segunda-feira, julho 09, 2012

O poder dos intérpretes

É uma rua "paralela" à Étoile: rue de Presbourg. Passei por lá há pouco. O tempo de um semáforo deu-me oportunidade de atentar na explicação de ser o antigo nome de Bratislava, hoje capital da Eslováquia.

Fui a Bratislava, pela primeira vez, como turista, ainda no tempo da Checoslováquia. Em termos de beleza, não se compara com Praga, sendo embora uma cidade bastante agradável para viver, ao que me dizem. Um choque de modernidade provocado no tempo do "socialismo real" construiu-lhe, no centro, uma sinistra ponte sobre o Danúbio, que rasgou o coração histórico da cidade, arrasando um bairro judaico, destruindo uma zona que deve ter tido uma apreciável unidade arquitetónica. Agora que ando pela UNESCO, refletindo nos atentados ao património, tenho pensado nisso com alguma frequência.

Desde então, fui várias vezes a Bratislava, em especial quando vivi em Viena. Em fins de semana, ia por lá à ópera, para simples passeio ou para a feira de antiguidades. E tenho hoje por lá amigos eslovacos.

Um dia, creio que 1997, recebi em Lisboa o presidente do parlamento eslovaco, Ivan Gašparovič. O país era então candidato à União Europeia, mas o governo autoritário eslovaco, chefiado por Vladimir Mečiar, era execrado pelos países comunitários, sensíveis aos justos protestos da oposição sobre as limitações colocadas à liberdade da comunicação social, às inaceitáveis pressões sobre a vida política e aos métodos brutais da sua polícia. 

No encontro que tive com o meu interlocutor eslovaco, para além de expressar a simpatia de princípio de Portugal pelas aspirações europeias do país, repeti, com a necessária delicadeza de termos que a ocasião e o seu elevado estatuto impunham, as preocupações que o estado de coisas que se vivia no país a todos criavam - e neste "todos" incluía outros países candidatos à adesão, que viam o seu processo sofrer atrasos pela singularidade negativa do exemplo eslovaco.

A conversa foi feita por intermédio de um intérprete eslovaco, que insistiu em que eu falasse português. À medida que ia ouvindo a versão que lhe era dada das minhas palavras, notei que o meu interlocutor ia ficando nervoso, crispado e muito tenso. O que eu dizia, porém, bem como a forma que eu utilizava para o dizer, não justificava minimamente esse estado de espírito. Na resposta que deu à minha intervenção, contestou, com alguma rudeza, o que acabara de ouvir. E, de forma um tanto inopinada, apressou o fim da reunião. Fiquei algo perplexo, mas não liguei muito ao assunto.

Dias mais tarde, ao nosso embaixador em Viena, acreditado em Bratislava, chegou um protesto informal das autoridades eslovacas, reclamando pelo modo, tido por menos cordial, como eu tinha interpelado a segunda figura da hierarquia do país. Lembro-me de ter reagido e, já não sei bem como, fiz chegar a minha maior estranheza pela ocorrência ao meu contraparte no governo eslovaco, que conhecera brevemente numa reunião em Bruxelas. Se há tradição que a diplomacia portuguesa tem é a preservação do diálogo e uma constante prática de cordialidade, mesmo em momentos mais tensos, onde a firmeza se impõe. Eu sabia muito bem o que tinha dito, e que diria de novo, e se havia alguém que era culpado de qualquer "misunderstanding" essa pessoa era o intérprete eslovaco. Mas como me era possível provar isto?

Pouco tempo depois, percebi que algo tinha mudado: recebi um convite oficial para me deslocar à Eslováquia. Era uma visita com algum risco, porque não se podia permitir que fosse aproveitada pelo regime como traduzindo um gesto que indiciasse qualquer fragilização da atitude crítica que prevalecia na Europa sobre o comportamento do regime. Insisti, por isso, em encontrar os principais partidos políticos de oposição, tendo visitado a sede de um deles e recebido dois outros responsáveis oposicionistas no hotel. Esta é uma prática que nunca agrada aos nossos anfitriões oficiais, mas coloquei-a como condição sine qua non para a realização da visita. E, para evitar declarações isoladas à imprensa, proferi uma conferência sobre o processo de integração num instituto dedicado aos estudos europeus, com uma surpreendente enchente e um animado debate.

Apenas um pormenor mais. No programa da visita, pedi que fosse incluído um encontro com o interlocutor que encontrara em Lisboa, para lhe apresentar cumprimentos. Não tinha disponibilidade, como eu imaginava. Ivan Gašparovič é hoje presidente da República da Eslováquia.

Várias vezes me tenho interrogado sobre a quantidade de confusões políticas que os intérpretes já devem ter provocado por esse mundo fora.

domingo, julho 08, 2012

Eclipse

Há qualquer coisa de trágico na saída de cena de um político que, de um dia para o outro, deixa de ser uma personagem mediática constante para se tornar uma figura distante do centro das atenções públicas. 

François Bayrou, o político centrista que, nas eleições presidenciais de 2007, havia obtido o apoio de quase um quinto do eleitorado francês, viu-se relegado para uma percentagem bem mais modesta no escrutínio deste ano e, após isso, não conseguiu sequer ser eleito deputado. Devo dizer que achei de uma nostálgica sobriedade a sua frase de que, agora, iria "visitar o país do silêncio".

Noutro registo, mais humorístico, um antigo ministro, Renaud Donnedieu de Varbes, deixou, há uns anos, uma excelente frase qualificadora desse apagar das luzes da ribalta (que deixo em francês, para melhor ser apreciada): "Passer de ministre à promeneur de son chien suppose un énorme travail sur soi-même".

sábado, julho 07, 2012

O senhor comandante

Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, há precisamente 30 anos, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu posto na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, grande parte deles expatriados por razões empresariais, por semanas ou meses, que atenuavam a sua solidão na leitura de alguns jornais (que não se vendiam localmente mas que me chegavam por mala diplomática, e que frequentemente lhes emprestava), na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que infelizmente perdi de vista desde então, era o Hélder Martins, funcionário da STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. Sou um completo incapaz para toda e qualquer espécie de jogos de cartas, mas, até à sueca, consigo "chegar". A única atividade lúdica alternativa - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - tinha-se esgotado, pelo que me decidi a entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando-me, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha falado, instantes antes, que me apetecia uma "Cuca", mas estranhei ser qualificado de "senhor comandante". Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu era diplomata na nossa Embaixada, mas não notei na cara dele nenhuma surpresa pelo título com que eu tinha sido brindado. Optei por não reagir.

No dia seguinte, no almoço no Trópico, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores entre nós, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". Rimo-nos um bom bocado, pelo que permanecia o mistério do "comandante". Mas ambos esquecemos o assunto.

Passou, talvez, um mês. Por diversas razões, deixei de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que me saudou, ao longe. No dia seguinte, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele. 

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há dias, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...". 

("For the record", que fique claro que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiariedade com a "colega"...)

Ainda há dias, ao viajar na TAP e ao ouvir, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, veio-me à memória que também "fui", um dia, "comandante" da companhia.

Maria José

A Maria José partiu há um ano, mas parece que nos faz falta há já muito mais tempo.

Tanto mar?

Leio no "Expresso" de hoje:

"Pedro Adão e Silva e João Catarino lançaram o livro "Tanto Mar", que partiu de um conjunto de textos publicados no Expresso".

Vou ler este livro com atenção, até porque, sei lá bem porquê!, o título diz-me, de forma interrogativa, qualquer coisa:



Imprensa de referência

Vi, há pouco, na televisão, um velho amigo de Portugal e dos portugueses, Xanana Gusmão, por ocasião de um ato eleitoral em Timor-Leste.

Recordei-me que, outubro de 1999, Xanana fez uma triunfal visita a Portugal. Com o país ainda a viver a ressaca da emoção que o mobilizara pela causa timorense, a chegada do líder histórico da Fretilin provocou uma onda de grande mobilização. A simpatia e a genuinidade de Xanana Gusmão fizeram o resto.

Nessa ocasião, foi-me pedido que, em representação do governo, me fosse despedir dele ao aeroporto militar de Figo Maduro, de onde partiria para um qualquer destino europeu, num Falcon na nossa Força Aérea. Vi que estava exausto, embora feliz, com o fraternal acolhimento que Portugal lhe proporcionara, em que pudera testemunhar a profunda sensibilização do povo português para com a questão timorense.

Saímos a pé do edifício da base aérea para o avião, situado a umas escassas centenas de metros. Ao longe, dei-me conta que um grupo de jornalistas, colocados junto a uma barreira, fazia sinais e gritava "Xanana", desejosos de poder obter as últimas palavras do visitante.

O avião estava já atrasado, o "slot" para a descolagem podia perder-se, como nos tinha dito o comandante da base. A primeira reação de Xanana foi dizer: "Vou já para o avião". Olhei os jornalistas e, apontando-os ao líder timorense, fui de opinião contrária: "Eu acho que devia dar-lhes umas curtas palavras. A imprensa portuguesa tem sido fantástica consigo". Xanana hesitou um segundo, mas acabou por seguir a minha sugestão, com os militares das Força Aérea, junto dos quais eu ficara, pouco contentes com o meu alvitre.

No dia seguinte, um bem informado jornal escrevia mais ou menos isto: "Contrariando abertamente a vontade do secretário de Estado português que o acompanhava, que procurou, sem êxito, dissuadi-lo de ir falar com os jornalistas, Xanana fez questão de prestar declarações à imprensa portuguesa".

Enfim, é o que se chama imprensa "de referência".

sexta-feira, julho 06, 2012

Os tempos e os poderes

Não há poder sem simbologia. E alguns sinais são, eles mesmos, a própria e deliberada expressão desse mesmo poder. 

Há uns anos, em fins de julho de 1999, teve lugar em Serajevo, na Bósnia-Herzegovina, a reunião de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Com as delegações instaladas, o presidente finlandês, Martti Ahtisaari, que dirigia a sessão, iniciava o seu discurso de introdução quando a sala foi surpreendida pela entrada isolada do presidente Bill Clinton. O líder americano dirigia-se, pausadamente, para o lugar que, na grande mesa quadrada, estava destinado aos EUA. Pelo caminho, foi-se entretendo a parar junto de alguns dentre os 50 presidentes e chefes de governos, saudando-os, deixando-lhes uma breve palavra e, com a acumulação desses gestos, foi provocando um movimento de imparável agitação, que concentrou as atenções coletivas. A face de Ahtisaari mostrava um evidente e compreensível desagrado com a estudada coreografia de Clinton, a ponto de se ver obrigado a suspender o seu discurso, até que o presidente americano finalmente sossegasse na sua cadeira. Ao nosso lado, o presidente francês, Jacques Chirac, assistia à cena e rumorava onomatopeias de óbvio incómodo pelo comportamento de alguém que habilmente "roubara a cena" aos poderes europeus presentes. 

Lembrei-me disto, esta manhã, durante a reunião dos "Amigos do Povo Sírio", que decorreu aqui em Paris. O presidente François Hollande, que abriu a reunião, iniciara já o seu discurso perante delegações de 102 países quando surgiu, mas neste caso num passo mais natural e sem quaisquer pausas, uma figura que se dirigiu ao centro de uma sala onde já não havia ninguém de pé, salvo o chefe de Estado francês, no seu podium. O discurso não foi interrompido, mas todos os olhares divergiram, por instantes, para a secretária de Estado Hillary Clinton, que logo se sentou, sem gestos dilatórios. A entrada da representante dos EUA ficou bem registada. E gravada ficou também, no subconsciente coletivo, esta evidente coreografia temporal dos poderes de facto neste mundo.

quinta-feira, julho 05, 2012

A pasta

"Ils sont venus, ils sont tous là", fazia lembrar a canção de Aznavour. Era a conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia, nesse mês de agosto de 1992, vai para 20 anos. À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos.

Era a Jugoslávia em desagregação que por ali se discutia, por esses dias. Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós". As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso. À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa. À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, era do tipo "de engenheiro" e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente ainda hoje me encanta. 

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!". Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim. 

quarta-feira, julho 04, 2012

Verbos irregulares

Há quase dez anos, naquela que era então uma das duas livraria inglesas de Viena (hoje mesmo, em visita à cidade, constatei que já só há uma), deparei com um livro intitulado "Portuguese irregular verbs". A minha vocação para um conhecimento renascentista do mundo não vai ao ponto de me levar a interessar por um tema tão gramaticalmente especializado como aquele que o título indiciava. Mas a curiosidade de bibliófilo foi mais forte. E dou hoje graças por isso.

O livro, de Alexander McCall Smith, relata a divertida história (conto de memória) de um filólogo alemão que, com um zelo notável, terá empreendido um estudo aprofundado sobre tão escaldante temática. Segundo a novela, a edição do livro, em que espelhava toda a sua sabedoria sobre o assunto, não se terá consagrado num êxito estrondoso, se nisso descontarmos a satisfação proporcionada ao seu próprio ego. O estimado professor lusófilo, de que o volume acolhe pormenores deliciosos de um seminário passado na Índia, e cujo grande objetivo de vida era ser agraciado com uma condecoração portuguesa, tinha como hábito procurar saber do destino das escassas centenas de exemplares da edição da sua obra-prima. E, por essa razão, sempre que se deslocava a casa de um amigo, procurava perceber o destaque dado nas respetivas estantes ao seu monumental e volumoso estudo, incontroverso referencial sobre a matéria no mundo gramatical da lusofonia. E algumas desilusões teve. Complexa foi, porém, a sua relação com uma namorada, dentista de profissão, a quem, como era natural, oferecera um exemplar dedicado da sua tão estimada obra. O único imponderável foi, contudo, o facto desse laço afetivo se ter entretanto desfeito, com a antiga afeição, por vingança, a decidir destinar a utilização do volume como apoio para o seu pé, no arranque de dentes aos clientes.

Será que este divertido livro teve uma edição portuguesa? Não faço a mínima ideia.

terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

segunda-feira, julho 02, 2012

Gabardines

Leio nos jornais que a família de Humphrey Bogart está a mover um processo à Burberry's pela utilização, tida por abusiva, da foto do ator com a lendária gabardine utilizada no filme no "Casablanca". Segundo se argui agora, afinal Bogart gostava mais dos modelos da Aquascutum. Vá-se lá saber quem tem razão. Devo dizer que, quanto a mim, não sou muito dado àqueles panejamentos do modelo, mas tenho uma imensa reverência pelo filme e pelo seu herói.

E não estou sozinho. Um dia, já há muitos anos, fui numa delegação a Marrocos. Já no regresso, enquanto atravessávamos a pista a pé, a caminho do avião, um dos membros da nossa delegação, um homem bem simpático, técnico superior de um ministério, que já não está entre nós, sacou subitamente de uma pasta de um chapéu, que, até então nunca o tínhamos visto utilizar, colocou-o na cabeça e pediu-me: "posso pedir-lhe para me tirar uma fotografia, com o nome do Aeroporto atrás?" E subiu a gola da gabardine para a pose...

Era de dia, não havia nevoeiro, ninguém por perto se assemelhava à Ingrid Bergman, os guardas marroquinos tinham fardas bem diferentes da do Claude Rains e não precisávamos de visto para entrar em Lisboa. Mas o nosso homem ficou com a sua foto. No avião, sorridente, confiou-me: "Trazia esta fisgada há vários anos..."

sábado, junho 30, 2012

Pousar em Elvas?

As fortificações e o centro histórico de Elvas foram ontem designados como "património mundial", numa reunião da UNESCO, que está a ter lugar em São Petersburgo. A saudável teimosia da autarquia local, ao longo de vários anos, foi o fator propulsor deste êxito, que confere a Elvas, a partir de agora, uma visibilidade internacional bem diferente.

Desta notoriedade vai, com toda a certeza, resultar para a cidade uma muito maior movimentação na área do turismo. Ironicamente, vale a pena perguntar se será por essa razão que as Pousadas de Portugal decidiram, há tempos, fechar a mais antiga de todas as Pousadas portuguesas - a Pousada de Santa Luzia, em Elvas -, que, nomeadamente, ficou conhecida como um dos marcos da restauração nacional? 

A propósito: será que as autoridades turísticas portuguesas já fizeram a conta às unidades da rede das Pousadas de Portugal foram alienadas (ou "franchisadas") desde que o grupo Pestana assumiu posição proeminente e, pelos vistos, preeminente na empresa? Custa-me muito ter de tratar, neste registo, um grupo hoteleiro de prestigio nacional, que, em particular, desenvolveu um notável trabalho no Brasil, e que então tive o maior gosto em apoiar. Mas, como cidadão "amigo das Pousadas", vejo-me obrigado a destacar a sua evidente responsabilidade na triste liquidação que tem vindo a ser feita de um dos mais ricos patrimónios histórico-turísticos que o nosso país possuía. Desde 1942. Até quando? 

sexta-feira, junho 29, 2012

Crise castrense

Na ausência em férias do embaixador, eu estava a chefiar interinamente aquela embaixada, onde chegara apenas algumas semanas antes. Mal conhecia os cantos à casa e, muito menos, os hábitos do posto, que sempre variam alguma coisa, dependendo das culturas funcionais implantadas pelas chefias. 

O telefonema do adido militar para minha casa, bem cedo na manhã, prenunciava coisa grave. A "voz de caso" com que me perguntou se, logo que eu chegasse à Embaixada, eu podia recebê-lo, alertou-me.

Esses eram os tempos em que algumas temáticas afro-lusitanas nos mobilizavam muito, em que a questão timorense estava no auge, em que alguns delicados assuntos relacionados com o futuro da NATO estavam em discussão, em que a Europa se assustava com a surpresa balcânica e, enfim, em que as dinâmicas da "intelligence" clássica ainda andavam muito na cabeça das pessoas. Além disso, tinha havido mudanças fortes nas estruturas de defesa daquele país onde trabalhávamos, que eu me esforçava por decifrar e que era importante seguir. 

O trabalho dos adidos militares (em rigor, deve dizer-se "adidos de defesa") pode ser de importância para o funcionamento das missões diplomáticas, desde que seja bem executado e articulado com a chefia da missão. Em geral, os adidos dispõem de uma "network" de relações muito própria, que se auto-alimenta em matéria de informação. Vivem centrados em agendas que nem sempre coincidem com as do embaixador, mas tal não é necessariamente uma coisa negativa, porque isso lhes permite focalizar a atenção certas áreas que não estão na nossa ordem de imediata de prioridades. Por outro lado, pela forma corporativa como se articulam com os seus pares locais, têm frequentemente facilidade de "checkar" algumas informações que, aos diplomatas, pode ser mais delicado abordar através dos seus canais habituais. Talvez por ter feito serviço militar, e por julgar perceber alguma idiossincrasia da casta, sempre tive excelente relação com os profissionais desse setor com que trabalhei, independentemente de não serem idênticos os contributos que cada um deu para o meu trabalho. Mas adiante.

Chegado à embaixada, pedi ao adido para vir ver-me. Chegou com um largo dossiê e, com ar grave, disse-me:

- Agradeço a prontidão com que me recebeu e, desde já, queria pedir-lhe se, amanhã de manhã, posso fazer, na sala de reuniões da embaixada, uma reunião. São aí umas 40 pessoas. É que nem sabe o que nos "caiu em cima"...

Não, não sabia, nem conseguia supor a razão de tão urgente reunião. Mas, claro, logo disse que a sala de reuniões estava à disposição, embora fosse necessário reforçar o lote de cadeiras.

Resolvida a dimensão operacional da logística, o adido passou à parte substancial, à justificação da razão que motivava tão largo e urgente dispositivo de trabalho.

- Fomos apanhados de surpresa. Não sei se sabe, mas, todos os anos, uma das embaixadas onde há adidos militares tem a seu cargo a organização de um baile de gala, num dos bons hotéis da cidade. Este ano, era a vez da Polónia. E não é que o meu colega polaco me telefonou ontem, dizendo que, por um inesperado compromisso, não está em condições de poder assegurar a tarefa?! Ora, como é por ordem alfabética, a tarefa passou para nós. E só temos três semanas! Vou convocar já uma reunião de emergência, claro! Imagine a imensa responsabilidade que nos caiu em cima!

Eu imaginava, procurando conter a imensa gargalhada que tinha vontade de soltar, perante o fácies fechado do nosso homem, visivelmente esmagado pelo dever acrescido que lhe havia aterrado nos ombros. E não pude deixar de lembrar-me, na ocasião, de alguns textos de Lawrence Durrell, e, em especial, da imagem, que sempre vive comigo, da admirável figura do adido militar francês, no "Les Ambassades", do Roger Peyrefitte, cuja leitura vivamente recomendo a quem gostar de conhecer os bastidores divertidos da vida nas embaixadas, lugares onde a realidade, muitas vezes, ultrapassa a melhor ficção. Podem crer!

Ah! e para a história, diga-se que, mais tarde, me chegou, de fonte limpa, que o baile terá corrido muito bem.

Património

A igreja da Natividade, em Belém, foi inscrita, há minutos, na lista do Património da UNESCO, através de um procedimento de urgência, a solicitação do mais novo membro da organização, a Palestina. A sala da Duma de São Petersburgo desfez-se em aplausos - embora, com certeza, menos retumbantes do que aqueles que Lenine por aqui, neste mesmo local, arrancou, há umas boas décadas atrás.

No minuto seguinte, foi a vez do Monte Carmelo ser inscrito na lista, sob proposta de Israel. A sala não foi tão entusiasta, mas não deixou de aclamar o novo bem agora proclamado no seu valor universal. Salomão, com a sua justiça, não faria melhor.

As organizações internacionais são isto mesmo: espaços onde, mais do que o equilíbrio, se procura e pratica algum equilibrismo. Mas seria errado pensar que este tipo de liturgias e coreografias é, em si mesmo, negativo. Estes compromissos, às vezes cínicos, outras vezes oportunistas, são a chave da sobrevivência do mundo multilateral, refletindo as suas limitações mas, ao mesmo tempo, consagrando os pequenos passos que fazem avançar esse mundo, que muito tem feito pela paz e pelo entendimento entre os povos.

quinta-feira, junho 28, 2012

Álvaro Vasconcelos

Até há poucos dias, Álvaro de Vasconcelos foi, em Paris, diretor do Institute for Security Studies, uma estrutura promotora de estudos e reflexões que, a meu ver, a União Europeia deveria e poderia ter utilizado bem mais e melhor. Alguns dos trabalhos produzidos por este instituto têm uma qualidade e uma profundidade que mereceriam um melhor tratamento e, em especial, que fossem tidos em conta no desenho de algumas das políticas da União na sua dimensão externa. O trabalho desenvolvido pelo Álvaro de Vasconcelos e pela sua equipa, de um modo discreto mas bem eficaz, deve merecer o apreço de todos quantos se preocupam com as relações externas europeias, nas quais assenta muito do seu futuro como potência à escala global. E, registe-se, o seu papel à frente do ISS prestigiou muito Portugal.

Conheço o Álvaro Vasconcelos há muitos anos, desde que ele criou, em Portugal, o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), um importante "think tank" de reflexão estratégica. Com ele, e com as pessoas de grande qualidade que soube mobilizar em torno daquele instituto português, participei em muitos debates, em Portugal e no estrangeiro, em especial centrados sobre o futuro desejável para as instituições europeias e as suas dimensões externas. Ironicamente, lembro-me de ter assumido, nesses anos 90, posições bem mais "recuadas" do que as que o Álvaro, e muitos dos seus amigos, então defendíam, em especial quanto à questão do "federalismo", tema em torno do qual, curiosamente, ambos evoluimos, embora em sentidos diferentes.

Com o Álvaro, preparei o único livro editado em inglês que faz um completa cobertura sobre a postura europeia de Portugal - "Portugal, a European story" -, onde se conta muita dessa grande aventura da nossa contemporaneidade. E juntos estivemos, anos depois, num seminário sobre Segurança, no sul do Egito, num tempo em que se não sonhava ainda com as "primaveras árabes", tema de um livro que o Álvaro publicou recentemente e que muito recomendo - "Listening to unfamiliar voices: the Arab democratic wave".

Bolas!

Há países com azar? Há países com sorte? Nós temos azar e os espanhóis têm sorte? Isso só é assim na aparência. Tem azar quem não tem sorte e ter sorte é uma coisa que dá muito trabalho. As bolas não entraram, quando deviam ter entrado? Pois é, a isso chama-se futebol. Depende e não depende de nós.

Pronto, já passou! Vamos agora ao jogo do défice e da dívida. Esse é o "euro" que não quero perder.

quarta-feira, junho 27, 2012

Títulos

Faço parte, desde há semanas, de uma comissão, empossada pelo primeiro-ministro português, que tem como mandato proceder à revisão do Conceito estratégico de Defesa nacional. Preside a este grupo o professor Luís Fontoura, uma figura que passou pela política e pelo mundo empresarial, tendo sido das pessoas que, de forma mais determinada, deu um "abanão" positivo à nossa política de promoção das exportações. Homem interessado, desde há muito, pelas questões internacionais, teve nessa área um singular percurso académico, apoiado em várias reflexões publicadas. Por algum tempo, foi secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Na abertura da primeira reunião da comissão, Luís Fontoura referiu que o nosso labor seria necessariamente discreto, que não trabalhávamos para obter títulos nos jornais. Ao ouvir a palavra "títulos", na sua boca, fez-se-me luz e lembrei-me do primeiro dia em que o conheci.

Na segunda quinzena de 1973, durante o meu serviço militar, integrei uma visita de estudo ao jornal "A Capital", que se situava então nuns andares da avenida Joaquim António de Aguiar. Desse grupo de garbosos militares faziam parte António Franco, Jaime Nogueira Pinto, Manuel Cavaleiro Brandão e outros seis "soldados-cadetes" que, dentre os cerca de 500 que, em março desse ano, tinham feito a sua incorporação na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, haviam sido selecionados para serem formados como futuros oficiais de Ação Psicológica.

A Ação Psicológica era uma das mais interessantes especialidades militares, com disciplinas de Sociologia, Psicologia, Técnicas de propaganda e contra-propaganda, etc. Visitar um jornal estava, assim, no âmbito normal desse curso. E, como jornal, "A Capital" era, à época, um caso singular. Recriado em 1967, num registo de compita com o "Diário de Lisboa", perdera a matriz original e fizera, entretanto, um percurso diferente, distinguindo-se por ser, em Portugal, o primeiro jornal a adotar um estilo gráfico mais agressivo, próximo do de alguns jornais tablóides britânicos. Ao lado dos outros diários lisboetas da tarde, e do "Diário do Norte", do Porto, "A Capital" destacava-se claramente nesse domínio.

Recordo que fomos recebidos por Luis Fontoura, que presidia ao conselho de administração do jornal, e que tinha consigo, como colaborador direto, um grande amigo meu, já desaparecido, o Álvaro Magalhães dos Santos. Apresentou-nos as grandes linhas em que se fundamentava a política do jornal e, à volta disso, lançou-se alguma discussão. A certo ponto, alguém perguntou a Luís Fontoura o que é que ele considerava ser o fator distintivo do jornal, face aos outros similares - o "Diário de Lisboa", o "Diário Popular" e o "República". Sem enveredar pela questão ideológica, talvez subjacente à pergunta, Luís Fontoura retorquiu: "Qual é o único jornal português cujos títulos alguém consegue ler do outro lado da rua? Só "A Capital"."

Era verdade. "A Capital" iniciara o hábito dos títulos fortes, com escassas palavras, que "agarravam" os leitores. O jornal viria a durar mais do que o "República", do que o "Popular " e do que o "Lisboa", mas, ainda que sendo o último sobrevivente dos jornais da tarde, não conseguiu resistir à concorrência noticiosa das rádios e das televisões. Poucos meses depois daquela nossa visita, como a imagem mostra, faria, aliás, um título cuja hábil, prudente e distanciada construção é, em si mesmo, um bom tema de "ação psicológica"...     

Júlio Montalvão Machado

Júlio Montalvão Machado, de cuja morte me avisaram há pouco, era um homem amável e sereno, sempre com um sorriso de pessoa com quem a vida estava bem. O seu compromisso com a liberdade tornou-o um perseguido durante o Estado Novo, período em que foi impedido de exercer, como médico, quaisquer funções públicas. Conhecemo-nos em 1969, nas lutas oposicionistas contra o Estado Novo, na campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional. Recordo-me bem de me ter dito, quando lhe fui apresentado: "Tenho grande gosto em conhecê-lo. O seu avô foi um dos maiores amigos do meu pai". Curiosamente, nessa campanha, acabámos por ter algumas divergências doutrinárias, por diferentes perspetivas sobre a questão colonial. Onde isso tudo vai... 

Depois do 25 de abril, cruzámo-nos muitas vezes e sempre pude apreciar nele o homem de diálogo e o espírito culto que o transformava numa das grandes e respeitadas figuras de Chaves e em todo o distrito de Vila Real - cidade onde, aliás, tal como eu, nascera.

Há algum tempo, os amigos comuns António Ramos e Alexandre Chaves organizaram com ele um agradável jantar no Forte de S. Francisco, onde trocámos histórias, nesse jeito tão transmontano de perder as horas da noite, ganhando-as na conversa amena. Foi a última vez que conversámos. E é com muita pena que agora o vejo desaparecer. 

terça-feira, junho 26, 2012

De Leninegrado a São Petersburgo

Há mais de 30 anos, ao tempo em que vivia em Oslo, tive a curiosidade de visitar a União Soviética. Achei que os preços das viagens eram surpreendentemente convidativos. Na véspera da minha partida, falei do assunto a um colega norueguês e logo fiquei ciente daquilo em que me metera: a agência de viagens que eu escolhera estava ligada ao Partido Comunista norueguês e, se calhar, fazia "dumping" ideológico. De facto, no grupo em que, durante duas semanas, estive incluído, muitos foram os que, logo que chegados a Leninegrado, colocaram na lapela uma imagem de Lénine...

A visita acabou por ser muito interessante, feita também por Moscovo e por Ialta, comigo sempre a tentar, para desespero da guia norueguesa, fugir ao espartilho dos programas e reagir à irracionalidade do condicionamento de movimentos. Guardo para sempre algumas recordações impressivas desse país, com uma vida que, à época, pressenti misteriosa, cinzenta e triste.

Hoje, por razões profissionais, estou em São Petersburgo - mas já não em Leninegrado. Para além do nome, muita coisa mudou por aqui, como se sabe. Mas, confesso, tentarei não deixar de revisitar, em homenagem àquilo que é a memória sentimental de uma certa geração, a estação da Finlândia, o Smolny, o Aurora e, claro, o palácio de Inverno, símbolos fortes de uma Revolução de outubro, que em dez dias abalou o mundo, e que, por sinal, foi em novembro.

segunda-feira, junho 25, 2012

Memórias de além muro

Haviam já passado muitos anos desde que aquele diplomata português saíra da capital de um certo país do leste europeu, onde permanecera algum tempo, nos anos 80 do século passado. A vida levara-o, entretanto, por mais de uma década consecutiva, por outras partes do mundo.

Uma sapateira, adquirida numa casa de velharias nessa cidade, seguira, entretanto, para Lisboa, com destino a um armazém onde se amontoavam outras tralhas, compradas por aqui e por ali, coisas que os diplomatas vão acumulando pelos apeadeiros da sua carreira e de que, no final, já mal se lembram.

No seu regresso definitivo a Lisboa, já a caminho da reforma, o diplomata reencontrou a velha sapateira. Veio-lhe então à memória a negociação tida com o vendedor, o inevitável regateio do preço, a competição virtual com um colega egípcio que, de acordo com o homem, também seria candidato à aquisição. Olhando agora para a sapateira, perguntava-se por que diabo teimara em comprar aquele mono, que não lhe servia para nada. A certa altura, ao revolvê-lo, do fundo de uma prateleira descolou-se uma pequena peça retangular, escura e achatada, que lá devia estar, desde há muitos anos, desde a compra da sapateira. Observou, intrigado, o minúsculo objeto, do qual que destacava um fio metálico. O filho, dado às coisas técnicas, não teve dúvidas: era um microfone.

Apesar de todas as escutas, o muro caiu. 

Portugal no mundo

Um dos aspetos curiosos da vida como diplomata é observar o modo como Portugal é visto pelos outros, que imagem de nós está criada pelo mundo, o que ficou da nossa História em países cujo passado cruzámos. 

Há dias, ao efetuar uma diligência junto de um colega estrangeiro, e para além da eventual racionalidade daquilo que era a nossa pretensão, fui confrontado com a seguinte e espontânea reação: "Vocês podem sempre contar conosco! Eu nasci ao lado de uma fortaleza construída pelos portugueses. Desde criança que me habituei a admirar a vossa aventura pelo mundo".

Esta é uma riqueza não se mede em cifras do PIB e que, seguramente, vai durar muito para além da nossa dívida.

domingo, junho 24, 2012

O Douro e a UNESCO

Ser representante de Portugal junto da UNESCO, em acumulação com as funções que desempenho em França, trouxe-me a responsabilidade acrescida de ter de cuidar, na linha da frente, de um conjunto de questões que ligam Portugal a diversas áreas de competência da organização. Devo dizer que, nestes meses, embora tenha tido de me "desmultiplicar" para poder atender a todo esse conjunto de tarefas, aprendi muito sobre mais esta dimensão multilateral da nossa política externa. E, devo dizer, estou a gostar da experiência.

Como é sabido, esta semana, em São Petersburgo, o Comité do Património da UNESCO debaterá uma resolução, preparada pelas instâncias próprias da organização, que apela à suspensão imediata das obras de construção de uma barragem perto da foz do rio Tua, por considerar que essa obra coloca em risco o equilíbrio global do Alto Douro Vinhateiro, como conjunto considerado património mundial.

Alguns países, organizações não-governamentais e diversas outras vozes, nomeadamente na imprensa, estão de acordo com os termos dessa resolução. O Estado português considera que, sendo embora essencial garantir a preservação do estatuto internacional atribuído ao Alto Douro Vinhateiro, tal não é incompatível com a edificação de uma barragem no rio Tua. E que, por essa razão, não se justifica, sem uma análise atenta a um conjunto de medidas que entretanto foram tomadas e outras que estão em análise, que tais obras sejam suspensas de imediato. 

Não deixa de ser uma curiosa coincidência que o debate desta questão esteja a ser titulado, junto da UNESCO e em nome de Portugal, por alguém que nasceu a escassas dezenas de quilómetros do Douro e que hoje preside ao Conselho geral da Universidade da região. E que, porventura, gosta muito mais do Douro do que muitos dentre quantos, com outras legitimidades, se têm desdobrado em declarações inflamadas sobre o tema.

sábado, junho 23, 2012

A política interna e a Europa

Acaba de ser anunciado que, entre os dois maiores partidos políticos portugueses, não foi possível chegar a um consenso sobre temáticas europeias, com vista às grandes decisões que pode vir a ser necessário tomar, em nome do país, nesse plano, nos próximos dias. Não conheço o assunto em pormenor, mas posso imaginar a imensa complexidade desse esforço comum.

No passado, estive ligado a exercícios similares, alguns com êxito, outros com desfecho menos feliz. Convém dizer que, nas últimas décadas, as relações entre as duas maiores formações políticas portuguesas - ou melhor, entre os governos e o principal partido da oposição - raramente dispensaram a existência de canais discretos de comunicação, como é próprio dos regimes democráticos com maturidade. Às vezes, as tensões políticas internas tornaram esse diálogo mais difícil e menos constante, mas, que eu saiba, nunca foram quebrados, por completo, tais contactos. E isso tem todo o sentido: há mais país, nomeadamente na ordem internacional, para além da inevitável guerrilha política interna.

Em tempos em que tive algumas responsabilidades governativas nessa área, e por instruções expressas do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros de então, esses canais de comunicação estiveram sempre abertos. Mas a vida política faz-se de altos-e-baixos, como a historieta que vou contar demonstra. 

Um dia, a propósito de uma negociação europeia de grande importância, o primeiro-ministro e o líder da oposição reuniram, acolitados por mim e pela minha "sombra" nesse partido da oposição. Tratava-se de tentar apresentar, a público, uma posição comum, a montante de um Conselho europeu. Isso reforçaria o governo no plano dessa negociação e daria ao principal partido da oposição uma imagem de responsabilidade de Estado, naquele que era então um grande dossiê externo. 

A reunião em S. Bento correu bem. Tínhamo-la preparado antes com algum cuidado e, depois de algum tempo de debate, assentou-se num conjunto de pontos comuns. As questões na agenda europeia eram então relativamente consensuais e os interesses portugueses a defender eram claros. Fiquei encarregado de escrever um projeto do texto que se pretendia divulgar, que teria cerca de duas páginas. Pelo que conhecia das preocupações da oposição, não tinha a menor dúvida de que seria capaz de elaborar um documento suscetível de ser assinado pelos dois lados. Em diplomacia, as palavras, se bem usadas, podem servir, simultaneamente, para destacar as convergências e para esconder, de forma elegante, as inevitáveis divergências. 

Escrevi o texto num avião em que fui, nessa tarde, para Bruxelas, onde tinha uma reunião na manhã do dia seguinte. Chegado ao hotel, enviei-o por fax à pessoa que era minha contraparte na oposição. Cerca da meia-noite, ela confirmou-me, como eu esperava, que, por si, não tinha objeções. Restava passá-lo ao seu "chefe".  No dia seguinte, a meio da manhã, ainda antes do meu regresso a Lisboa, recebi a indicação de que o texto podia merecer o acordo da oposição, "em termos gerais". Alguma experiência alertou-me logo para esta reticência.

Entretanto, pela parte do governo, as coisas avançaram rapidamente. Dois ministros leram o texto, por indicação do primeiro-ministro, e mostraram-se positivos face ao respetivo conteúdo. O chefe do executivo considerava, no entanto, essencial obter a concordância prévia do ministro dos Negócios Estrangeiros, que andava algures pelo mundo. Horas depois, veio também a luz verde deste. Marcou-se um encontro com a oposição, no formato do dia anterior, em S. Bento, para cerca da meia-noite.

Na política interna, durante esse mesmo dia, as coisas haviam estado muito agitadas. Por virtude de um facto político de grande expressão mediática, um membro do governo viu-se envolvido numa imensa polémica, com o pedido da generalidade da oposição para a sua demissão. A tarde, na Assembleia da República, fora um "inferno". As declarações do líder da oposição contra o governo subiam de tom. Os telejornais da noite, que antecederam a reunião em S. Bento, foram palco de tomadas de posição muito fortes, de ambos os lados. A crispação política estava no auge.

Quando cheguei a S. Bento, não tive tempo para falar com o primeiro-ministro, antes da reunião com a oposição. À entrada do edifício, a expressão facial da pessoa que era minha contraparte do outro lado do espelho político não prenunciava nada de bom. Vi que alguma coisa tinha mudado, relativamente ao ambiente do dia anterior.

O líder da oposição também entrou tenso. Sentámo-nos. Começou por dizer que tinha lido o texto, que "genericamente" lhe parecia bem, mas que, depois de ponderar, tinha várias alterações a propor. Mesmo à distância, pude ver que havia, no papel que tinha na mão, uma imensidão de anotações manuscritas. Ia ser bonito...

Na cara do primeiro-ministro, notei uma grande serenidade. E logo perguntou: "Se não quiser, não fazemos texto nenhum. Desta conversa pode resultar um compromisso sobre certos pontos, que não precisa de ser anunciado. Basta-me a sua palavra". Pareceu-me que o líder da oposição deu um suspiro de alívio. E, desde logo, apressou-se a concordar. "Então, esquecemos o documento e passemos adiante", disse o primeiro ministro. E o resto da reunião foi rápido, relembrando os pontos comuns que tinham sido abordados no dia anterior. Para quem, como eu, tinha perdido horas a tratar do texto e da sua afinação, era uma desilusão, mas, como costumava dizer esse primeiro-ministro, "é a vida!". Espantou-me, contudo, a rápida cedência do chefe do governo, sem sequer se ter dado ao trabalho de ouvir as divergências que a oposição teria para sublinhar e sobre as quais, até hoje, sempre fiquei curioso.

Quando as duas figuras da oposição saíram da sala, não me contive e perguntei ao primeiro-ministro a razão por que tinha dispensado o documento com tanta prestreza. A sua resposta foi clara: "Você acha que, depois do governo ter sido insultado durante todo o dia, em tudo quanto foi rádio e televisão, o meu partido me perdoaria que, ao fim da noite, eu anunciasse um entendimento, fosse sobre o que fosse, com o líder da oposição?". Fiquei a pensar que, de forma simétrica, deveria ter sido esse também o pensamento deste último. A vida política é assim mesmo.  

sexta-feira, junho 22, 2012

Camarate

No dia 4 de dezembro de 1980, eu jantava na "Farmácia Campos", em Matosinhos, quando alguém entrou e encostando-se ao balcão, disse alto, ouvido por toda a sala: "Morreu o Sá Carneiro. O avião em que vinha para o Porto caiu". Alguns dos presentes levantaram-se e pediram para se ligar a rádio. Era verdade.

Estávamos a escassas horas das eleições presidenciais portuguesas, em que Soares Carneiro defrontaria Ramalho Eanes, na sua tentativa de reeleição. O país estava fortemente polarizado entre as duas candidaturas. Nessa noite, na televisão, a tese do acidente prevaleceu, na voz de praticamente todos quantos se pronunciaram. Num dos dias seguintes, a (única) televisão fez do funeral de Francisco de Sá Carneiro um lamentável e vergonhoso espetáculo. Portugal nunca poderá orgulhar-se desses tristes dias de desbragada manipulação política.

Depois, começaram as dúvidas. Acidente ou atentado? Por mim, pouco atreito às teses da conspiração, e muito convicto de que a teoria do atentado era uma mera arma política de arremesso, acreditei piamente na hipótese do acidente. E o facto, entretanto provado à saciedade, de que Sá Carneiro só se havia decidido, no último momento, pela viagem no avião sinistrado mais me reforçou a convicção de que a ideia do atentado mais não era do que um mero expediente para vender uma versão politicamente "biaisée", como por aqui se diz. E fui desqualificando e ridicularizando, durante muitos anos, a tese do atentado.

Arquivei assim "Camarate", nome pelo qual o assunto ficou para a história, na prateleira das questões políticas que já tinha por resolvidas. Um dia, porém, um episódico antigo colega de governo, o advogado Ricardo Sá Fernandes, publicou um "pavé" sobre o assunto. O qual, segundo ouvira dizer, privilegiava a tese do atentado. Fiquei curioso. Tinha optado, quase em definitivo, por deixar de ler sobre Camarate. Os escritos que conhecia, quase sempre cheios de ódio e de enviesamento político, incitavam-me a isso. Mas, já nem sei bem porquê, decidi-me a ler o livro de Sá Fernandes, Avancei por ele dentro muito cético, bem de "pé-atrás". Era um livro imenso. Em duas noites, li-o. E, confesso, as dúvidas colocaram-se-me, em força. Será que, no fim de contas, teria sido atentado? Seria Adelino Amaro da Costa o alvo?

O parlamento português foi entretanto constituindo sucessivas "comissões parlamentares de inquérito", umas vezes dominadas pela direita, outras vezes pela esquerda. Sem surpresas, nesse balançar opinativo, por entre testemunhos de diferente credibilidade, muito para alimento dos tablóides, tais "comissões" iam concluindo, umas vezes pela hipótese do atentado, outras pela do acidente. Com o tempo, setores da esquerda juntaram-se à primeira das hipóteses, credibilizando-a um pouco mais.

Noutro patamar, a justiça foi também caminhando sobre o assunto, ora seduzida pelo mediatismo e pelo espetáculo, ora presa ao formalismo. Em todo o caso, as conclusões a que chegou, sempre prenhes de incidentes e das inevitáveis prescrições, foram pouco mais do que nenhumas. Dava a sensação de ficar entretida entre as fantasias de José Esteves e os mistérios de Lee Rodrigues, registando, pelo meio, algumas gratuitas insinuações, sem fundamento sólido comprovado, sobre figuras da nossa vida pública. E, claro, os processos não chegaram a nenhuma conclusão, ficando a aguardar "melhor prova". 32 anos depois?

Mas a que vem isto, aqui e agora? É muito simples: estará em curso, ao que leio, a constituição da 10ª (!!!) "comissão parlamentar de inquérito" sobre o "desastre" de Camarate ("desastre" ou "tragédia" é o refúgio lexical de quantos não têm certezas sobre o assunto).

Como dizem os brasileiros: dá para acreditar?

quinta-feira, junho 21, 2012

Portugal em Paris

Acaso seria "bonito" ver o embaixador de Portugal, Campos Elísios abaixo, buzinando em uníssono com dezenas de automóveis, cheios de portugueses com bandeiras e cachecóis, a comemorar a vitória de Portugal sobre a República Checa?

De facto, era capaz de não ser. Mas foi...

Cultura geral

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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.

O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.

Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).

A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!

Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:

- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.

- A França, talvez.

- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?

(Pausa longa)

- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!

- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?

- Talvez da Inglaterra... 

(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).

- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?

- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!

Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.

quarta-feira, junho 20, 2012

Grécia

Na história política grega, uma aliança governamental entre o partido conservador Nova Democracia e os socialistas no PASOK é um caso inédito. As raízes profundas de ambas as formações partidárias apontam para direções bem opostas, fruto de linhagens familiares próprias, de clientelas divididas e de outros fatores de "balcanização" em que a sociedade grega é useira. Só uma ameaça exterior (como será a da imediata bancarrota ou seria a da Turquia) terá levado a este quase milagre político, que se anuncia muito conjuntural.

Em Portugal, a experiência do Bloco Central (1983/1985), uma coligação governamental entre os dois maiores partidos que a democracia havia feito emergir uma década antes, acabou por se revelar uma solução positiva para garantir uma expressão de vontade política maioritária, capaz de enfrentar uma situação de grave emergência nacional.

A prazo, sabe-se que os modelos de "unidade nacional" têm os seus limites, em particular temporais, porque juntam "água e azeite", porque são contra-natura face à normal canalização individualizada de diferente projetos políticos e, muito em especial, porque têm como inevitável consequência fazer crescer as oposições que deles ficam fora, as quais sempre aproveitam para federar o descontentamento que a implementação de políticas impopulares sempre gera.

segunda-feira, junho 18, 2012

Ironias

Há ironias que só o destino sabe desenhar. Ver a Grécia a defrontar a Alemanha no Euro (com todos os trocadilhos a que isso vai levar) é uma dessas deliciosas ocasiões.

No que nos toca, aconteceu o que já estava nas cartas: fazendo o trabalho a que nos tínhamos comprometido, poderíamos acabar por ser ajudados pela Alemanha...

domingo, junho 17, 2012

As Europas

Hoje, há eleições legislativas em França e na Grécia. Se, nas primeiras, poucas incertezas há quando ao respetivo desfecho e às suas consequências em termos de orientação política do país, já ninguém tem dúvidas que, do que emergir das segundas, resultarão consequências muito importantes, e imprevisíveis, não apenas para a Grécia mas igualmente para todo o resto da Europa comunitária.

Uma das grandes fragilidades do projeto europeu continua a ser a sua dependência do curso da História em cada um dos países que o integram, dos diferentes calendários eleitorais, da força muito diversa dos governos que resultam desses mesmos processos internos, para além das naturais divergências entre os programas políticos sufragados pelos votantes nacionais, mobilizados por agendas de preocupações frequentemente muito afastadas entre si. Dir-se-á que não há muito que se possa fazer para obviar a isto: cada país tem a sua tradição constitucional própria, nalguns casos resultante de processos políticos bem anteriores à criação das próprias instituições europeias. Estas, aliás, quando foram instituídas, estavam muito longe de ter uma ambição, em termos de projeto político e económico, como aquela que marca a União Europeia de hoje. E, salvo em pormenores, as ordens constitucionais nacionais pouco se alteraram, por virtude da pertença ao projeto continental.

Desde há muito, todos temos vindo a dizer que a Europa deve aprender a viver com a sua diversidade, que é, indiscutivelmente, a sua grande riqueza. Mas se é verdade que os países não estão preparados para ceder no essencial das suas tradições constitucionais - e sendo isso verdade para um, sê-lo-á para todos -, deixando-se marcar por uma espécie de "template" europeu, criado em torno dos seus tratados, também não deixa de ser evidente que, cada vez mais, se torna difícil tomar decisões importantes no seio dessa mesma diversidade.

Que se há-de fazer? Ninguém sabe e, por isso, vamos andando, um pouco numa "navegação à vista", que dá aos cidadãos uma imagem de uma Europa à deriva, zigzagueando num insolúvel labirinto, imagem que naturalmente também os não mobiliza para entregarem ao projeto europeu o essencial do seu destino.

Isto não está fácil! 

sábado, junho 16, 2012

A nova emigração

Foi para mim muito interessante, nesta manhã de sábado, participar no debate organizado no Consulado-Geral, pela Santa Casa da Misericórdia de Paris, sobre os novos fluxos migratórios portugueses para França. Entre outros, ouvimos testemunhos de cidadãos que procuraram recentemente este país como destino de vida, de empresários que têm acolhidos alguns compatriotas, de dirigentes associativos e sindicais com experiência de casos concretos, bem como de responsáveis de apoio social na estrutura consular.

De todas essas intervenções começa a resultar uma imagem mais clara dessa realidade complexa, marcada por uma nova tipologia migratória, feita, em geral de pessoas mais qualificadas academicamente e que, talvez por essa razão, denotam uma maior dificuldade em se adaptarem às ofertas de emprego disponíveis, situadas muitas vezes abaixo das suas expetativas profissionais.

Também se falou da situação social específica de Portugal, da crise europeia, dos frequentes atos de solidariedade, da exploração oportunista de pessoas em dificuldade por empresários desonestos, dos problemas de comunicação e de uma multiplicidade de outras realidades. Evidente ficou a necessidade de um grande esforço de informação aos potenciais ou novos migrantes dos riscos que têm que ter em conta, mas igualmente dos direitos que lhes assistem e dos recursos que lhes estão disponíveis.

Na intervenção com que concluí uma das sessões, deixei clara a minha perspetiva de que a emigração por motivos económicos é sempre trágica, porque não é mais do que a constatação da incapacidade do país de proporcionar condições de vida decente a quem nele nasceu. O normal é um cidadão poder realizar-se, em pleno, sem ter de sair do seu país. Às vezes, fica a impressão de que os portugueses têm uma espécie de tropismo identitário para emigrarem, que isso já faz parte da sua natureza. Não nos iludamos e não confundamos os impulsos de aventura e de legítima ambição pessoal ou profissional com as rotas tristes da necessidade e da miséria. O que é uma evidência indiscutível é o facto de que, nos últimos dois séculos, o nosso país foi incapaz de sustentar um processo de progresso interno que desse oportunidade a muitos dos nossos compatriotas de, se assim o quisessem, se realizarem plenamente no seu seio. E, por isso, muitos foram obrigados a saír, por vezes em condições dramáticas, com percursos de vida frequentemente heróicos, dos quais o país se deve orgulhar muito, por tudo quanto esses compatriotas conseguiram fazer por si próprios e pela imagem de Portugal. Mas que, simultaneamente, Portugal também se deve envergonhar bastante, por aquilo que infelizmente lhes não soube proporcionar. Por muito que isso possa não ajudar ao nosso ego, Portugal foi e continua a ser, desde há muito, o país mais pobre da Europa ocidental. E, enquanto isso assim acontecer e não conseguirmos gerar, para todos, soluções decentes de vida, dentro das nossas fronteiras, uma parte de Portugal andará sempre numa viagem forçada pelo mundo.

sexta-feira, junho 15, 2012

Garaudy

Quando, num final de tarde de 1969, entrei na Moraes, o único cliente presente naquela livraria lisboeta, que falava com o livreiro, voltou-se e encarou-me ostensivamente, com cara de poucos amigos, como que incomodado pela minha presença. Eu conhecia-o, ele não fazia a mínima ideia de quem eu era. Ele chamava-se Francisco de Sousa Tavares, era advogado e um conhecido membro da oposição. O livreiro, distendeu o ambiente: "Não há nenhum problema", disse para Sousa Tavares, sorrindo. E acrescentou: "É um amigo"...

A situação era curiosa. Ambos íamos à procura de um livro, acabado de sair em França, que tínhamos encomendado semanas antes e que nos fora dito que chegaria naquele dia. O livro era "Le grand tournant du socialisme" e o seu autor, Roger Garaudy, era um intelectual dissidente do PC francês.

Ao tempo, obter alguns livros, portugueses ou estrangeiros, menos conformes com os gostos do regime, era uma tarefa que implicava conhecimentos "de confiança" em algumas escassas livrarias. A Moraes, tal como a Barata na Avenida de Roma, proporcionava-nos essa cumplicidade. No caso da Moraes, dava-se mesmo a curiosidade da livraria se situar no mesmo quarteirão onde estava a PIDE... Por isso, todos os cuidados eram poucos.

Garaudy era, à época (e já perceberão porque escrevo "à época"), uma espécie de precursor daquilo que se iria chamar o "eurocomunismo", isto é, uma evolução, tendencialmente democrática, dentro do comunismo na Europa. Fazia parte daqueles a quem os ortodoxos, em especial os maoístas, chamavam "revisionistas", por advogarem uma linha política que começava a colocar em causa as premissas da orientação moscovita, então ainda dominante na generalidade dos partidos comunistas ocidentais. Antigo resistente e prisioneiro durante a ocupação alemã, Roger Garaudy integrou o comité central do PC francês, tendo sido eleito deputado e, mais tarde, senador.

Mas o percurso de Garaudy não iria ser linear. Opositor da invasão russa da Checoslováquia, foi expulso do PCF, passou a atacar o ateísmo, fez uma deriva pelo catolicismo, converteu-se ao Islão, tornou-se anti-sionista feroz para, finalmente, contestar a própria existência das câmaras de gaz no nazismo. Um percurso, pelo menos, bem singular.

No que me respeita, confesso que já quase me não lembrava dele. A sua morte, hoje conhecida, acabou por ajudar a recordá-lo e, também, a recordar o tempo em que o que ele escrevia era interessante para alguns de nós. E talvez não seja por acaso que a sua desaparição foi anunciada por um "site" de extrema-direita... 

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...