domingo, novembro 20, 2011

Ovos com bacon

Foi já há muitos anos. Posso imaginar que a conversa ia solta entre aquele velho embaixador e o seu secretário, numa tarde talvez sombria, quiçá à volta de dois maltes, numa periférica capital europeia, cujo nome ora me escapa. 

Falava-se de política portuguesa, tema que era caro ao jovem diplomata mas para o qual o seu chefe olhava com alguma distância, tantas as coisas que vira e outras que preferiria não ter visto.

O tema era uma figura política então na oposição, que o diplomata mais novo incensava nas conversas, desde há meses, apostando numa sua subida aos terrenos do poder como a chave para a superação dos males pátrios. O embaixador era, porém, muito mais cético quanto às virtudes daquele político e às suas reais qualidades pessoais.  Em especial, os insistentes rumores sobre as suas ligações a determinados lóbis deixavam-lhe muitas dúvidas quanto as reais razões pelas quais tanto se encarniçava nos seus esforcos de ascensao na vida publica.

Mas o secretário insistia: "Senhor embaixador, eu tenho acompanhado com atenção o perfil dele. É um homem comprometido com o destino do país", saiu-lhe a certo passo, um tanto grandiloquente. 

O embaixador interrompeu-o: "Comprometido ou interessado?"

- Não vejo a diferença, senhor embaixador, retorquiu o jovem.

- É imensa, meu caro, é imensa! Já pensou nos ovos com bacon?

- Nos ovos com bacon?!

- Claro! Nos ovos com bacon, a galinha é interessada, o porco é comprometido...

sábado, novembro 19, 2011

Pascal Lamy

Na passada sexta-feira à noite, estive presente numa palestra-debate com Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), a convite da associação "Notre Europe", criada por Jacques Delors, a que agora preside António Vitorino.

Lamy é um homem brilhante. Foi chefe de gabinete de Delors e, anos mais tarde, comissário europeu com a pasta do comércio exterior. Com ele tive então algumas "accrochages", quando se discutia a fixação do mandato europeu para a reunião ministerial da OMC, a ter lugar em Seattle, em fins de 1999. Nada que fosse muito diferente dos problemas que já tivera com o seu antecessor, o britânico Leon Brittan, na preparação das duas anteriores reuniões ministeriais da OMC, cuja delegação nacional me competiu chefiar - em Singapura (1997) e Genebra (1998).

Portugal atinha-se então fortemente à defesa de alguns produtos "sensíveis" para a nossa indústria, pelo que tentava salvaguardar certas "posições pautais", nomeadamente relativas a produções têxteis, dado que o nosso país se recusava ter de pagar, através da total abertura do mercado europeu a produtos idênticos oriundos de países terceiros, certas vantagens que outros nossos parceiros mais avançados pretendiam obter nesses mercados.

Recordo longas e penosas horas de negociação passadas nas salas de Bruxelas, com Portugal a terminar o processo praticamente isolado, comigo a fazer "bluff" com a ameaça de abandono da sala e, simultaneamente, pressões a serem feitas pelo telefone junto de Lisboa, queixando-se da minha intransigência.

Um dia, contarei aqui como não pude evitar o sentimento de algum gozo ao testemunhar, semanas depois, nas manifestações nas ruas e no caos das salas de trabalho da reunião de Seattle, o ruir fragoroso dessa negociação. Ia pagando caro, em termos europeus, uma declaração que então fiz à SIC, dizendo "não poder deixar de ter uma certa simpatia nostálgica pelos manifestantes, que haviam criado um ambiente anos 60, que recordava Berkeley e o Maio 68". Recordo que essa foi, talvez, a primeira grande movimentação de massas anti-globalização.

A reunião de sexta-feira parecia de "amigos de Alex", gente de um outro tempo europeu. Por lá encontrei Niels Ersbøll, antigo secretário-geral do Conselho das Comunidades Europeias, Philippe de Schoutheete, representante permanente belga, e Elisabeth Guigou, antiga ministra francesa - todos membros do "grupo de reflexão" no seio do qual, em 1995, havíamos discutido e preparado a revisão do tratado de Maastricht. Mas, igualmente, os portugueses Maria João Rodrigues e Vitor Martins, duas figuras a quem a política europeia portuguesa muito ficou a dever. E, também, os meus amigos espanhóis Enrique Barón Crespo, antigo presidente do Parlamento Europeu, e Eneko Landaburu, que agora chefia a representação da UE em Rabat, uma figura que foi sempre de uma grande correção para conosco, como diretor-geral da Comissão encarregado dos fundos estruturais.

A charla e o debate processavam-se de acordo com a consagrada "Chatham House rule", o que significa que o conteúdo do que foi dito não deve ser passado cá para fora (embora eu visse dois jornalistas conhecidos a tomar afanosamente as suas notas...). Por isso, apenas aqui anoto a ironia de Pascal Lamy quando afirmou que os países do antigo G8 parece não terem ainda decidido muito bem como deverão tratar os chamados "emergentes" (que muitos consideram já "emergidos"): ou como países ricos com muitos pobres ou como países pobres com muito ricos.

Porturegale-se

Aqui.

sexta-feira, novembro 18, 2011

As contas da Europa

No meio de toda a turbulência que afeta a generalidade da União Europeia, por via da crise que está instalada em torno do euro (que, curiosamente, continua a revelar-se uma muito sólida moeda, no contexto mundial...), há uma discussão séria que se aproxima: a das "perspetivas financeiras", isto é, o quadro orçamental plurianual que será fixado para vigorar de 2014 até 2020.

Esta não vai ser - nunca foi... -  uma discussão fácil, particularmente num contexto de restrições orçamentais como aquele que todos os Estados membros da UE atravessam. A Comissão Europeia já apresentou algumas linhas de reflexão. Algumas movimentações no terreno deixam claros interesses que pretendem ser preservados no futuro, nomeadamente com vista a fazer escapar algumas políticas comunitárias ao esforço global de contenção que terá de ser feito. Nada de surpreendente.

Pela nossa parte, com a serenidade de um país que, em todas as negociações de anteriores quadros financeiros revelou sempre uma atitude de firmeza responsável, e em particular porque estamos num contexto em que consideramos que não há condições para um reforço do orçamento, Portugal defende que todas - mas todas! - as políticas da União devem contribuir para o necessário esforço de contenção. 

quinta-feira, novembro 17, 2011

Viva o Estado!

"Nisto não se mexe, isto é do Estado!". Tenho esta frase no ouvido desde a minha infância. Eu devia ter 7 ou 8 anos e o meu pai, chefe de um serviço público numa cidade de província, havia-me levado, uma tarde, a assistir à abertura de uns caixotes de madeira que, uma vez por ano, chegavam, "de Lisboa", com o material de papelaria, para ser utilizado pelos funcionários, nos 12 meses seguintes. Eram resmas e blocos de papel, lápis, cartolina, borrachas, elásticos e tinta para canetas. Para quem, como eu, vive, desde que se conhece como gente, fascinado pela "stationery", a visão desse material deve ter-me criado imensa água na boca. Mas o meu pai, nas coisas do Estado, era inflexível: nunca tive, pela sua mão, um lápis ou uma borracha "do Estado" e, recordo-me muito bem que, quando passei a poder usar uma velha máquina de escrever da família, o meu pai trazia para casa fitas já usadas, consideradas demasiado gastas para o serviço.

Foi assim que, em minha casa, aprendi, para vida, o que era o Estado. Dessa forma me foi ensinado o que era ser servidor público, como o meu avô já o fora, este mostrando-me, pelo exemplo constante de vida, que servir o Estado era sinónimo de servir o país. Com ele aprendi a recusar uma dualidade pessoal com o Estado, porque, como sempre lhe ouvi, "o Estado somos todos nós".  

Faz hoje, precisamente, 40 anos, dia por dia, em que "entrei para o Estado". Passei, num concurso com muitas centenas, a ser funcionário público, uma designação que os meus amigos estranham que eu sempre escreva e diga, em lugar de "diplomata", quando tenho de declarar a minha profissão. Faço-o porque tenho uma imensa honra em ser servidor público, em ser funcionário do Estado, porque continuo a pensar que essa é a mais nobre forma de servir Portugal.

Os tempos que correm - eu sei! - não vão fáceis para o Estado e para quantos o defendem. Diabolizado por muitos, o Estado passou a ser o bode expiatório de todos os males e de todos os défices, com alguns a apelar por "menos Estado e melhor Estado", quase sem esconderem o desejo de colocar ao seu serviço o que dele sobrar. Os professores, as forças de segurança, os servidores da Justiça, os militares, os funcionários da saúde pública, os técnicos e administrativos de imensas áreas e, por maioria de razão, essa casta irritantemente snobe que são os diplomatas - tudo isso não passa, no discurso dos turiferários das virtudes angelicais da "sociedade civil", de um bando de inúteis gastadores, de preguiçosos absentistas, de mangas-de-alpaca que pilham o erário e o que foi criado pelo suor de quem "produz a riqueza". 

É claro que sei que vou contra "l'air du temps", que vou correr o risco de eriçar alguns sobrolhos e de excitar alguns blogues ou colunistas desses novos "libertadores", mas deixem-me que aqui diga hoje, quatro décadas depois de ter começado a servi-lo, sem uma ponta de arrependimento, com um imenso orgulho e com a liberdade a que o 25 de abril me deu direito: viva o Estado!

Sobre as águas

Em tempos complexos, vogam por aí novas "Velas e navios sobre as águas". 

Os dias não vão para luxos, mas, c'os diabos!, ainda podemos gozar um certo Fausto.

François Bayrou

François Bayrou é um dos mais experientes políticos franceses. Antigo ministro e presidente do partido centrista MoDem, obteve mais de 19% dos votos nas eleições presidenciais de 2007. Em 2012, irá de novo a votos. Entretanto, vai publicando, pelo seu punho, alguns livros que são tão polémicos como admiravelmente bem escritos.

Ontem, Bayrou almoçou com os embaixadores da União Europeia e, num tom solto e bem humorado, disse-nos o que pensa da situação política interna francesa, explicando também a sua visão sobre as mais importantes temáticas europeias. Fê-lo num tom franco e "sem papas na língua", o que me levou a dizer-lhe, em jeito de elogio, numa questão que lhe coloquei, que, ouvindo-o, ninguém diria que a expressão "langue de bois" era francesa...

Aproveitei este encontro com François Bayrou para pôr com ele algumas contas em dia.

Alguns se lembrarão que, em 2000, no início da presidência portuguesa da União Europeia, ocorreu o chamado "caso austríaco". 14 dos 15 países da então União, descontentes com o facto de estar iminente a entrada no governo austríaco de um partido tido como de extrema direita, resolveram impor algumas "sanções" às autoridades de Viena.  Tratava-se de medidas de natureza bilateral, que não afetavam os direitos austríacos como país membro da União, mas que significavam o descontentamento dos parceiros europeus da Áustria pelo facto do paradigma governamental do país poder conflituar com a ordem de valores pelo qual a Europa comunitária se deveria pautar. Mal sabíamos nós, à época, o que o futuro nos traria noutras paragens do continente...

O tema era muito polémico, por toda a Europa. Como polémica foi a necessidade de Portugal ter sido colocado, pela generalidade dos seus parceiros europeus, no centro do problema, como "coordenador" da posição dos 14. O Parlamento Europeu também não escapou a ele e, numa tarde de fevereiro, em Bruxelas, com o areópago a abarrotar, a presidência portuguesa, que tivera de assumir as "dores" dos 14, esteve no centro de um longo debate. Coube-me assegurar as nossas "cores" e defrontar um ambiente muito tenso, com centenas de deputados a vaiar a posição que nos competia defender, lado a lado com outros que hostilizavam a opção austríaca.

A base de argumentário de que eu dispunha para o debate era muito escassa: um mero comunicado de alguns parágrafos, laboriosamente acordado entre os 14, com aquela linguagem ambígua que esse tipo de textos fortemente negociados sempre tem. Era muito pouco, para cerca de duas horas de debate, mas era essa a minha margem, pelo que tive de improvisar em torno do texto comum, cuidando em o interpretar criativamente, correndo o risco de alguém me poder dizer que estava a ir longe demais. 

Acresce que a Comissão europeia, na bancada em frente, escudada na prudência, havia decidido tomar um caminho de retração opinativa num tema em torno dos valores, aguardando talvez que o vento soprasse de forma clara num qualquer sentido. Pela voz do presidente Romano Prodi, assumiu uma posição equívoca, a qual, a partir de certo momento, me deixou numa situação algo embaraçosa. Nem uma intervenção mais "assertive" do comissário Neil Kinnock em nosso apoio, a quem eu fizera entretanto chegar uma nota do desagrado por essa tibieza inicial, foi suficiente para reverter o ambiente de isolamento em que a presidência portuguesa se encontrava.

No plenário, o "ping-pong" entre a esquerda e a direita foi-se processando, com a presidência a ser considerada, ora tímida e complacente, ora demasiado agressiva com Viena, sendo raros os que se reviam na "craftly worded" linguagem do comunicado dos 14. 

Por razões que só a "petite histoire" acolherá um dia, a maioria dos deputados portugueses dispensou-se de intervir em defesa a posição da "sua" presidência, pelo que, sozinho, tive de fazer as "despesas da conversa". Nada que fosse impossível, mas era uma posição bastante difícil de ir sustentando sem apoios claros no plenário. Mas estes eram raros. Contra nós, por exemplo, falaram figuras como Jean-Marie Le Pen, que vociferou graves coisas denunciando a atitude que titulávamos - repito, não em nome de Portugal, mas de 14 dos 15 países da União cuja posição e razões nós ali tentávamos sustentar.

Foi então que uma voz do centro do espetro político europeu se ergueu, com grande vigor e determinação, apoiando as razões assumidas pela presidência portuguesa, destacando que ela estava a representar os princípios de ética democrática da União e uma linha justa de abordagem do problema: essa voz era a de François Bayrou. Com as suas reconhecidas qualidades de tribuno, colou-se às nossas posições e foi uma preciosa ajuda para equilibrar o ambiente.

Ontem, tendo com ele coincidido numa das mesas do almoço organizado pelo meu colega polaco, tive o ensejo de lhe relembrar a ocasião e o seu gesto. Ainda que com mais de uma década de atraso, foi-me grato poder expressar esse agradecimento que estava a dever a François Bayrou.

terça-feira, novembro 15, 2011

Hotéis

A grande hotelaria é hoje uma das nossas imagens de marca como país, no mercado exterior. Por ela passa a utilização do turismo como um dos instrumentos para a superação dos problemas da nossa economia.

Ontem, aqui em Paris, tive o prazer de poder testemunhar a consagração de um projeto como o Porto 41, um hotel situado nas margens do Douro, a escassas dezenas de quilómetros do Porto, cuja ousada e criativa arquitetura recebeu um prémio internacional, numa competição onde figuravam alguns dos maiores projetos do mundo no setor.

Da seleção final, noutra categoria, figurava o Altis Belém Hotel, também uma magnífica unidade hoteleira de Lisboa.

segunda-feira, novembro 14, 2011

Cultura portuguesa

Na passada semana, homenageei na Embaixada, em ocasiões diferentes, duas figuras cuja importância para a promoção da cultura portuguesa em França pude testemunhar, durante a minha estada em Paris.

Reuni jornalistas, livreiros e editores franceses para saudar Michel Chandeigne e os 20 anos das "Éditions Chandeigne", que têm levado a cabo uma importante tarefa de divulgação da língua e da cultura de Portugal e dos países que, pelo mundo, se exprimem em português. Na pessoa de Michel Chandeigne e dos seus colaboradores, lembrei igualmente o magnífico trabalho desenvolvido pela sua livraria que, desde há um quarto de século, torna acessíveis obras de diversas origens, servindo todas as culturas que se exprimem em português.

Noutra ocasião, juntei dezenas de amigos e figuras próximas de João Pedro Garcia, o qual, durante sete anos, dirigiu o Centro cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris. A Gulbenkian, como eu costumo dizer, é uma outra "Embaixada" portuguesa nesta cidade e, graças ao entusiasmo, dinamismo e competência do seu diretor, transformou-se num espaço insubstituível, pela organização de grandes eventos culturais, que muito dignificam a imagem de Portugal. Agora que João Pedro Garcia regressa a Lisboa, para retomar em pleno o seu lugar de diretor internacional da Fundação, quis deixar-lhe uma nota de grande apreço, em especial pela inexcedível colaboração com que dele sempre pude contar.

A cultura portuguesa tem, infelizmente, um elevado défice (outro...) de afirmação no exterior. Figuras como Michel Chandeigne e João Pedro Garcia dão uma grande ajuda para reduzi-lo.

domingo, novembro 13, 2011

Verde Eusébio

"Não gosto do Sporting. No meu bairro, era o clube da elite, da polícia e dos racistas". "Eu nem do Sporting de lá gosto, quanto mais do de cá", diz Eusébio no 'Expresso' ".

Pois é, Eusébio! Mas nós, quer você queira quer não (e já se percebeu que quer...), gostamos de si, mesmo sendo do Benfica. Aqui deixo uma foto de quando você era de um Sporting...

Vemo-nos na Tia Matilde!

sábado, novembro 12, 2011

O fim do MES

Éramos quase 300. Algumas caras diziam-me muito, outras alguma coisa e outras, francamente, nunca as devo ter visto. Foi o almoço com que saudámos os 30 anos passados desde que, em 1981, um jantar consagrou o termo de um partido cuja existência efetiva já era então algo duvidosa. Foi um almoço sem muitas nostalgias, sem discursos, que seriam inapropriados em gente de uma geração que seguiu percursos nem sempre comuns, mas que, de comum, terá para sempre a bela memória de um tempo magnífico. E que, em geral, não renega as suas heranças.

Alguns faltaram, por razões muito diversas, em certos casos, imperativas e definitivas. Em nome e simbolizando os que partiram, deixo a imagem de alguém que nos fez e faz muita falta: o Agostinho Roseta.

Uma jovem jornalista perguntou-me, antes do almoço, se ao país sente falta, nos dias de hoje, de um partido como o MES. Ri-me e disse-lhe, claro, que não. Embora os portugueses hoje cada vez mais se preocupem com o fim do mes...

Em tempo: aqui deixo um forte abraço de agradecimento ao núcleo organizador do almoço, que foi responsável pela sua impecável realização.

Vale a pena ver aqui um filme sobre o MES publicado no blogue dedicado a este almoço.

quinta-feira, novembro 10, 2011

"Le Monde" não é o mundo

Numa destas operações de limpeza de papeladas que os fins de semana propiciam, encontrei há dias um recorte de um número do "Le Monde", já com uns meses, onde se defendia, em editorial, que "é preciso chamar ditador a um ditador, sempre e bem alto".  Arriscando-me a suscitar a cólera dos puristas, quero dizer que, se a frase é bonita em termos de jornalismo, ela é impraticável em termos políticos.

Vamos então aos factos, no que, por exemplo, respeita a Portugal.

Como é sabido, o nosso país mantém relações diplomáticas e económicas com diversos Estados onde vigoram regimes mais ou menos sinistros, alguns travestidos de "democracias", outros com modelos abertamente autoritários ou populistas, onde têm lugar regulares atentados, uns mais graves que outros, a direitos de cidadania que, no nosso mundo, consideramos fundamentais. Convém, aliás, ter presente, para quem o não saiba ou possa ter esquecido, que, na maioria dos países do mundo, a democracia não se pratica, pelo menos no conceito que dela temos no ocidente.

Em alguns desses Estados, vivem, contudo, cidadãos portugueses, por vezes em número bem significativo. Empresas do nosso tecido empresarial mantêm, com entidades públicas ou privadas desses países, regulares negócios, do sucesso dos quais dependem muitos postos de trabalho em Portugal. Não raramente, capitais oriundos desses tais países com regimes muito pouco recomendáveis ajudam a engrossar o investimento direto estrangeiro que o nosso país procura, a todo o custo, estimular. E turistas, chegados desses Estados menos democráticos, desembarcam em Portugal e gastam os seus dinheiros nos hotéis, restaurantes e lojas portuguesas.

Imaginemos, assim, por um instante, que Portugal era tentado a seguir a política de "murro na mesa" (como a recomendada pelo "Le Monde") e que, num acesso de "honestidade" e de insana franqueza na afirmação de princípios, os responsáveis políticos portugueses decidiam declarar publicamente que, no país X, os direitos políticos dos cidadãos são frequentemente desrespeitados pelo autoritarismo populista aí reinante, que a liberdade de imprensa não vigora em plenitude no Estado Y e que existe uma clique corrupta que rouba o Estado Z.

O que sucederia? Com toda a certeza, na sequência do ressoar mediático dessas declarações, os nossos cidadãos residentes nesses Estados iriam sofrer retaliações nos respetivos interesses, empresas portuguesas iriam ver os seus negócios prejudicados, alguns capitais migrariam de Portugal para outras paragens e, atento o poder de controlo que os governos desses países têm sobre os seus cidadãos, eles deixariam de nos procurar como destino turístico. Além disso, e por muito tempo, a capacidade de interlocução política de Portugal, para a defesa dos seus interesses e dos seus cidadãos residentes nesses países, baixaria para zero. 

Porém, outros Estados que não houvessem seguido o angélico conselho do "Le Monde" fariam, de imediato, todas as diligências necessárias para recuperarem, para as suas empresas, os negócios que as suas congéneres portuguesas haviam perdido ou para recuperarem os capitais que Portugal tivesse alienado. E, podem crer, nesses Estados que se movimentariam para nos substituir estariam vários parceiros nossos da União Europeia.

Mas não será que a "valentia" retórica portuguesa poderia acabar por ter um efeito para a melhoria dos aspetos denunciados? Só por ingenuidade ou desconhecimento alguém pode pensar dessa forma. Alguém, com um mínimo de sensatez, acha que um país estrangeiro iria mudar a sua política só porque a diplomacia das Necessidades decidia congelar relações ou manifestar bilateralmente uma oposição à orientação da sua política? O único efeito de tais gestos iriam ter seria o pontual acalmar das consciências de quantos pensam como o "Le Monde", o que seria um saldo bem curto. Só que esses puristas - que andam por aí a blogar ou a comentar, com foto tipo passe, nas colunas onde escrevinham pagos à linha - não têm, e sabem que nunca terão enquanto emitirem tais juízos, quaisquer responsabilidades políticas na proteção dos interesses dos nossos compatriotas que vivem no estrangeiro, nem ninguém lhe iria pedir que defendam os postos de trabalho das nossas empresas ou da nossa indústria turística. "Mandar bitaites" sobre política externa é muito diferente de ter de a executar.

Mas, então, a opção é estarmos calados? Então Portugal não tem uma "diplomacia ética", respeitadora dos direitos humanos, promotora da defesa das liberdades? Claro que tem e, para tal, há locais próprios para atuar. Salvo para Estados com grande poder à escala global, que dispõem de meios de pressão, económica ou outra, que podem, em certas circunstâncias, garantir a produção de alguns efeitos no plano bilateral, a luta pelo respeito pelas liberdades e pelos direitos fundamentais, bem como a promoção de fórmulas de boa governação, tem hoje outros patamares de tratamento. Apenas o quadro multilateral ou de coordenação regional permite um espaço de intervenção minimamente eficaz,  muitas vezes com a utilização do mecanismo de condicionamento de ajudas ou pela imposição de sanções, por forma a exercer alguma pressão que force a mudança.

Mas, mesmo essas pressões, não nos iludamos, terão sempre uma eficácia que varia na razão inversa da dimensão económica e da importância estratégica do país sobre o qual elas se objetivam. A "coragem" da União Europeia, por exemplo, é tanto maior quanto o país que é objeto das suas medidas "punitivas" é irrelevante para os negócios dos seus principais Estados membros. Basta ver, aliás, como a voz europeia "engrossa" na manhã seguinte ao dia em que os ditadores (até então parceiros) caem, por via da necessidade de colocar esses interesses europeus em consonância com os novos ventos que passam a soprar localmente. Não preciso de dar exemplos, pois não?

O mundo não é o "Le Monde". É uma pena, mas não é.

Poderes

Comentário irónico de um colega europeu (não revelo o país, claro), à margem de uma reunião de trabalho, na tarde de hoje: "Não deixa de ser estranho verificar que o poder de pressão dos poderes fáticos europeus, forçando à mudança de governos, só funcione perante democracias. Gostava de os ver tão eficazes em Damasco e Teerão...".

Nem imaginam a cara de alguns dos presentes.

A bicicleta europeia

Jacques Delors dizia que a Europa era como um bicicleta: no momento em que parasse de avançar cairia para o lado.

Salvo para alguns artistas prendados - e os tempos não mostram muitos no atual circo europeu -, há outra conclusão que se impõe: se a bicicleta começar a andar para trás, espalhamo-nos todos ao comprido.

Democracia

"A crise da dívida parece empurrar gradualmente a Europa para uma mais estreita integração. Mas a Europa pode pagar um preço pesado se, nesse caminho, tratar cada vez mais a democracia como um luxo fora de moda" - escreve hoje Tony Barber no "Financial Times", num artigo onde se destacam os casos português e irlandês, como exemplo de esforços feitos por governos que estão perante "formidáveis dificuldades, mas das quais não faz parte a defesa da sua legitimidade".

Previsões

É muito bom ler isto: "A Comissão Europeia estima que Portugal irá cumprir as metas de défice público para 2011 e 2012, prevendo mesmo um valor ligeiramente mais otimista que o governo português para este ano, ao antecipar um valor de 5,8 por cento do PIB."

E menos bom ler isto: "A Comissão Europeia prevê que o nível da dívida pública portuguesa chegue a 101,6 por cento do PIB este ano e registe um aumento para 111,6 por cento em 2012. As perspetivas de Bruxelas, presentes nas previsões de outono hoje divulgadas, são mais pessimistas que as do governo português."

Portanto, sigamos o João Pinto.

Baisers volés

Alguém que descubra a solução, porque eu não a consigo encontrar, para evitar ficar preso até às três e tal da manhã, a partir do momento em que um canal de televisão nos mostra, pela enésina vez, o "Baisers volés", de François Truffaut.

Pode ser que alguém tenha a coragem de desligar o suave sorriso, marcado por uma bela e incomparável tristeza, de Delphine Seyrig, fixando, sem mancha de ironia, o eterno embaraço grave de "Antoine Doinel". Pode ser. Mas não contem comigo para isso.

quarta-feira, novembro 09, 2011

Um abraço, Georgios

Não é vulgar repetir um post. Mas vou reproduzir o que aqui publiquei, em 5 de outubro de 2009, porque ele é o melhor retrato que consigo fazer de um amigo que foi, até há uns minutos, o primeiro-ministro da Grécia:

"Georgios Papandreou foi ontem eleito primeiro-ministro da Grécia.

Desde o tempo em que foi secretário de Estado e depois ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país, Georgios anima anualmente um clube internacional de discussão, para o qual tive o privilégio de ser por ele convidado algumas vezes - o Symi Symposium. António Guterres e Jaime Gama foram os outros portugueses presentes nessas reuniões, que têm uma composição variável. Por lá passaram já Bill Clinton, Amartya Sen, Joseph Stiglitz, Richard Holbrook, Fernando Henrique Cardoso, Yossi Beilin, Ségolène Royal, etc. São encontros com cerca de 25 pessoas, cada uma de sua nacionalidade, realizados sempre em locais diferentes da Grécia, nos quais, durante uma semana, se pensa livremente o mundo e, muito em especial, a Europa.

Houve um desses debates, creio que em 1999, que nunca mais esquecerei. Estávamos no tempo imediatamente posterior à grande crise do Kosovo e, à mesa, desencadeou-se uma acesa discussão entre uma resistente sérvia, aberta opositora de Milosevic, e um intelectual kosovar, recém-saído de meses de clandestinidade em Pristina. Num certo momento, o kosovar, num óbvio excesso de argumento, volta-se para nossa amiga sérvia e ataca-a da seguinte forma: "tu podes ser pró ou anti-Milosevic, mas o problema que nunca poderás ultrapassar é o facto de seres sérvia!".

Todos ficámos gelados! O ambiente de diálogo e cordialidade que caracteriza, desde há vários anos, aquelas reuniões, que não impede discussões acesas e vivas, nunca terá chegado a um extremo tal de agressividade, muito fruto de um tempo de tensão balcânica cuja conflitualidade inter-étnica ficámos, naquele instante, a perceber bem melhor.

Foi então que, com o seu ar sereno, no tom suave que nunca perde, Georgios interveio. E fê-lo para contar uma história, que se tinha passado consigo, já há muitos anos.

Durante a ditadura militar grega, o seu pai, Andreas Papandreou, que mais tarde viria a ser primeiro-ministro, encontrava-se na clandestinidade. Uma noite, o exército invadiu a casa da família de Georgios, que era então adolescente, e levou-o de carro para uma qualquer zona da Grécia. Umas horas mais tarde, ao chegarem a uma moradia isolada, cercada pela tropa, Georgios viu o oficial que o detivera e que comandava o grupo pegar num megafone e dirigir-se à habitação, que logo compreendeu ser o esconderijo onde estava o seu pai. O oficial gritou então para que Andreas Papandreou se rendesse, informando-o de que tinha ali o seu filho, que prenderia se ele não se rendesse, tudo isto acompanhado de outras ameaças violentas. Perante este cobarde ultimatum, o pai Papandreou entregou-se e foi preso.

A história que Georgios nos contou tinha um significado que ele pretendia projectar no ambiente de tensão que se criara no nosso debate. Porque acrescentou: "na passada semana, encontrei casualmente o militar que fez essa chantagem comigo e com o meu pai, utilizando-me como refém. Estendi-lhe a mão e cumprimentei-o. Essa é a nossa superioridade como democratas".

Recordo-me que todos olhámos para os nossos amigos da Sérvia e do Kosovo, para tentar perceber se eram sensíveis à lição. Não estou certo que ela tenha sido eficaz.

Se outras razões não tivesse, fruto da minha já antiga amizade com Georgios Papandreou, este testemunho reforçou-me a admiração pelo perfil humanista do homem que, desde ontem, dirige os destinos da Grécia. E a quem já dei os meus sinceros parabéns."

Feriados

A igreja católica portuguesa acaba de anunciar que "aceita a mudança de data de dois feriados religiosos se o Governo renunciar a outros dois civis".

Devo dizer que nunca esperei assistir, em dias da vida, a uma "marchandage" deste teor. Mas já nada me espanta!

No que me toca, que fique claro: como feriados oficiais ou como dias descontados nas minhas férias, comemorarei sempre, nessa exatas datas, o 25 de abril, o 1 de Maio*, o 10 de junho, o 5 de outubro e o 1 de dezembro. Feitios!

Em tempo: Quase simultaneamente, Otelo Saraiva de Carvalho "ameaça" fazer uma nova Revolução. Perdoai-lhes, senhores, que não sabem o bem que fizeram! 

*Um anónimo lembrou-me - tinha-me esquecido! - o 1 de maio! Era só o que faltava eu não o comemorar...

Manuel da Cruz

Chama-se Manuel da Cruz, tem 45 anos, foi ontem condenado em França a prisão perpétua por um assassinato, antecedido de violação, ocorrido em 2009. Já antes tinha cumprido uma pena de prisão de 11 anos, por outra violação. Manuel nasceu em Portugal, veio para França aos 7 anos, com uma irmã, juntar-se aos pais que, ao que agora se sabe, os sujeitaram a uma adolescência de violência doméstica. É casado há 23 anos com Maria, teve dois dos seus quatro filhos e, não obstante um registo constante de violência e alcoolismo, seria um excelente pai.

Manuel da Cruz, hoje francês, é um compatriota nosso, um homem que por aqui escolheu o lado errado da vida. Nas notícias que referem este caso, a origem portuguesa de Manuel da Cruz aparece sempre como lateral. É que Manuel da Cruz está, não apenas muito distante da imagem que a França conserva da comunidade portuguesa, mas é exatamente o seu oposto. E é também por essa razão que o embaixador de Portugal, com toda a serenidade, aqui refere hoje esta história singular. E triste.

terça-feira, novembro 08, 2011

Construção

Impressiona observar a serena determinação dos industriais portugueses que ontem visitei no "Batimat", a mais importante exposição de materiais de construção de França e uma das maiores da Europa. Nos 66 stands ocupados por empresas de capitais portugueses - Portugal é o quatro país com mais expositores - fui confrontado com produtos de um nível que pede meças aos seus congéneres internacionais e que, cada vez mais, conseguem ser altamente competitivos num mercado europeu cada vez mais rigoroso. E em todos eles pude testemunhar uma vontade firme e uma combatividade para lutar pelo futuro das suas empresas, na consciência de com isso estarem a contribuir para um melhor futuro do país, não obstante a plena perceção das dificuldades que atravessamos.

A imagem profissional dos portugueses em França continua muito ligada à construção civil, desde os tempos heróicos do "bâtiment", que a partir do século passado empregou muitos milhares dos nossos compatriotas aqui imigrados, até aos dias de hoje, em que uma imensidão de empresas de construção civil de propriedade portuguesa progridem no tecido económico francês, sempre rodeadas de uma aura de grande prestígio e rigor. Nesta feira, pude constatar a ligação que crescente entre empresários vindos de Portugal e firmas de capital português ou não que já operam em França, em áreas muito diversas, desde os materiais de construção mais simples a muito sofisticadas tecnologias e design. Outras empresas nacionais, cientes da realidade atual do nosso mercado, voltam-se elas próprias autonomamente para o espaço económico francês, criando ou adquirindo marcas locais.

A visita que ontem fiz à "Batimat", acompanhado de associados da CCIFP (Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa), serviu para potenciar esta ligação entre operadores do setor sediados em ambos os países, os quais, no seu todo, como bem salientou o presidente da CCIFP, Carlos Vinhas Pereira, ajudam a demonstrar que "construtor português" é já um símbolo consagrado de trabalho de qualidade. 

Rio

Este blogue não tem, como vocação, mostrar fotografias, por mais espetaculares que sejam.

Hoje, abro uma execeção para uma imagem, verdadeiramente única, que me foi enviada por André Jordan, a quem agradeço.

segunda-feira, novembro 07, 2011

"Call me God"

Por um motivo que não vem ao caso, organizei ontem um almoço na Embaixada com uma dezena de personalidades britânicas que, de comboio pelo túnel, vieram de Londres, regressando a meio da tarde. A insularidade britânica, de facto, já não é o que era.

Um dos presentes lembrou, simpaticamente, uma condecoração inglesa que possuo (aliás, a única), "Companion of St. Michael and St. George" (vulgarmente designada por CMG). Se, como aqui referi, os franceses levam as condecorações muito a sério (a prova dessa importância é o facto, que tenho provado à saciedade, de, com elas exibidas, se arranjarem muito melhores mesas em restaurantes...), os britânicos mantêm um reverencial respeito por essas distinções. E, ontem, alguns desses amigos ficaram surpreendidos por eu ser possuidor dessa condecoração.

É importante começar por relativizar estas coisas. Para um cidadão britânico, poder obter uma condecoração como aquela implica quase uma vida inteira de esforço e reconhecimento público. No meu caso, foi muito simples: estava no lugar certo no momento certo, isto é, era ministro-conselheiro na Embaixada portuguesa em Londres durante uma visita de Estado, ocasião em que, vulgar e rotineiramente, se trocam condecorações. O meu mérito é, assim, quase nulo. Não digo isto com falsa modéstia, mas apenas porque é pura verdade. Mas, talvez porque me "esqueci" de os informar do caráter fortuito da minha distinção, os meus visitantes estavam genuinamente impressionados com a alta condecoração que a sua soberana me atribuíra.

As condecorações têm, contudo, à sua volta, histórias curiosas. Uma das personalidades não deixou de lembrar que, no histórico humor britânico, um possuidor de um CMG está como que a apelar a "Call me God" (outro, mais ácido, lembrou que, no tempo do Império, a designação era menos suave: "Colonial made Gentleman"). E logo lembrou que, na categoria imediatamente acima, a de "Knight Commander of St. Michael and St. George", pode-se mesmo dizer que "King calls me God". Ainda se, por um bambúrrio, alguém tiver obtido o grau máximo dessa ordem "Grand Cross of St. Michael and St. George", então teria mesmo o direito de afirmar "God calls me God"... Resta dizer que quem tiver o KCMG ou o GCMG tem direito a ser chamado por "Sir", coisa que, no meu caso, só consigo ouvir, da boca dos porteiros, à entrada nos hotéis britânicos...

Para alguns, estas são as coisas com que os diplomatas se divertem. Para nós, que andamos nesta vida, estas fazem parte das graças que alimentamos nos intervalos do trabalho que fazemos para benefício dos interesses desses alguns...

A opinião do "Público"

O "Público" decidiu mudar alguns dos seus colunistas, o que é sempre saudável e refrescante num órgão de comunicação social. E assume que o faz para garantir a "necessidade de respeitar o equilíbrio e pluralidade das várias sensibilidades e tendências de opinião na sociedade portuguesa". Como jornal privado, o "Público" está no pleníssimo direito de convidar quem quiser para nele escrever. Até podia, se assim apetecesse a quem o dirige, escolher apenas colaboradores de uma única lateralização ideológica. O "Público", apesar do nome, não tem o dever de se sujeitar às regras de pluralismo do "serviço público". Mas fá-lo e isso é louvável.

A liberdade, que não o direito, que assumo pela minha qualidade de leitor e admirador do jornal desde a primeira hora (embora já nele tenha havido bem melhores dias, devo confessar), que sou e continuarei a ser, leva-me a dizer que a continuação da insistência na presença, como "colunistas", de figuras no exercicio ativo de funções político-partidárias (algumas das quais meus amigos, outras pessoas que muito respeito, pelo que estou mais à vontade para dizer o que digo) é um fator que, não só pouco acrescenta ao jornal, como é mesmo um pouco redutor, independentemente da indiscutível qualidade pessoal, intelectual e de escrita, dos eleitos. É óbvio que muitas dessas pessoas não são, nem serão, meros "porta-vozes" partidários, que algumas delas até podem não estar em consonância constante com as direções das forças políticas a que pertencem, mas, na minha opinião, que não é, pelos vistos, a opinião do "Público", estaremos sempre perante perfeitamente dispensáveis "tempos de antena" partidários. Ainda por cima, pagos.

E, de passagem, num outro contexto similar, permitam-me que lembre o que escrevi aqui.

domingo, novembro 06, 2011

Durmam bem!

Nem mais, nem menos!

"O 'duopólio' franco-alemão tanto resulta da natureza intergovernamental dos denominados processos de resgate (onde a dimensão dos fundos requeridos só pode vir dos orçamentos nacionais, atentas as limitações do orçamento europeu), como da timidez e inércia das próprias instituições europeias. Daí a necessidade de, num curto prazo de tempo, adotar as soluções que permitam que o processo decisório europeu não seja capturado por um grupo de Estados e que as decisões tomadas, porque dependentes de decisões nacionais, em regra dos respetivos parlamentos, possam beneficiar dessa legitimação democrática em tempo útil para produzirem os efeitos pretendidos".

António Vitorino, no "Expresso" (5.11.11)

sábado, novembro 05, 2011

Os herdeiros do défice

Os excessos de endividamento são uma pecha que atravessa o mundo. Já agora, diga-se, não apenas em Portugal, como creio que os últimos debates europeus bem demonstram. Em França, o primeiro-ministro anunciou ontem que o orçamento de 2012 será um dos mais mais rigorosos desde o pós-guerra.

A dívida pública, além de ter um peso nos défices anuais, porque neles incide o respetivo "serviço", isto é, os juros que há que pagar em cada ano, transmite-se para as gerações seguintes, que serão obrigadas a liquidar parte dos encargos anteriormente assumidos. Por isso se assume, numa "convenção" que é vulgarmente aceite, que uma dívida equilibrada para um país é a que não exceda, por regra, 60% do PNB (produto nacional bruto). Mas, vale a pena repetir, nenhum país deixa de ter a criação de dívida como fazendo parte da sua estratégia de gestão financeira. O défice faz parte da vida das nações.

Vistas as coisas de uma forma simplista, pode parecer "criminoso" estar a assumir despesas que serão os sucessores desta geração a pagar. O argumento tem, contudo, uma ligeira fragilidade. É que, no caso de se tratar de despesas de investimento, essas gerações futuras, quando assumirem a sua responsabilidade temporal de gestão do país, lá encontrarão, já construídas e utilizáveis, as autoestradas, as universidades, os hospitais e outros equipamentos, que não necessitarão de ser elas a fazer e a custear na totalidade. E se acaso parte desses investimentos foram bem canalizados para melhores e mais generalizados sistemas de saúde ou de ensino, então fácil é concluir que essas gerações também já beneficiaram parcialmente de tais investimentos, quer por usufruto direto ou por formação adquirida, pelo que tem lógica e justiça que também contribuam, embora de forma apenas residual, para a sua liquidação espaçada no tempo. Por isso, o argumento emocional e piedoso dos "encargos para as gerações vindouras", muito presente em certos discursos, deve ser moderado pela razão e pelo bom-senso.

Pensem nisto!

Aristides Sousa Mendes

Uma conversa com João Crisóstomo, o indefectível defensor da memória de Aristides Sousa Mendes nos Estados Unidos, que aqui anotei há semanas, trouxe-me à evidência a questão do estado deplorável da preservação da residência do antigo diplomata, em Cabanas de Viriato. 

Não fui o único a chocar-me e, por essa razão, integro um grupo de pessoas que hoje divulga no jornal "Público" uma texto-alerta.  Assinei-o porque me parece muito justa a posição tomada e também, no meu caso pessoal, porque considero que, depois de tantos anos e de tantas boas-vontades mobilizadas e desperdiçadas, estamos perante um verdadeiro escândalo, onde se misturam incúria, incompetência e o exacerbamento de alguns egos. A memória de Aristides Sousa Mendes não é propriedade de ninguém e muito menos o poderá ser de alguns que, nada fazendo, nada deixam que nada se faça. Quem assim procede não parece entender que está a fazer o jogo objetivo dos inimigos póstumos do diplomata - e, podem crer, eles não são poucos.

Aqui fica o texto do artigo hoje publicado, sob o título "Em defesa da Casa do Passal, de Aristides Sousa Mendes":

Não é possível aceitar o estado de extrema degradação em que se encontra a Casa do Passal, situada em Cabanas de Viriato, concelho de Carregal do Sal. Uma situação tanto mais indigna, porquanto se encontra classificada como património nacional.

Falar do Passal é lembrar a figura notável de Aristides de Sousa Mendes, «o cônsul de Bordéus», como ficou conhecido,  que, de Novembro de 1939 a fins de Junho de 1940, contrariando as ordens de Salazar, concedeu vistos a cerca de 30.000 refugiados, de diferentes nacionalidades, 10.000  dos quais judeus, salvando-os da perseguição das tropas nazis que haviam invadido a França. Um acto desinteressado, e nas suas palavras, «inspirado  única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade», mas que, paradoxalmente, lhe mereceu uma severa punição. 

Sousa Mendes não foi "o Schindler português" como, muitas vezes, se afirma. Com efeito, o seu procedimento não teve outra «recompensa» senão a «satisfação da [sua] consciência», e da desobediência às instruções de Salazar, que não permitiam «dar vistos a cidadãos dos países já ocupados pelos alemães» e em caso algum «a Judeus, Russos, Polacos, Checos e os sem-pátria», resultou o seu afastamento compulsivo da carreira diplomática e a impossibilidade de exercer a advocacia, situações que se repercutiram dramaticamente na Família, aliás numerosa, e que o apoiara no trabalho exaustivo da emissão de vistos. Sousa Mendes não elaborou uma qualquer lista de gente a salvar; disse sim a quantos, desesperadamente, o procuraram, indo para além das suas possibilidades. Testemunham-no a memória de documentos e de descendentes de refugiados salvos. Em carta dirigida ao embaixador do Brasil, pedindo-lhe que intercedesse em seu favor, ditou ao seu filho Luís Filipe: «Esperava eu que, terminada a guerra, Salazar reconsiderasse a sua injusta decisão, mas tal não sucedeu, encontrando-me eu actualmente não só na mais cruel miséria com a minha numerosa família, mas gravemente doente». (Figueira da Foz, 7-9-1945).

É esta Casa, espaço alicerçado na memória histórica, que ameaça ruir por completo, caso não se proceda a intervenções, neste momento, inadiáveis. A saber: execução de uma cobertura provisória e medidas provisórias de estabilização estrutural. Surpreendente é o facto de estes 2 projectos já existirem desde 2010, por iniciativa do Eng. Vítor Cóias, Presidente do GECoRPA – Grémio do Património (www.gecorpa.pt), uma associação sem fins lucrativos que defende a excelência na recuperação e reabilitação do património.  Estes dois projectos foram entregues à Câmara de Carregal do Sal e encontram-se ambos aprovados (2010) pelo IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico). Também em 2010, Francisco Manso realizou um documentário sobre a Casa do Passal, que está disponível  na internet, em português e em inglês. Refira-se ainda que a Direcção-Regional da Cultura Centro está a preparar o caderno de encargos para a cobertura provisória  e  para os trabalhos de consolidação, com base nos projectos do Eng. Vítor Cóias. 

Perante a situação de intolerável abandono a que está votada a Casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes com a sua família, um grupo de cidadãos, certamente acompanhado por todos os portugueses, e não só, apela à Fundação Aristides de Sousa Mendes (www.fundacaoaristidesdesousamendes.com) que, em articulação com a Câmara de Carregal do Sal e outras Instituições, actue rapidamente, envidando esforços para a concretização dos 2 projectos  acima  referidos  que,  necessariamente, exigirão a intervenção de mecenato. 

Assinam este texto:

Maria do Carmo Vieira (professora do Ensino secundário), Vítor Cóias (engenheiro e presidente da GECoRPA), António Barreto (professor), António Monteiro (embaixador), Francisco Seixas da Costa (embaixador), D. Januário Torgal Ferreira (bispo), Iva Delgado (presidente da Fundação Humberto Delgado), Gastão Cruz (poeta), João Pombeiro (director da Revista LER), Pedro Tamen (poeta e tradutor), Pedro Mexia (escritor), Carlos Calvet (arquitecto e pintor), Isabel Allegro de Magalhães (professora universitária), Teresa Cadete (professora universitária), Rui Baptista (professor universitário), Emília Nadal (pintora), Maria Filomena Molder (professora universitária), Jorge Molder (fotógrafo), Emanuel Pimenta (músico e compositor), Teolinda Gersão (escritora), Inês Pedrosa (rscritora), Fernando Ornelas Marques (professor universitário), Santana Castilho (professor universitário), Joshua Ruah (médico), José António Melo Gomes (médico), João Carlos Alvim (editor), Carlos Fragateiro (encenador), Guilherme Valente (editor da Gradiva), Maria Amaral (pintora), Maria João Cantinho (poetisa e professora do ensino secundário), Maria do Carmo Abreu (tradutora), Rui Zink (escritor). 

sexta-feira, novembro 04, 2011

Piris e a Europa

Há meses, a propósito de um jantar que com ele e alguns amigos comuns tive aqui em Paris, escrevi neste blogue sobre Jean-Claude Piris, o antigo chefe do serviço jurídico do Conselho da União Europeia, que agora ensina em Nova Iorque e que, por décadas, foi o arquiteto-mor das instituições da Europa.

Ontem à noite, a propósito das questões institucionais que se colocam à Europa no auge desta crise, lembrei-o durante uma conversa, por ter a certeza que a sua opinião, neste tempo de incerteza, seria muito bem-vinda. Pois ela aí está, hoje, no "Financial Times", num artigo que é reproduzido aqui.

O que Piris propõe como solução institucional imediata, em síntese, é uma "cooperação reforçada" em torno dos componentes da "eurozona", na óbvia inviabilidade de uma reforma tempestiva do Tratado de Lisboa.

O texto termina com uma verdade como punhos: "As soluções estão disponíveis. O que falta é vontade política". Claro.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Europeus e europeus

Ontem à noite, ao observar a conferência de imprensa do presidente Sarkozy e da chanceler Merkel, em Cannes, na qual ambos se pronunciaram sobre as consequências da crise grega para o projeto europeu, dei por mim a pensar nos diferentes europeus que somos.

Um cidadão alemão ou francês ouve o chefe do executivo do seu país a dar mostras de autoridade sobre o processo económico-financeiro europeu, notando que a palavra desses dirigentes pesa nas decisões que a Europa toma, conta mais do que a de outros para a formulação da vontade política coletiva, seja ela qual for. Assim, ao votar nas suas eleições nacionais, ao escolher um líder para o representar, ou um parlamento para eleger esse líder, esse cidadão, alemão ou francês, sabe que essa pessoa vai ter ao seu dispor uma força capaz de assumir, com eficácia, pelo menos relativa, o interesse do seu país no quadro externo.

Coloquemo-nos agora no lugar de um cidadão grego. Desde há anos, vê regressar o seu líder, chegado das reuniões de Bruxelas, ajoujado sob o peso de decisões que teve de aceitar, debaixo da pressão de uma situação económica muito preocupante, com a vida social do seu país a degradar-se dia após dia. Esse cidadão, ao ser chamado a votar, percebe que, eleja ele quem eleger, o poder desses seus representantes será sempre, à partida, muito limitado, em particular no tocante à influência que pode vir a ter nas decisões tomadas em instâncias coletivas externas, contudo com forte impacto sobre seu país. 

O que quis significar com o que atrás escrevi foi o facto de haver hoje um sério problema de legitimidade política à escala europeia. Na História, sempre houve uma hierarquia de poderes nacionais, derivada da força relativa dos Estados. O essencial das decisões que importavam aos Estados permanecia, no entanto, no seu seio, onde a soberania era exercida em quase plenitude.

Nos seus primeiros tempos, o modelo europeu de integração, ao ter preservado a unanimidade, para o essencial das decisões, equiparava os Estados, que assim exerciam um (pelo menos teórico) direito de veto. E até mesmo nas questões que já eram decididas por maioria qualificada era preservada, por uma espécie de "gentlemen's agreement" (o famoso "compromisso do Luxemburgo"), a possibilidade de invocação do "interesse vital". A Europa parecia ter encontrado um modelo equilibrado de expressão desses poderes onde, não deixando de tomar em conta a importância real de cada um, era gerada uma expressão moderada da resultante coletiva, que se projetava sobre todo o grupo. 

Em poucos anos, esse mundo europeu, movido por uma incontrolável ânsia de eficácia, mudou. E mudou precisamente num tempo em que muitas das funções de soberania passaram a ser "partilhadas" (o que era uma realidade passou a eufemismo) a nível europeu. Ora quando, dada a extrema sensibilidade das questões em causa, a lógica apontaria para que houvesse um cuidado ainda maior na capacidade de cada Estado preservar algum controlo de interesses próprios de soberania, aconteceu precisamente o contrário: alguns Estados perderam, pelos tratados ou pela prática, uma capacidade mínima de determinar o seu futuro. A evolução dos últimos tempos, com a trágica diluição do poder comunitário independente que a Comissão Europeia era obrigada a representar e com a emergência de uma intergovernamentalidade com um brutal desequilíbrio dos poderes dos Estados, acaba assim por relevar na praça pública, de forma quase cruel, a legitimidade diferenciada dos decisores políticos de cada Estado.

Tudo isto é muito perigoso para a democracia. Como se está a ver na Grécia.

Serviço público

Acabo de conhecer o início do alinhamento noticioso do telejornal da RTP, das 08.00 horas de hoje:

- Futebol
- Trânsito
- Crise financeira europeia

A RTP está de parabéns: deve ter entrado no "Guiness Book of Records".

quarta-feira, novembro 02, 2011

Erros

Nos últimos dias, os governos alemão e irlandês descobriram erros contabilísticos que acabam por reduzir a sua dívida face àquilo que era previamente estimado. 

Que bom seria se, também entre nós, alguém se tivesse enganado no mesmo sentido... Não se pode procurar melhor?

Liberdades

Há dias, falámos aqui das ações de grupos integristas católicos que tentam pôr em causa a liberdade de expressão no Théâtre de la Ville, em Paris, a propósito de uma peça aí representada.

Na noite de ontem, e na óbvia sequência da abordagem irónica de temas islâmicos no último número da publicação humorística "Charlie Hebdo", as instalações deste jornal, também em Paris, foram incendiadas.

O radicalismo religioso integrista tem ser combatido com todas as armas da liberdade, a principal das quais é a lei. A mesma lei que agora impede que Julien Assange, o fautor do WikiLeaks, se não socorra do falso argumento da defesa da "liberdade de informação" para escapar a um outro processo criminal, por acusações de outra natureza, movido num Estado que, como a Suécia, tem um sistema judicial acima de toda a suspeita.

Cada coisa no seu sítio.

terça-feira, novembro 01, 2011

Guimarães

Participei, no passado sábado, na (minha) primeira reunião do Conselho geral da Fundação cidade de Guimarães, que prepara Guimarães 2012 - capital europeia da Cultura. Foi, para mim, um momento importante, porque me permitiu perceber o trabalho sério que, desde há muito, está a ser feito naquela cidade para pôr de pé um programa, não apenas de eventos culturais, mas igualmente de valorização e reabilitação de equipamentos públicos. Pena é que, por ora, o país tenha tido uma imagem do evento baseada em caricaturas distorsoras, feitas de "fait-divers".

Não creio estar a cometer uma indiscrição se disser aqui que, na intervenção que fiz, alertei para o facto desta iniciativa, ao ir ter lugar ao longo do difícil ano que 2012 vai ser para Portugal, se colocar como que em "contra-ciclo" com um certo ambiente que então se vai viver. E como a tudo isso, num país como o nosso, se somam sempre más-vontades, invejas e sectarismos, agora adubados num caldo de miserabilismo populista, de que alguns media se fazem zelosos polícias, devemos estar preparados para um tempo que exigirá, da parte da organização, grande rigor e um sentido de medida excecional.

Guimarães 2012 é um projeto magnífico, servido por gente dedicada e competente, que prolonga uma vontade que tem na Câmara municipal da cidade um sólido apoio. Não se trata apenas um projeto local, paroquial ou de capelinha. É uma iniciativa de dimensão nacional, da qual pode e deve resultar um prestígio acrescido para Portugal no exterior. Porque não tenho receio de brincar com as palavras, direi que Guimarães deve conseguir provar ao mundo, com orgulho, que, em 2012, há mais vida em Portugal para além da "troika".

Referendo grego

Não estou no segredo dos deuses, mas imagino que os líderes europeus, ao aprovarem, na passada semana, as importantes decisões financeiras que se projetam sobre a Grécia, não faziam a mais leve ideia de que o respetivo governo podia vir a ter a intenção de levar a cabo um referendo para legitimar internamente a respetiva aceitação. A reação dos mercados a esta decisão grega foi a que seria de esperar.

Há um "drama" com que a Europa tem de viver, por muito que lhe custe ou que até lhe possa vir a custar o futuro: a democracia interna dos seus Estados. Já aqui falei disso há semanas. Os equilíbrios de cada sistema político, as diferentes realidades nacionais e a sua difícil compatibilidade (em especial, temporal) com a dinâmica global dos mecanismos da União Europeia tornam o dia-a-dia do projeto integrador numa caixa de surpresas. Às vezes, não as melhores, como é, flagrantemente, o caso.

As frases e os mitos

Na memória coletiva sobrevivem, por vezes, expressões que, não tendo nunca sido pronunciadas, passaram a constituir-se como mitos. Recordo o "play it again, Sam", que Rick nunca disse no "Casablanca", ou o "elementary, my dear Watson", que ninguém encontrará, posto na boca de Sherlock Holmes, em nenhuma linha de Conan Doyle. 
 
O debate político também se faz, muitas vezes, em torno de alguns desses mitos: Salazar nunca proferiu exatamente a frase "para Angola, rapidamente e em força", contrariamente ao que muitos portugueses pensam.

Vem isto a propósito da circunstância de, desde há muito, ter visto atribuída uma frase ao antigo presidente da República, Jorge Sampaio: "há mais vida para além do défice". À volta desta frase tem emergido, ao longo dos últimos anos, uma imensidão de comentários. Porque tinha curiosidade em perceber o que fora efetivamente dito (e o contexto em que o fora, o que não é despiciendo), fui à procura do texto verdadeiro. E o que é que descobri?

Primeiro, Jorge Sampaio nunca terá proferido a frase "há mais vida para além do défice". 

Segundo, a frase verdadeiramente dita pelo antigo presidente - "há mais vida para além do orçamento" - foi proferida num contexto específico que merece ser ponderado:

"Mas como já disse, o problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de todos: governantes, empresários e trabalhadores. Uma economia competitiva não é a que se baseia em baixos salários, mas sim a que dispõe de um sistema produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens e serviços de qualidade e bem valorizados nos mercados internacionais."

Alguém discorda?

Para alguns, "os fins justificam os meios". O diabo é que também esta frase nunca foi, contrariamente ao que a História acolheu, escrita por Maquiavel...

segunda-feira, outubro 31, 2011

Almoço

Há almoços gratificantes. Foi o caso de ontem, aqui em Paris. Memórias de vidas muito diversas, cruzadas por imagens de amigos ou conhecidos mútuos, recuperação de episódios vividos ou escutados, num fundo de sentimentos subliminarmente partilhados, numa sintonia geracional construída através de percursos diferentes, por onde desfiaram coisas da política e dos vários trilhos cívicos de gentes de hoje e de outros tempos, no culto algo anárquico daquilo que um autor brasileiro qualificou bem como "as minhas histórias dos outros". No fundo, são momentos como esses que, um dia, nos levarão a dizer: "lembras-te daquela bela almoçarada, com fulano e beltrano?". Afinal, as coisas boas da vida podem ser bem simples. Haja saúde. E fraternidade, claro!

Greenwich

A imprensa francesa refere que o governo britânico está a pensar introduzir, em 2012, um alinhamento com a hora do centro da Europa, abandonando a referência ao (seu) meridiano de Greenwich. Já nada é o que era, nem mesmo na velha Inglaterra...

Recordo que uma discussão similar teve lugar, um dia, no seio do governo português, nos idos de 1996. E que, contra algumas opiniões, prevaleceu a tese de que deveríamos manter a atual diferença face ao centro do continente. Se Londres deixar de servir de referência, será que, em Portugal, o tema vai também, de novo, ser repensado?

Diplomacia em tempo de crise

Agora que a chamada "diplomacia económica" está na ordem do dia das conversas e das decisões, apetece-me recordar aqui um texto que sobre o assunto publiquei, em maio último, na revista da AICEP, "Portugal Global", sob o título em epígrafe.

"Não há muito tempo, um colega de um país do norte da Europa, cujo tecido económico foi bastante menos tocado pela crise internacional, perguntava-me de que modo a nossa diplomacia se estava a adaptar ao tempo de exigência acrescida que o país atravessava. A sua curiosidade tinha a ver, não apenas com a possibilidade de estarmos a encarar uma melhor adequação do nosso dispositivo diplomático aos objetivos mais imediatos da ação externa mas, igualmente, quanto ao modo como o nosso próprio trabalho teria, ou não, sofrido uma mutação qualitativa, em função de alguma reversão de hierarquia de prioridades.

A questão era interessante, embora a resposta não fosse óbvia. A diplomacia, como instrumento executivo da política externa, configura-se com a evolução dos tempos, por uma reformulação de prioridades, decorrente de novos objetivos. Embora deva ter-se sempre presente – e sei que isto pode parecer chocante para alguns cultores do imediatismo – que o papel dos diplomatas, na fixação da imagem do país, deve ir sempre um pouco para além das conjunturas. Essa é a razão pela qual a resposta às solicitações prementes do presente deve ser, no seio da nossa ação externa, modulada em permanência com a necessidade de garantir a preservação dos interesses permanentes do país, numa perspetiva de coerência de longo prazo. A nossa história não se improvisa.

Indo por partes, eu diria que, em face da presente crise, a diplomacia portuguesa tem diante de si três linhas de adaptação.

Em primeiro lugar, dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros não deixou de se considerar, desde o primeiro momento, a importância de repensar a rede diplomática existente, dando atenção particular a áreas geográficas que, não tendo sido privilegiadas nas opções de distribuição de recursos funcionais no passado, convinha que passassem a dispor de uma maior atenção no futuro. Quero com isto dizer que zonas como o norte de África, os países do Golfo e certos mercados asiáticos passaram a entrar na nossa ordem de prioridades, com vista a tentar conseguir novos pontos de apoio à atividade empresarial. Isso tornou-se particularmente importante face a mercados cuja evolução previsível de crescimento pudesse, simultaneamente, vir absorver produção nacional que tivesse menos atratividade para os nossos parceiros tradicionais (em especial, europeus) e garantir espaços sustentados de progressão futura de novas linhas de exportação. Assim foi feito e, estou certo, a prazo, os efeitos ir-se-ão sentir.

A segunda linha é de natureza formativa. Não vale a pena esconder que ainda não está ainda criada, no conjunto da nossa administração pública que opera na ordem externa, uma cultura de trabalho em comum. As razões são diversas, do corporativismo a alguma incompetência. Com felicidade, faço parte daquele grupo de diplomatas que sempre teve uma muito positiva experiência de trabalho conjunto com as estruturas de promoção económica externa (do FFE à AICEP, passando pelo ICEP/API). Por razões diversas, sei que essa experiência não é idêntica à de muitos colegas da diplomacia portuguesa. Não vale a pena estar a distribuir culpas, até pela certeza de que elas não estarão sempre do mesmo lado. Algo tem de mudar neste âmbito e, para isso, de há muito que só vislumbro uma solução, que sei difícil de pôr em prática, por escassez de recursos humanos: promover estágios profissionais cruzados, tanto nas instituições como nas empresas e nas associações empresariais, com suficiente duração para que tal possa ter reais efeitos, num esforço geral de aculturação.

Uma terceira vertente tem a ver com a mudança no paradigma da intervenção das nossas embaixadas, com impacto na informação que produzem. Imagino que a abordagem pública da questão, numa publicação desta natureza, possa escandalizar alguns. Mas julgo ter um mínimo de autoridade experiência para exprimir o que adiante vou dizer.

A diplomacia portuguesa não se deve esgotar no apoio à projeção económica externa do país – no comércio, na promoção do turismo ou na captação de IDE. A atenção à imagem do país na ordem internacional, o cultivo das redes de interesses políticos e culturais que o bilateralismo histórico justifica, a promoção da língua portuguesa e a proteção da diáspora são outros tantos pontos importantes a salvaguardar, como decisivo é sabermos potenciar o nosso valor acrescentado nacional de natureza política, como país construtor de pontes e entendimentos, à escala global. Como a eleição recente para o Conselho de Segurança da ONU o provou. Porque tudo isso, ao funcionar positivamente em favor da imagem do país, acaba por ajudar à criação de um ambiente favorável à promoção dos nossos interesses económicos – e dispensem-me de dar exemplos, por razões que julgo óbvias.

Porém, e como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis,  entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos.

Mas que fique clara uma coisa: não defendo que a política externa portuguesa seja refém da promoção económica externa, que se opte por uma “reapolitik” de interesses, como se o MNE devesse passar a ser, unicamente, uma espécie de agência de promoção externa de negócios. Não deve sê-lo exclusivamente, mas deve sê-lo também. E, para isto, não são precisos novos despachos ou decretos. Basta haver vontade.

Uma das razões pela qual não defendo uma dependência excessiva da nossa política externa face aos nossos interesses económicos tem a ver com o facto, que pude constatar ao longo das mais de três décadas que levo de ação diplomática, de que essa mesma atividade económica está longe de ter uma coerência mínima: os mercados flutuam, as prioridades variam, a oferta “tem dias”, os nossos empresários – desculpem lá! – têm estados de alma flutuantes. Se a ação externa do país ficasse vinculada, rigidamente, às opções do nosso comércio externo, Portugal teria a imagem de um catavento!

Por isso, recomendo apenas prudência, bom-senso e troca intensa de informação. À nossa diplomacia pode e deve ser pedido um grande empenhamento na promoção da atividade dos nossos agentes económicos. Os diplomatas portugueses devem ser mobilizados para servirem de eixo às campanhas de estímulo à atividade económica externa, as nossas embaixadas devem ser a “casa” dos empresários. Mas tudo isto tem de ter uma coerência global, uma hierarquia de prioridades bem estabelecida, uma dotação mínima de meios e uma proporção adequada de empenhamento. Uma missão diplomática ou consular não pode ser mobilizada apenas porque um empresário o solicita: essa solicitação tem de corresponder a uma razoável contrapartida previsível das vantagens potenciais decorrentes para o país.

É para essa avaliação que a diplomacia espera poder contar sempre com o insubstituível papel técnico da AICEP, como estrutura com capacidade de aferição daquilo que é, a cada momento, o interesse económico prioritário do país na ordem externa. É nesse diálogo, que não é complicado se dele forem excluídos os egos e os reflexos de casta, que deve assentar a parceria constante entre a atividade económica externa e diplomacia portuguesas." 

A alguns observadores poderá parecer que a evolução subsequente ocorrida no tratamento deste tema, no tocante aos novos modelos institucionais em vias de criação, pode ter desatualizado o que acima se escreveu. Leiam bem. Não há a menor contradição entre o que foi decidido e espírito que neste texto defendo como devendo estar na base do nosso trabalho futuro. Nem podia haver.

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.