Agora que a chamada "diplomacia económica" está na ordem do dia das conversas e das decisões, apetece-me recordar aqui um texto que sobre o assunto publiquei, em maio último, na revista da AICEP, "Portugal Global", sob o título em epígrafe.
"Não há muito tempo, um colega de um país do norte da Europa, cujo tecido económico foi bastante menos tocado pela crise internacional, perguntava-me de que modo a nossa diplomacia se estava a adaptar ao tempo de exigência acrescida que o país atravessava. A sua curiosidade tinha a ver, não apenas com a possibilidade de estarmos a encarar uma melhor adequação do nosso dispositivo diplomático aos objetivos mais imediatos da ação externa mas, igualmente, quanto ao modo como o nosso próprio trabalho teria, ou não, sofrido uma mutação qualitativa, em função de alguma reversão de hierarquia de prioridades.
A questão era interessante, embora a resposta não fosse óbvia. A diplomacia, como instrumento executivo da política externa, configura-se com a evolução dos tempos, por uma reformulação de prioridades, decorrente de novos objetivos. Embora deva ter-se sempre presente – e sei que isto pode parecer chocante para alguns cultores do imediatismo – que o papel dos diplomatas, na fixação da imagem do país, deve ir sempre um pouco para além das conjunturas. Essa é a razão pela qual a resposta às solicitações prementes do presente deve ser, no seio da nossa ação externa, modulada em permanência com a necessidade de garantir a preservação dos interesses permanentes do país, numa perspetiva de coerência de longo prazo. A nossa história não se improvisa.
Indo por partes, eu diria que, em face da presente crise, a diplomacia portuguesa tem diante de si três linhas de adaptação.
Em primeiro lugar, dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros não deixou de se considerar, desde o primeiro momento, a importância de repensar a rede diplomática existente, dando atenção particular a áreas geográficas que, não tendo sido privilegiadas nas opções de distribuição de recursos funcionais no passado, convinha que passassem a dispor de uma maior atenção no futuro. Quero com isto dizer que zonas como o norte de África, os países do Golfo e certos mercados asiáticos passaram a entrar na nossa ordem de prioridades, com vista a tentar conseguir novos pontos de apoio à atividade empresarial. Isso tornou-se particularmente importante face a mercados cuja evolução previsível de crescimento pudesse, simultaneamente, vir absorver produção nacional que tivesse menos atratividade para os nossos parceiros tradicionais (em especial, europeus) e garantir espaços sustentados de progressão futura de novas linhas de exportação. Assim foi feito e, estou certo, a prazo, os efeitos ir-se-ão sentir.
A segunda linha é de natureza formativa. Não vale a pena esconder que ainda não está ainda criada, no conjunto da nossa administração pública que opera na ordem externa, uma cultura de trabalho em comum. As razões são diversas, do corporativismo a alguma incompetência. Com felicidade, faço parte daquele grupo de diplomatas que sempre teve uma muito positiva experiência de trabalho conjunto com as estruturas de promoção económica externa (do FFE à AICEP, passando pelo ICEP/API). Por razões diversas, sei que essa experiência não é idêntica à de muitos colegas da diplomacia portuguesa. Não vale a pena estar a distribuir culpas, até pela certeza de que elas não estarão sempre do mesmo lado. Algo tem de mudar neste âmbito e, para isso, de há muito que só vislumbro uma solução, que sei difícil de pôr em prática, por escassez de recursos humanos: promover estágios profissionais cruzados, tanto nas instituições como nas empresas e nas associações empresariais, com suficiente duração para que tal possa ter reais efeitos, num esforço geral de aculturação.
Uma terceira vertente tem a ver com a mudança no paradigma da intervenção das nossas embaixadas, com impacto na informação que produzem. Imagino que a abordagem pública da questão, numa publicação desta natureza, possa escandalizar alguns. Mas julgo ter um mínimo de autoridade experiência para exprimir o que adiante vou dizer.
A diplomacia portuguesa não se deve esgotar no apoio à projeção económica externa do país – no comércio, na promoção do turismo ou na captação de IDE. A atenção à imagem do país na ordem internacional, o cultivo das redes de interesses políticos e culturais que o bilateralismo histórico justifica, a promoção da língua portuguesa e a proteção da diáspora são outros tantos pontos importantes a salvaguardar, como decisivo é sabermos potenciar o nosso valor acrescentado nacional de natureza política, como país construtor de pontes e entendimentos, à escala global. Como a eleição recente para o Conselho de Segurança da ONU o provou. Porque tudo isso, ao funcionar positivamente em favor da imagem do país, acaba por ajudar à criação de um ambiente favorável à promoção dos nossos interesses económicos – e dispensem-me de dar exemplos, por razões que julgo óbvias.
Porém, e como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis, entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos.
Mas que fique clara uma coisa: não defendo que a política externa portuguesa seja refém da promoção económica externa, que se opte por uma “reapolitik” de interesses, como se o MNE devesse passar a ser, unicamente, uma espécie de agência de promoção externa de negócios. Não deve sê-lo exclusivamente, mas deve sê-lo também. E, para isto, não são precisos novos despachos ou decretos. Basta haver vontade.
Uma das razões pela qual não defendo uma dependência excessiva da nossa política externa face aos nossos interesses económicos tem a ver com o facto, que pude constatar ao longo das mais de três décadas que levo de ação diplomática, de que essa mesma atividade económica está longe de ter uma coerência mínima: os mercados flutuam, as prioridades variam, a oferta “tem dias”, os nossos empresários – desculpem lá! – têm estados de alma flutuantes. Se a ação externa do país ficasse vinculada, rigidamente, às opções do nosso comércio externo, Portugal teria a imagem de um catavento!
Por isso, recomendo apenas prudência, bom-senso e troca intensa de informação. À nossa diplomacia pode e deve ser pedido um grande empenhamento na promoção da atividade dos nossos agentes económicos. Os diplomatas portugueses devem ser mobilizados para servirem de eixo às campanhas de estímulo à atividade económica externa, as nossas embaixadas devem ser a “casa” dos empresários. Mas tudo isto tem de ter uma coerência global, uma hierarquia de prioridades bem estabelecida, uma dotação mínima de meios e uma proporção adequada de empenhamento. Uma missão diplomática ou consular não pode ser mobilizada apenas porque um empresário o solicita: essa solicitação tem de corresponder a uma razoável contrapartida previsível das vantagens potenciais decorrentes para o país.
É para essa avaliação que a diplomacia espera poder contar sempre com o insubstituível papel técnico da AICEP, como estrutura com capacidade de aferição daquilo que é, a cada momento, o interesse económico prioritário do país na ordem externa. É nesse diálogo, que não é complicado se dele forem excluídos os egos e os reflexos de casta, que deve assentar a parceria constante entre a atividade económica externa e diplomacia portuguesas."
A alguns observadores poderá parecer que a evolução subsequente ocorrida no tratamento deste tema, no tocante aos novos modelos institucionais em vias de criação, pode ter desatualizado o que acima se escreveu. Leiam bem. Não há a menor contradição entre o que foi decidido e espírito que neste texto defendo como devendo estar na base do nosso trabalho futuro. Nem podia haver.
A alguns observadores poderá parecer que a evolução subsequente ocorrida no tratamento deste tema, no tocante aos novos modelos institucionais em vias de criação, pode ter desatualizado o que acima se escreveu. Leiam bem. Não há a menor contradição entre o que foi decidido e espírito que neste texto defendo como devendo estar na base do nosso trabalho futuro. Nem podia haver.
8 comentários:
Caro Embaixador,
Gostei de ler. É certo que é um pouco em contra corrente, mas é texto que merece reflexão e fez muito bem em divulgá-lo aqui.
A sua leitura esfriará os entusiasmos de algum 'mainstream'.
Trata-se, sem dúvida, de um exercício de reflexão que espelha a sua experiência e a sua visão cosmopolita e bem informada. Tomara que os actuais decisores tenham ocasião de ponderar sobre estas matérias ao invés de irem a correr a favor da corrente.
Tenha uma boa semana, Embaixador.
Está atualíssimo. Cada vez mais.
Caríssimo Senhor:
Pelas "três linhas de adaptação" propostas, se deduz aquilo que já é o óbvio desde AC. A "diplomacia" portuguesa é ou tornou-se quase inútil, é perfunctória, gastadora e transformou-se num ofício que pouco mais serve que os seu próprios oficiais. A dedução é minha, o texto é da lavra do senhor. Quod erat demonstrandum.
P.S.Parabéns por reconhecer a inutilidade geral e a utilidade apenas marginal da função.
Com certeza que está actual e está, felizmente, cada vez menos actual a imagem do Embaixador do cocktail e do croquete. A economia deverá ser a locomotiva mas os interesses económicos e comerciais nunca deverão se sobrepor a interesses permanentes que não se tornam mutáveis de acordo com situações próprias da dinâmica dos mercados financeiros. O caso da Líbia - há uns meses era um mercado bastante apetecível para empresas portuguesas e hoje o que é? Não sabemos. Timor, pouco ou nenhum interesse tem para as empresas portuguesas mas, com certeza, que temos que ter uma presença obrigatória e permanente. Concordo que essa análise não será tão directa.
Contudo, a forma que está montada a nossa representação externa (diplomática e económica) não é a mais correcta, eficiente e adequada. Isso é claro. Tudo que seja tutela dividida ou tripartida não funciona no nosso país. Talvez seja uma questão cultural, funcionará melhor se o MNE chamar para si a tutela da rede diplomática e económica.
Caro Kabuenhapodre: o seu texto - que publico com o maior agrado - é a prova provada de que a alfabetização não resolve a iliteracia. "Chumbou" algumas vez no concurso para a carreira diplomática? Do seu tom resulta um certo despeito...
Um colega chamou-me a atencao para este tema neste blogue. Escrevo como anonimo, porque nao comento por esta via as politicas do governo portugues. No entanto e na realidade, basta levar a cabo uma breve pesquisa sobre o que fazem os paises ricos com uma dimensao semelhante a Portugal em materia de diplomacia economica para ver as diferencas e perceber que estamos a perder muito terreno. Claro que o BAB da diplomacia classica nao se alterou; ha que continuar a defender os interesses tradicionais do pais. Isso nao passa de uma evidencia para qualquer Estado. Contudo, mais do que nunca, o marketing externo de Portugal necessita atualmente de uma intervencao diferente daquela que tem vindo a ser praticada. A procura de oportunidades de negocio no exterior tem que ser explorada agora como nunca. A captacao de investimento externo, de turismo e a disponibilizacao de apoio para a internacionalizacao de empresas portuguesas tambem. Mas, para tal, precisamos de diplomatas diferentes (como torna-los diferentes? com formacao e com menos compadrio e nepotismo no MNE), salvo honrosas excecoes. E precisavamos que todos trabalhassem em unissono nas embaixadas, delegacoes da Aicep e representacoes do turismo de Portugal (desiderato este muito romantico...). Por conseguinte, muito tem que mudar na forma como agimos no exterior; e, por isso, considero coerente com a doutrina classica a forma como o autor do blogue analisa a materia, mas estou certo de que grande parte das suas opinioes se baseia em apreciacoes nao objetivas e nao documentadas. Partem seguramente tao-so de pressupostos comuns embebidos em tiradas da teoria classica e da sua vasta experiencia ao servico de uma maquina muito corporativista e conservadora. Isto, sem tirar qualquer valor ao autor do blogue no contexto das suas funcoes profissionais, as quais, com certeza, incluiram momentos expontaneos e excecionais de apurada defesa de interesses macro e micro economicos portugueses. Todavia, o panorama geral do MNE e da grande maioria dos funcionarios diplomaticos portugueses neste dominio nao deixa de ser muito pobre.
Caro Anónimo das 00:56: As minhas observações resultam tão só da minha experiência pessoal de 37 anos de MNE e 40 de função pública. São tão subjetivas como quaisquer outras e pretendem-se apenas como modestas pistas para tentar ajudar a melhorar o que se tem feito. Uma coisa elas não são: visões iluminadas que olham preconceituosamente para uma profissão que se não conhece, como se quaisquer outros grupos profissionais fossem imunes ao compadrio e nepotismo. Se nos dissesse onde trabalha, talvez se percebesse melhor o que que nos quis dizer.
Caro kabuenhapodre: há limites para os textos que estes comentários acolhem. Os endereços e números telefónicos do embaixador de Portugal em Paris estão disponíveis no site da Embaixada. Para um contacto por mail pode ser utilizado o "embaixador@embaixada-portugal-fr.org"
Enviar um comentário