Roland Barthes, que tenho dificuldade em classificar nas suas várias categorias como intelectual, teve uma parte muito importante da sua vida ligada à região sudoeste de França, onde se encontra sepultado junto da sua mãe. Quem leu o seu triste e póstumo "Journal de Deuil" perceberá melhor este encontro na morte. Ontem passei nesse cemitério, em Urt, perto de Bayonne.
Esta historieta é também a propósito de Roland Barthes.
Estávamos em 1973, na caserna da Escola Prática de Infantaria. Eu tinha por hábito, depois do encerrar formal das luzes, ficar a ler uns minutos mais, com uma lâmpada elétrica, que não incomodava ninguém. Numa noite, tinha comigo o "Mythologies", um dos primeiros livros de Roland Barthes, composto por peças publicadas na imprensa francesa, com leituras de uma surpreende imaginação e profundidade sobre temas simples do quotidiano, denunciando mitos da nova cultura de massas. O texto que estava a ler era o "La nouvelle Citroen", uma análise magistral, escrita ainda nos anos 50, sobre o impacto de uma nova viatura no imaginário francês. Trancrevo apenas esta frase desse texto, para se entender de que se tratava (e, a quem não conhece, recomendo vivamente que leia o livro, claro): "Je crois que l’automobile est aujourd’hui l’équivalent assez exact des grandes cathédrales gothiques: je veux dire, une grande création d’époque, conçue passionnément par des artistes inconnus, consommée dans son image, sinon son usage, par un peuple entier qui s’approprie en elle un objet particulièrement magique."
Subitamente, nessa noite, um tenente entra na caserna, numa visita rara de inspeção. Como eu estava deitado logo à entrada, e surpreendido com a minha solitária leitura, o oficial estende logo a mão para o livro e pergunta: "Ó nosso cadete! Que diabo está você a ler, a esta hora?". Esperava, talvez, literatura política, mais ou menos clandestina. Passei-lhe o livro para as mãos, ainda aberto na página da leitura. "Ah! E em francês!", saiu-lhe, inquiridor, já esperançoso numa descoberta. "Vamos lá ver então o que é que você estava para aqui a ver, às escondidas".
Um segundo depois, tudo mudou. Com um sorriso simpático, sai-lhe: "Citroen?! Você gosta de carros?". Devo ter dito que sim, o que nem sequer era ou é verdade. "Ora, sim senhor, aqui está uma boa leitura: livros sobre carros! Mas olhe uma coisa, homem: isto de carros franceses não é coisa que se veja. Eu gosto é dos italianos, são mais nervosos. Tenho um Alfa, sabe?". E eu que nem carta de condução tinha.