domingo, maio 02, 2010

Da cunha

Este não é um post consensual, desculpem lá!

Li há pouco no "Expresso online" (não sei se saiu na edição impressa) um artigo sobre essa instituição nacional que é a cunha, onde também se recupera um livro publicado sobre o tema.

Sou de opinião - e sei que muitos não concordarão - que a cunha é um dos símbolos que espelha o nosso subdesenvolvimento, um imenso atestado de menoridade nacional. É inevitável? Talvez seja, no país atual. Em Portugal, "mete-se uma cunha" com a maior naturalidade, porque quem a pede nem sequer receia ofender quem a recebe. A justificação é "latina": "se eu não meter uma cunha, como é que consigo ser atendido no hospital?". E, às vezes, até é verdade. Mas, se fôssemos um país sério, deveríamos viver permanentemente com a culpabilidade e a tristeza de sermos um país de cunhas. E não vivemos.

A cunha é o produto da pobreza da nossa sociedade, da inexistência de condições de igualdade para todos, da prevalência de um suposto conceito de solidariedade coletiva que absolve moralmente os "empenhos". Porque tem vários níveis, a cunha - no Brasil, chama-se "pistolão" - vai desde a inofensiva sugestão de um nome para um lugar de livre escolha até à pressão para a falsificação de um concurso para um fornecimento público, passando pela "apresentação" de pessoas e outros métodos mais ou menos inocentes. É que há cunhas e cunhas: conseguir, por um conhecido, um lugar num espetáculo é bastante diferente de uma corrupção com consequências patrimoniais ou profisionais. Porque as fronteiras entre diferentes escalões estão às vezes longe de definidas, e porque a reprovação social do ato frequentemente não acompanha a sua gravidade, em função do nível ético das pessoas envolvidas, a cunha progride sem pudor, da sugestão simpática à corrupção aberta.

Tenho duas experiências sobre cunhas que gostaria de partilhar.

Há uns anos, fiz parte de um júri de um concurso público de admissão a uma função. Antes que alguém o fizesse, avisei à partida, amigos e conhecidos: "quem me meter uma cunha por alguém, já sabe: essa pessoa, chumba!" Foi uma reação claramente desproporcionada, mas foi remédio santo! Creio que alguns leitores desde blogue recordar-se-ão ainda disso...

A segunda experiência, também com alguns anos, foi muito traumática: um pessoa que me era muito próxima pediu que "metesse uma cunha" num concurso público, cujos membros do júri eu conhecia muito bem, para o qual havia sete vagas e 10 concorrentes. O candidato tinha distantes relações familiares comigo. Recusei, claro. Tempos mais tarde, a mesma pessoa pediu-me que soubesse, apenas, se o candidato tinha sido ou não aprovado, porque os resultados já estariam decididos, embora não divulgados, e  lhe tinha surgido uma outra opção alternativa profissional, que não sabia se devia ou não aceitar. Acedi, falei ao presidente do juri e recebi a seguinte resposta: "Estavas interessado em que ele entrasse? Foi pena que não me dissesses nada! Ele até nem era nada mau, mas era o único que não tinha nenhuma cunha..." 

Devo confessar, contudo, que nem sempre a ocorrência de uma cunha é uma coisa necessariamente má: pertenço a uma corporação profissional onde a história de uma bem elaborada cunha - denunciada, mas por uma vez ineficaz e que a opinião pública portuguesa teima saudavelmente em não esquecer - nos livrou a todos de uma "praga". É que, afinal, ainda há cunhas que vêm por bem...

12 comentários:

Santiago Macias disse...

Este último parágrafo não é assim muito subtil. Nem pretende sê-lo, decerto.
Mas a história dos 7 candidatos e das 10 vagas tem uma enorme dose de perversidade.
Saúdo a sua posição e a franqueza do "post". E alinho totalmente com os princípios que enunciou. Coisa que me tem causado alguns dissabores, no concelho onde sou vereador. É a vida...

Anónimo disse...

Ai Não...
Dá é pano para mangas...

Por exemplo
Uma das dimensões atuais/Transversais... Dela

As cunhas invisíveis e proativas de esquerda/direita/centro...
Indutoras da concepção atempada da fórmula construída através dos requisitos dos candidatos...

"Filho de um Camarada/Amigo toda a vida trabalhou, "morreu com a roupa que tinha no corpo", não estou a influenciar, mas as notas dele correspondem a trabalho sustentado,mesmo depois de ajudar os pais na lida e precisa mesmo do emprego,ou então a pessoa é a melhor atendendo aos critérios... E os outros?!!!Não?Sim mas havendo necessidade de recorrer a critérios de desempate o rapaz é dos nossos?Sempre conhecemos a família e sabemos onde pendura o pote, (Além de quem fez trabalho de campanha)?..."

Quem parte e reparte...

"Só faltava que os filhos de responsáveis políticos ou de entidades públicas fossem prejudicados das suas oportunidades e carreiras por força dos cargos que os pais ocupam. Dos casos que são citados e que conheço, o acesso a todos esses lugares foi por exclusivo mérito próprio"

Convenhamos, que faz sentido...
Cunha ou networking?
Preciso que alguém me ajude a dissociar...
Só para encontrar a diferença da diferença Moral.
Talento ...Competência... Mais saber...
Que é difícil é ...

Quando acabarem acaba-se o maior espaço de ilusão de voto previsível.
Temos pena...

Isabel Seixas

Ouvi falar de um senhor que acedia a todas... Se se concretizavam! pronto.Se não... -Nem imagina bem tentei...Mas...O que é que aquele membro do júri tem contra?!!!Si
É a vida

Julia Macias-Valet disse...

Nao é so nacional...em França também existe = PISTON !

Helena Oneto disse...

“[...] a cunha é um dos símbolos que espelha o nosso subdesenvolvimento, um imenso atestado de menoridade nacional.[...]

[...] A cunha é o produto da pobreza da nossa sociedade, da inexistência de condições de igualdade para todos, da prevalência de um suposto conceito de solidariedade coletiva que absolve moralmente os "empenhos"[...].”

Excelente também, e igualmente feroz, o artigo do Expresso. Li alguns dos comentários deveras pertinentes a ele feitos. Adorei um que termina assim :

“[...]O estatuto da "cunha" é abominável..é a forma como incompetentes ou responsaveis por incompetentes alcançam lugares ou posições iguais ou superiores aos que os competentes conseguem através do seu esforço e empenhamento..

Palavras chave no universo da "cunha"..Dr."Cunha Valente" ou Eng. "Valente Cunha"..são nomes que abrem mais portas que a fábrica de chaves do Areeiro..basta utilizá-los..
Por mera experiência já os utilizei..gostaria de falar com o sr. fulano de tal..venho da parte do sr. (um daqueles dois que referi)...a resposta normalmente é : faça o favor de entrar...lol..experimentem...”

Somos realmente um país do terceiro mundo (sem ofender os outros, claro...)!

Anónimo disse...

Deve faltar uma palavra no título, não é? Não será MARTINS DA CUNHA?

Guilherme Sanches disse...

Só a agilidade literária do autor seria capaz de abrir com esta subtilidade o sentido duplo do, deixem-me chamar-lhe "poste Da cunha".
E já agora, peço licença para abusar da hospitalidade e colocar dois comentários. Obrigado.

Comentário 1 (a cunha em si):

Não é consensual, de facto, este post.
Portugal não é um país de cunhas. Li o artigo publicado, li as cunhas mais metidas, li os comentários que foram feitos, li este post e respetivos comentários, e ninguém reconhece que tenha metido uma cunha... Ninguém! Pelo contrário - toda a gente é figadalmente contra.
Mas todos sabemos que isto é como as bruxas... Pero que las hay, las hay!
Pedir a alguém que fale com o amigo para que "assine lá aquela porcaria, que está em cima da secretária dele há três meses, e que só falta mesmo a assinatura..." é cunha?
Para mim, desde que seja para agilizar e qualificar ou abreviar, sem que disso resultante ocorram quaisquer atropelos legais, benefícios ou prejuízos para quem quer que seja, não é cunha.
Mas é tão movediça a conversa sobre este tema, sobretudo para mim que detesto zedir (eu digo que para mim, pedir se escreve com z, mesmo no fim do alfabeto), que me apetece perguntar: quem é que tendo um estatuto influente não o coloca à frente ou em vez do seu próprio nome ou apelido?
O próprio jornalista, propagador de moralidades ou moralismos, antes, depois ou em vez de dizer o nome, não dirá - "eu sou jornalista..."? E se a publicação em que trabalha é de relevante prestígio, não dirá mesmo " sou jornalista do Semanário tal..."?
E isso é para quê? Não é cunha, mas não será uma espécie de "gazua"? E qual é a diferença?
Um abraço

Guilherme Sanches disse...

Obrigado pela segunda oportunidade.

Comentário 2 (uma cunha - ou talvez não)

Às portas de Braga, numa aldeia com 2,66 Km2 e 1100 habitantes, incluindo eu, transmontano geograficamente quase espanhol.

O habitat minhoto de casario disperso, onde os vizinhos quase não socializam, e uma população a envelhecer, para quem a desejada reforma transforma a vida numa solidão imensa.

Uma IPSS pela qual luto, num gesto de resposta às necessidades sociais locais. A troco de nada mais do que o egoísta prazer de ajudar a troco de nada.

Há umas semanas, no auditório a quem a Diretora da Segurança Social de Braga se dirigia, quase me comovi, ouvindo um apelo à sociedade civil para colaborar na atividade social em complemento do que a Segurança Social devia fazer. Esta, a Segurança Social, estaria disposta a ajudar no que fosse preciso. Dias depois, precisávamos de um pré-parecer técnico - não era uma cunha, só um parecer prévio, antes de gastarmos em projeto o dinheiro que não tínhamos - um engenheiro que eu próprio iria buscar, levar ao local sobre o qual queríamos uma opinião, e levá-lo de regresso à Segurança Social. Por toda a conta, coisa para três quartos de hora no máximo.

Ajudaram-nos bastante. Isso não fazemos - leiam a Lei - está lá tudo escrito!

A seguir, numa reunião com o Vice-Presidente da ARS do Porto, sobre o mesmo assunto, que um errado enquadramento jurídico (da ARS) demorou e fez demorar.
Seriam dois ou três dias, disseram-nos em Braga. Passaram três meses, faz esta semana. Perante a questão sobre o tempo demorado, foi-nos dito que não somos só nós, que têm 4 milhões de utentes, não sei quantas dezenas de Direções e mais não sei quantas centenas de Centros e não sei que mais. Ou seja, que o nosso processo demora porque os processos dos outros estão primeiro - ou porque o nosso está depois.

O nosso processo está sempre depois.

Não sei que outros estão ou colocam em primeiro, mas há três anos que não conseguimos ter mais do que papéis a pedir mais papéis.

Aquela da cerveja sagres e do taxista inspirou-me: não haverá por aí alguém, nos ilustres seguidores deste Blog, que apesar de ser contra, possa meter uma..., perdão, que possa dar uma ajudinha? Nem sequer falamos de dinheiro, só queremos mesmo é fazer tudo legal.

Sem cunhas, pensava eu.

Desculpem o oportunismo, mas o tema sugere e eu fico pessoalmente muito agradecido.

José Barros disse...

O que não é normal é ter-se comportamentos de prepotência em lugares electivos ou em Ministérios onde se deve estar ao serviço de todos e não ao serviço de familiares, de compadres ou de amigos, agindo como age qualquer pequeno empresário dentro da sua própria empresa. O que não é normal é existirem situações de aflição que levam as pessoas a terem fé nas cunhas. O que não é normal é “selarem-se” contratos com empresas onde há laços de afectividade e interesses à mistura. O que não é normal é o povo português ter esta quase genuína ideia de que para resolver o mais pequenino problema é preciso utilizar a cunha. O que não é normal, portanto, é continuar a haver tantas pessoas com o chapéu na mão em qualquer repartição pública tantos anos depois de Abril. O que não é normal é, quando damos o nosso cartão de visitas a alguém, termos esta necessidade de acrescentar, “se precisar de alguma coisa...”
O que não é normal é que os que pedem cunha precisem de cunha e aqueles que andam sempre de cunha na mão tenham aquele desmedido gozo e prazer de a utilizar a torto e a direito...

Anónimo disse...

Subscrevo cabalmente o seu post. E até acredito que dificilmente encontraríamos alguém que não se manifestasse a favor dos princípios que o enformam. A mesma dificuldade que teríamos em encontrar alguém que, na primeira oportunidade, não recorresse à célebre instituição. Até porque se gerou a convicção de que isso era normal, aceitável, inofensivo.
A verdade, porém, é que meter ou aceitar uma cunha, furar a fila, ultrapassar pela berma, mais não é do que atropelar o direito de alguém. E tudo isto não passa do aperitivo ao prato principal corrupção, cujo conceito, depois de uma bem recente decisão judicial, carece de ser revisto. É que, face ao douto entendimento dos não menos doutos magistrados, - e assumindo que ela continua a não ser permitida pelo direito português -, ficamos sem saber onde começa, onde acaba e, afinal de contas, o que será corrupção!

JR

Anónimo disse...

De facto, essa instituição esta presente em todos os sectores da vida nacional... Poderiamos mesmo festejar o dia nacional da cunha... com mais um feriado merecido.

Se é verdade que cultivamos a cunha com inusitado esmero, essa instituição também prolifera ca por França. E isso, apesar do "pais da igualdade" se ter dotado dum arsenal institucional e juridico que visa uma maior transparência. O recrutamento nas universidades seria um case study...

Mas devo reconhecer que, nos campos da cunhas, nos Portugueses nos movemos com muito mais à vontade. Embora também ja tenha recorrido a essa instituição, procuro aperfeiçoar-me para estar à altura das minhas origens. Não fosse eu um doutorado desempregado... E esse contingente esta cada vez mais à cunha...

E por favor não riam ao ler o meu nome...

Manuel Antunes da Cunha

Anónimo disse...

Et la Recommandation d'Affaires ?
… sur la recommandation, sur sa recommandation, à la recommandation, à sa recommandation, sous la recommandation, sous sa recommandation...

«...É que, afinal, ainda há cunhas que vêm por bem... »

C.Falcão

Fenêtre du Portugal disse...

Como um outro comentador, também saúdo a franqueza do post.

Bem, mas afinal, Sr Embaixador, vamos directamente ao assunto :
Uma "cunhazinha" para a minha filha efectuar um estagio na Embaixada de Portugal em França. Faz parte das coisas possíveis ?

Eh eh ! :-)
(Humor, obviamente)


Mario Pontifice

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...