminuído e a América ter entretanto mostrado uma pujança económica notável, suportada por uma nova autonomia energética que é a inveja do planeta.

No plano externo - o único que verdadeiramente nos importa - a imagem de Obama ficará sempre ligada às promessas que não cumpriu na questão de Guantanamo e à peça retórica que foi o seu célebre discurso do Cairo, sinais de boa vontade que lhe valeram um prémio Nobel da Paz que teve tanto de prematuro como de caricato. Mas, apesar de tudo, temos de ser justos: a América que Obama nos vai deixar compara bem com aquela que ele havia herdado de Bush. Verdade seja que era difícil fazer pior. 

O leão de Maputo

 
Em princípio, não havia razão para preocupações, mas ser sujeita a uma operação stop na madrugada de Maputo é sempre algo que cria alguma ansiedade a uma cidadã estrangeira. Nunca se sabe bem o estado de espírito prevalecente, àquelas altas horas, no seio das forças policiais e, por essa razão, quando mais rapidamente pudesse sair dali melhor seria, pensava ela, intimamente. A condutora e os seus amigos aguardaram assim, com algum nervosismo, a chegada do agente encarregado da fiscalização do seu carro. O passaporte, conjuntamente com a carta de condução, foram passados para as mãos do polícia, que os olhou atentamente, com ar grave. Até que um largo sorriso se iluminou, deixando à vista os dentes bem brancos, na cara escura que a noite adensava:
 
- Então é do Sporting?!
 
A condutora ficou siderada. De facto, era do Sporting. Mas como é que, por aqueles documentos, ele tinha adivinhado?
 
- É simples! Está aqui escrito: nascida em Alvalade. Só pode ser do Sporting, não é? Eu também sou!
 
A condutora, sportinguista a sério, escusou-se a revelar que o "Alvalade" que estava no passaporte era a freguesia de Lisboa onde tinha nascido, por um acaso, numa clínica então na moda. Isso nada tinha a ver com o estádio José de Alvalade, local histórico da prestigiada agremiação pela qual partilhava, com o polícia maputense, o mesmo fervor clubista. Mas há momentos em que tudo isso é irrelevante e esse era um deles. O Sporting jogara nessa noite, ela revelou mesmo ao agente o resultado feliz do jogo e foi nessa alegria comum que a operação stop foi ultrapassada, sem mais perda de tempo.  

"O lugar de Portugal"


Pequeno video sobre o evento.

terça-feira, novembro 04, 2014

PT

A propósito de uma tomada de posição conjunta de várias personalidades, que reclamam uma ação estatal para manter controlo português na Portugal Telecom - o que está a levar à insanidade de qualificar de "marxistas" figuras como Bagão Felix e Silva Peneda -, procura-se colar o declínio da empresa a um "excesso" de influência política, naturalmente dirigindo as baterias ao alvo mais apetecido do ano político cuja contagem degressiva agora começa: Sócrates e o último governo socialista.

Gostava só de lembrar que muitos dos ganhos de grandes empresas portuguesas foram conseguidos nos anos 90 graças à "guidance" política de outro governo socialista*, neste caso de António Guterres, que liderou a entrada em força de empresas nacionais nas privatizações no Brasil, país onde viriam a ganhar escala e a terem fortes lucros, mantendo-se algumas por lá ainda hoje, com vantagens e sem queixas. Nessa altura, não vi ninguém reclamar do "excesso" de Estado.

* Faço uma declaração de interesses: integrei esse governo

Invernias

A algumas pessoas deprime. A outras só aborrece. Quando é demais, também cansa. Mas uma boa chuvada, puxada a ventania, com algum frio, induz na vida um desafio, é uma estimulante e saudável contrariedade. Saem as gabardines, os sobretudos, os cachecóis, notamos a vareta estragada no guarda-chuva. Descem dos armários as camisolas, os pullovers, as meias de inverno. Com frio, dá mais vontade ficar em casa, já não sentimos remorsos pelo facto de estar sol lá fora e termos um trabalho para acabar. É claro que há o "downside": as constipações, as gripes, os engarrafamentos, a condução difícil, as humidades em casa. Mas já era demais, o calor morno que aí andava. O Verão não foi lá grande coisa, mas foi longo e estentido até ao fim de outubro. Começava a não ter graça comprar castanhas sem frio. Além disso, há um tempo para tudo. E, em Novembro, tem de haver frio. A mim, desconcertam-me muito os caprichos do tempo. E ele tem-nos cada vez mais.

O não de Timor-Leste

Não conheço com exatidão o que passou com os técnicos portugueses que foram intimados a sair de Timor-Leste. Não quero incorrer em juízos de valor precipitados sobre uma questão que afeta seriamente a normalidade das relações de Portugal com aquele país. Não quero crer que as autoridades timorenses tivessem escondido, até ao último instante, o seu desagrado com a prestação da cooperação portuguesa naquele setor. Não acredito que esse desagrado não tenha chegado, atempadamente, ao conhecimento das autoridades portuguesas. Não me passa pela cabeça que, se acaso fosse conhecido esse mal-estar, não tivessem sido feitas diligências, pelos canais e meios adequados, com vista a encontrar uma solução que não colocasse em causa o relacionamento bilateral. Não quero sequer imaginar que tenha havido uma má leitura de sinais que eventualmente possam ter sido do conhecimento do lado português. Não agrada a ninguém que se tenha chegado ao ponto das autoridades portuguesas terem de vir a terreiro com uma tomada de posição como a que foi há poucas horas foi assumida. Não é aceitável que, a haver quaisquer culpas do nosso lado, elas possam morrer sem par conhecido. Não consigo compreender, mas espero que rapidamente isto seja bem esclarecido, como é que uma relação de cooperação tão forte como a que existia entre Lisboa e Dili se pode ter degradado, subitamente, sem qualquer aviso prévio e sem que uma discreta diplomacia preventiva de bastidores tenha sido atempadamente posta no terreno. Não sei, mas acho que o país tem de saber. 

segunda-feira, novembro 03, 2014

Poder e encenação

 Dia 4 de novembro | 19 horas |  Salão Nobre | Entrada Livre
com Eduardo Lourenço (escritor e ensaísta) e Francisco Seixas da Costa (Embaixador)
Moderador: António José Teixeira (Diretor da SIC Notícias)
 
Desde sempre o poder se encenou, sobretudo o poder político. Em todos os sistemas ao longo da História, com a ajuda de técnicas próximas das do teatro, têm sido ensaiadas diferentes formas de encenação, em função da estrutura das sociedades e da especificidade da conjuntura histórica. Como é que os sistemas políticos se apresentam? Que instrumentos e meios de comunicação utilizam os detentores de poder político e os grupos de interesses para influenciarem a opinião pública relativamente aos seus objetivos? Todos os sistemas desenvolvem as suas próprias iconografias, as revoluções também. As ditaduras do século XX constituem claros exemplos de encenação política com o objetivo de manipular a opinião pública. Atualmente a legitimidade da política passa cada vez mais por processos de comunicação, pelo que a política se torna cada vez mais suscetível de encenação, levando à marginalização da realidade fora dos media. Mesmo em democracia, é o poder das imagens que impera, não o dos cidadãos.
 

Margarida Gouveia Fernandes
(Programadora dos Encontros Garrett)

Condecorações

A propósito da condecoração hoje atribuída pelo presidente da República a Durão Barroso, veio à baila o facto de Cavaco Silva não ter ainda condecorado José Sócrates, num gesto idêntico àquele que foi tido para com todos os chefes de governo, durante o regime democrático.

A observância dos ritos da liturgia civil é essencial às instituições, à sua preservação e à sua marca na História. As condecorações são uma forma de reconhecimento público a pessoas ou entidades que exerceram certas funções ou se distinguiram em determinada atividade, tida como relevante para a sociedade. Raramente a atribuição de uma condecoração é um gesto neutro, automático, oficioso. Normalmente, há nele uma certa dose de subjetividade, o que, não raramente, o torna pasto de polémica. Mas, por vezes, o arbítrio do gesto é atenuado pelo facto dele se colar a práticas que, de certo modo, se tornaram consuetudinárias.

Condecorar um cidadão português que, durante uma década, exerceu um dos mais altos cargos internacionais parece-me um ato da mais flagrante obviedade. Não está em causa um juízo de valor sobre o trabalho executado por Durão Barroso à frente da Comissão europeia. Esse é outro julgamento - e, no meu caso, já aqui o deixei expresso Trata-se de o país de onde é originário o titular de um cargo dessa importância querer sublinhar, com uma comenda pública, que não é indiferente a essa circunstância. Seria estranho para a Europa, que escolheu uma determinada pessoa para chefiar a sua mais importante instituição, ver o país da nacionalidade desse cidadão alhear-se do facto.

Posso presumir o que diriam os agora críticos da decisão de Cavaco Silva se acaso, no momento oportuno, António Guterres, ao sair de Alto Comissário das NU para os Refugiados, não viesse a merecer uma distinção pelo Estado Português. Ou se Vitor Constâncio, quando abandonar as elevadas funções de vice-presidente do Banco Central Europeu, não tiver um gesto de reconhecimento das autoridades do seu país. Infelizmente, Portugal não dispõe de muitos nomes que hajam merecido uma consagração internacional. Um país tem de ter sempre a grandeza de se afastar das avaliações conjunturais neste tipo de questões. E aos seus dirigentes é exigível sentido de Estado na sua ponderação.

Resta o tema José Sócrates. É um caso claramente diferente do de Durão Barroso. A prática consagrou que a todos os primeiros-ministros da era democrática é concedida a mais alta condecoração que pode ser entregue a alguém por serviços prestados ao país - a grã-cruz da Ordem de Cristo. Não estabelece quando é que esse gesto, que a lei não impõe mas que a tradição consagrou, deve ser assumido. 

Curiosamente, Eanes foi quem condecorou Pinto Balsemão, mesmo depois de anos de tensa convivência. Mas devo dizer que percebi quando Jorge Sampaio, no seu tempo de presidente, decidiu não ser ele a distinguir Santana Lopes, com quem tinha tido um conflito político muito sério. Acabou por ser Cavaco Silva a fazê-lo. Agora, Cavaco Silva não parece inclinado a assumir o gesto de condecorar José Sócrates, com quem a conflitualidade foi ainda mais grave. Posso admitir que o não faça, até porque presumo que seria algo contrangedor para o próprio José Sócrates receber a comenda das mãos de Cavaco Silva. O sucessor deste o fará. A mim, a quem foi atribuída, há mais de uma década, precisamente essa mesma condecoração, não me é confortável a ideia de que um antigo primeiro-ministro do meu país a não possua.

Nações Unidas

Depois de uma bem sucedida e longa campanha que, há dias, permitiu a Portugal ser eleito para o Conselho de Direitos do Homem da ONU, chega a notícia de uma expressiva votação que leva agora o nosso país, uma vez mais, ao Comité Económico e Social (Ecosoc) da organização.

Volto a sublinhar o que, a propósito da primeira vitória, aqui disse há dias: uma presença ativa nas instâncias multilaterais faz ganhar ao nosso país margem de manobra em outros "tabuleiros" negociais. Se apoiados em linhas de orientação política que estejam em consonância com as grandes preocupações internacionais, os nossos experientes diplomatas saberão utilizar estas posições como factor de prestígio para Portugal.

Quero felicitar vivamente os diplomatas que organizaram e levaram a bom porto esta campanha e, muito em especial, o embaixador Álvaro Mendonça e Moura, um dos mais qualificados profissionais das Necessidades, nosso representante permanente em Nova Iorque, o qual, com o embaixador Pedro Nuno Bártolo, que nos representa junto das organizações internacionais, em Genebra, havia já tido um papel essencial na nossa eleição para o Conselho dos Direitos do Homem. Naturalmente, o ministro Rui Machete merece igualmente ser sinceramente saudado por esse novo sucesso do ministério que dirige.

domingo, novembro 02, 2014

Parceria transatlântica

Há dias, fiz aqui notar que o surgimento, pela calada, de um tropismo liberal radical dentro do governo estava a colocar Portugal no lado mais extremado da negociação da Parceria Transatlântica entre a União Europeia e os EUA, contribuindo para um agravamento do fosso esquerda-direita nesse debate, numa matéria cuja importância virá sempre a requerer um consenso político interno alargado. Tratava-se de propugnar por uma instância de arbitragem que pudesse ultrapassar a jurisdição dos tribunais comuns dos Estados subscritores, como o argumento do reforço dos direitos dos investidores. Uma posição que nem sequer a Alemanha apoia. Dizem-me que o alarido provocado pelo assunto terá, entretanto, obrigado a um discreto puxão de orelhas de bom-senso. Mas nunca fiando... 
 
Hoje, o "Público" dedica ao assunto um dossiê clarificador. A esse propósito, e de forma reveladora da leviandade da posição portuguesa, o jornal transcreve este extrato do "The Economist", uma revista que, sem deixar de ser liberal, não perde, por essa razão, o sentido de responsabilidade que por cá parece faltar:
 
“Se a intenção é convencer o público de que os acordos internacionais de comércio são uma forma de enriquecer as multinacionais à custa dos cidadãos comuns, eis o que deve ser feito: dar um direito especial às empresas para recorrerem a um tribunal secreto, gerido por advogados extremamente bem pagos pelas empresas, para pedir compensações sempre que um governo aprova uma lei que, por assim dizer, desencoraja o fumo, protege o ambiente ou previne uma catástrofe nuclear.”
 
É preciso dizer mais?

Östalgie

 
Vi lembrado, há pouco, o excelente conceito de "östalgie", uma "trouvaille" vocabular que simboliza o sentimento de nostalgia que atravessa alguns setores minoritários alemães pelos tempos da Alemanha de Leste, a RDA. Espero que a televisão, neste dia de celebração da queda do Muro de Berlim, se lembre de repor o magnífico "Goodbye Lenin", o filme onde isso é retratado de forma magistral.

Em casa do meu avô materno, que terá ficado marcado pela tensão berlinense e pela forçada divisão da cidade, era preservada, desde essa altura, uma garrafa (cujo conteúdo desconheci por muito tempo) que apenas deveria ser aberta quando o "muro de Berlim" caísse. O meu avô morreu poucos anos depois e a garrafa andou, desde então, em bolandas, tendo ido parar a casa dos meus pais. Quando, em 1980, atravessei pela primeira vez o "checkpoint Charlie", para ir a Berlim Leste, lembrei-me da "garrafa do Muro", perguntando-me se algum dia a veria finalmente aberta.

O muro caiu, faz agora 25 anos. Tenho bem viva uma conversa telefónica com o meu pai nesse mesmo dia. Não me pareceu então excessivamente feliz com a unificação alemã, não porque tivesse a menor simpatia pelo regime de Leste (longe disso!), mas porque, como "aliadófilo" ferrenho que havia sido e como eterno desconfiado da bondade do poder europeu da Alemanha que continuava a ser, brincava por vezes com o dito atribuído a Mitterrand: "gosto tanto da Alemanha que prefiro ter duas..." Tenho, contudo, a certeza que, lá no fundo, se congratulava com a reconciliação europeia. Mas morreu sem a menor simpatia pela senhora Merkel...

Nesse Natal de 1989, por iniciativa minha, fomos à procura da garrafa. Era, afinal, um "riesling", um vinho branco alemão facilmente perecível, que só o otimismo do meu avô havia considerado poder manter-se degustável, talvez porque o muro se manteve de pé muito mais tempo do que ele esperava. Abrimos a garrafa e o vinho estava, como era de esperar, uma zurrapa intocável.

Na memória, podemos guardar, como na "östalgie", apenas o melhor do passado. Na prática, o tempo, inexoravelmente, faz-nos perder as pessoas e tudo transforma. Às vezes, embora nem sempre, para pior.

Vantagens do Halloween

 
Por algum tempo, vivi num prédio de apartamentos em Nova Iorque. Era um edifício de gente muito rica. Alguma saía de casa para o heliporto, para ir trabalhar. Nos melhores fins de semana, muitos partiam para os Hamptons ou para Martha's Vineyard, destinos de vilegiatura preferidos pela mais afluente burguesia americana, novaiorquina e não só. O meu estatuto de embaixador era uma garantia para ser aceite, embora ser representante diplomático de um país como Portugal não fosse necessariamente um "label" de prestígio. Com a família do meu colega esloveno, creio que éramos os únicos (verdadeiros) estrangeiros naquele prédio do Upper East Side de Manhattan. Aceites, mas sempre estranhos.

O primeiro grande choque que sofri, habituado a um mundo normal e iludido com a ideia da cordialidade natural (e, às vezes, até intrusiva) dos americanos, foi a relutância com que a maioria dos vizinhos respondia a um simples "Good morning!", à entrada da casa ou nos elevadores. As mais das vezes, não se lhes conseguia arrancar mais do que um simples "Hi!" e um esforçado esgar. Com o tempo, lá fomos conquistando uns sorrisos e, aqui ou ali, íamos já trocando algumas palavras, sobre o tempo ou sobre a neve e o tráfico.

Um dia, chegou o Halloween. Pela entrada do prédio, junto ao batalhão rotativo de porteiros que, 24 sobre 24 horas, asseguravam a segurança e permitiam o acesso aos andares (nos elevadores, o botão do nosso andar não funcionava antes de ser desbloqueado pela portaria), andavam crianças mascaradas, numa algazarra que humanizava aquele espaço impessoal. Ao final do dia, creio que pelo telefone, recebemos um pedido da portaria para que essas crianças pudessem ir ao nosso andar, para receberem, como era tradicional, rebuçados, bolos e coisas assim. E lá nos surgiu, arvorando máscaras e trajes do período, um bando alegre de miúdos, regalado com as ofertas que lhes fizemos. Por umas horas, o ambiente do prédio mudou.

Nas semanas seguintes, essa miudagem, quando se cruzava connosco na entrada ou no elevador, enchia-nos de "Hi!' e de "Hello!", abrindo o fácies snobe de alguns dos pais, muitos dos quais passaram a trocar, de modo sorridente, os "Good morning!" e os "How are you today?", dando finalmente um ar da sua graça. Vantagens do Halloween!

sábado, novembro 01, 2014

Estado (quase) islâmico

Foi há pouco. Tinha o carro parado, com motor a trabalhar, janelas abertas, à espera de uma pessoa. Era uma avenida sem ninguém, em Lisboa.
 
A rádio estava ligada na Antena 2. Era um programa sobre poesia, aparentemente um espetáculo público, com apresentação de um brasileiro. A certo ponto, o apresentador convidou, em francês, outra pessoa a ler um poema em árabe, "não porque alguém vá perceber, mas para sentirem o caráter melodioso da língua". Achei graça ao exercício, aumentei um pouco o som e, durante dois ou três minutos, ouvi a "lenga-lenga", de facto sonoramente bela, do que seria o tal poema.
 
Estava eu nisto entretido quando, no passeio ao lado, surgiram duas senhoras, bem idosas. Notei-lhes o olhar grave, desconfiado, ao passarem junto ao carro, ao ouvirem uma litania em árabe, ainda por cima num tom enfático, quase de proclamação. Hum...! Um carro com o motor a trabalhar, sem quase ninguém por perto, num local deserto de Lisboa, de onde saía uma voz árabe! Não pode ser boa coisa! Vi-as subirem a rua, cochichando uma para a outra, deitando, a medo, miradas repetidas para trás, talvez levando os meus óculos escuros à conta de disfarce. Chegaram à esquina seguinte, pararam, deitaram um último olhar severo e desapareceram. Terão ido chamar a polícia?  

Público & privado

Na sequência de um comentário colocado pelo "Feliciano da Mata" no post sobre a corrupção, sinto-me tentado a aqui colocar algumas ideias em forma simples.
 
Parece-me incontroverso que, para a sua economia crescer, Portugal precisa de mais investimento produtivo. Português ou estrangeiro. Há duas espécies de investimento: o público e o privado. (Bom, também há o privado que, afinal, é público - o chinês -, mas essa é apenas uma originalidade). Nos próximos anos, por via da impossibilidade de recurso a mais défice do Estado, o investimento público que nos resta são, na prática, os fundos europeus. É muito pouco. Por isso, para o país crescer, é necessário captar mais investimento privado que induza produção (para poder exportar), mais empregos e que gere lucros que seja possível tributar, para ajudar à receita orçamental para a execução das políticas públicas. E, também, para ajudar a pagarmos a dívida, porque somos gente de bem.
 
Para captar esse investimento privado - e há um difícil "mercado" internacional nesta matéria -, Portugal necessita de se posicionar melhor em determinadas insuficiências em áreas em que, em geral, os investidores atentam: fiscalidade, burocracia, corrupção e um conjunto muito variado de outros custos de contexto que é forçoso diminuir, e que sempre condicionam o destino desse dinheiro que por aí anda e que todos querem ver investido nos seus países. Contrariamente ao que alguns julgam (e temem), não é no mercado de trabalho e na sua flexibilidade que está hoje o "calcanhar de aquiles" da economia portuguesa. Se há, por exemplo. uma importante variável que os investidores estrangeiros nos apontam como essencial que evolua, esse é o (mau) funcionamento da nossa Justiça. 
 
Quero com isto dizer que diabolizar, como por aí se vê todos os dias, a ação das empresas e dos empresários privados pode fazer muito bem a um certo exorcismo esquerdista, a uma espécie de vingança histórica sobre a derrota das ideias que propugnavam por uma sociedade maioritariamente assente na economia pública. Essa sociedade acabou, não é reconstituível e o que há que garantir é que, num contexto de economia privada que é hoje, por muito que alguns não gostem, "the name of the game", são plenamente respeitados os direitos sociais das pessoas (na presunção de que os restantes estão protegidos), é assegurada uma sólida "safety net" pública (e não caritativa) para os excluídos da roda da sorte, são garantidos sistemas de previdência, de saúde e de ensino públicos, universais e de qualidade, isto é, é mantida uma forte e solidária rede de políticas públicas, com forte pendor social. 
 
Dito isto, isto é, que a dimensão do setor público da economia não tem condições de prevalecer, já não concordo com quantos defendem uma redução do Estado a uma função minimalista, uma espécie de "regulador", na ideia (salvífica e falsa) de que o mercado resolverá tudo. Não resolve, como já se viu e bem. Como também não resolve a ideia de privatizar "a eito" tudo aquilo que for público, por preconceito ideológico e liberalismo cego, não atentando ao seu valor estratégico para os interesses comuns do país. Por muitos anos que viva, nunca vou esquecer a "garantia" dada por alguém responsável a um grupo de empresários estrangeiros interessado em investir em Portugal (e, naturalmente, só revelo isto porque foi dito em público e sem qualquer pedido de reserva): "no final do atual processo de privatizações, o Estado não ficará com nada que dê lucro". 

Sitemeter

Há mais de uma semana, o Sitemeter, o contador de visitantes que estava acoplado ao blogue desde a sua criação, em fevereiro de 2009, por um qualquer mistério, deixou de dar resultados. 
 
Apresentava, na altura, o número que se vê na foto. Desapareceu, fez desaparecer mesmo os dados do Blogómetro. Não que isso importe muito, mas às vezes era curioso perceber a evolução das leituras.
 
Com a vida, aprendi uma coisa: o que não tem remédio, remediado está. Passemos à frente. Já lá está outro contador de visitantes, enquanto não se repõe outro Sitemeter. 

Livros

Não está fácil a minha vida com os livros.
 
Anteontem tive de faltar, como aqui registei, ao lançamento de mais um volume das memórias de Eugénio Lisboa. Tive imensa pena. 
 
À mesma hora, um prezado colega, o embaixador José Costa Arsénio, lançava o seu livro "A Satrapia do Kosovo". Pela mesma razão, não pude aceitar o convite que me formulou para estar no lançamento.

 
No dia 6 de novembro, outro colega, o embaixador Francisco Henriques da Silva, lança às 18.00 horas, na Sociedade de Geografia, um livro de que é co-autor: "Da Guiné Portuguesa à Guiné Bissau: um roteiro". Nesse dia, estou fora de Lisboa.


Ontem mesmo, concluí a leitura (e a escrita do prefácio) de um livro onde o meu caríssimo Henrique Antunes Ferreira junta algumas das suas memórias. O Henrique quase que se zangou comigo pelo atraso com que lhe enviei o prefácio... Mal ele sabe a quantidade de textos inconclusos que tenho entre mãos, parte deles já devidos a quem os demandou há algum tempo. Aqui fica a capa:


 
Até lá, vou ler o livro que a Teresa Nogueira Pinto acaba de publicar, "Um Genocídio de proximidade: justiça, poder e sobrevivência no Ruanda", um texto que nos traz uma importante memória de uma das grandes tragédia contemporâneas, cujas lições a comunidade internacional talvez não tenha aprendido.
 
 
 
As minhas últimas noites têm, entretanto, sido preenchidas pelo curiosíssimo volume que o arquiteto A. Campos Matos, figura maior do queirozianismo, acaba de publicar. "Diário Íntimo de Carlos da Maia (1890-1930)", uma viagem pelo mundo que o "herói" de "Os Maias" poderia ter percorrido no mundo convulso do Portugal de então.
 
 


Os livros perseguem-me. Ainda bem, confesso.

Tarde do dia de Consoada