O presidente da República está de visita a S. Tomé. Em 1984, coube-me a mim a tarefa de preparar a visita do presidente Ramalho Eanes a esse país. (Anos mais tarde, também por ali andei a organizar uma visita do primeiro-ministro Cavaco Silva).
Estava então colocado em Angola e, a pedido do embaixador Quevedo Crespo, que chefiava a missão em S. Tomé, cheguei uns dias antes, para ajudar a preparar os eventos.
A capacidade logística santomense não estava, à epoca, à altura mínima de uma operação daquela envergadura, que incluía transporte, alojamento e acolhimento, por alguns dias, de um significativo número de pessoas. Inaugurava-se então a extensão da pista do aeroporto de S. Tomé e o avião da TAP transportava uma larga comitiva, que aliás sairia dali para Kinshasa, no termo da visita.
A nossa pequena Embaixada em S. Tomé considerava que não tinha massa crítica suficiente para arcar com a preparação organizativa. Ora, três anos antes, eu tinha tido a meu cargo, na Noruega, a preparação de uma outra visita de Estado, também do presidente Eanes. Daí, talvez, a ideia da minha convocatória. Porém, as diferenças de meios eram do dia para a noite, como pude constatar desde o primeiro momento. E a tarefa tornou-se quase um pesadelo, devo hoje confessar.
Por um daqueles milagres que só as redes da lusofonia proporcionam, fui surpreendido com o facto do então chefe de protocolo santomense ser um velho amigo meu, infelizmente já falecido - o Eurico Espírito Santo, colega de noitadas no Porto, nos anos 60, figura popular na academia portuense e afamado jogador de basquetebol do CDUP. Sem a sua ajuda e sem o seu espírito de "desenrascanço", algumas coisas não teriam sido possíveis, nessa complexa visita.
Desde logo, confrontámo-nos com o facto de, poucas horas antes do banquete oficial que o nosso Presidente daria ao Presidente Pinto da Costa (para as novas gerações: trata-se de outra pessoa daquela que estão a pensar...), não haver disponibilidade de talheres. Dado o alarme, e num carro que um antigo colega de liceu, residente em S. Tomé, tivera a amabilidade de me emprestar, lá fui com o Eurico Espírito Santo, munido de uma "requisição oficial" da Presidência da República santomense, buscar, à famosa e vetusta Pousada de S. Tomé, os talheres necessários. Recordo ter subscrito uma declaração, em que me responsabilizava pessoalmente pela respectiva devolução. Dou-me conta de que não controlei isso depois...
O jantar, num espaço ao ar livre de uma antiga roça, decorreu com a normalidade possível nestas circunstâncias. Porém, a certa altura do repasto, detetei alguma agitação na tenda presidencial, onde os dois Presidentes e alguns altos dignitários se sentavam, naquele modelo de mesa tipo "última ceia", voltada para o "povo", que é um vício arraigado de certos protocolos.
Por uns instantes, exausto que estava de dias infernais de trabalho, tentei ignorar a movimentação, continuando a conversa com o João Paulo Guerra e o meu colega Castro Brandão, que recordo como companheiros de mesa. Porém, ao final de uns minutos, ao ver a cara afogueada e a movimentação preocupada da assessora do presidente, Ana Gomes, acabei por ir ver o assunto de perto.
O que se passara? O nosso Presidente pediu, a certa altura, um pouco mais de vinho, para, sobre a respectiva qualidade, trocar impressões com o seu homólogo local. E trouxeram-lhe... água! Insistiu e voltou a vir água! Chamados os responsáveis pela mesa presidencial, constatou-se, no "backstage", que já não havia mais vinho. E estávamos ainda a meio do jantar!
Ora acontecera, bem antes do jantar, que eu detectara, na coreografia do pouco fiável grupo de empregados que tomava conta do "catering", uma multiplicidade de olhares, quase lúbricos, fixados sobre as caixas que estavam a ser abertas, do excelente vinho que tinha vindo com a nossa comitiva. Algo me disse, então, que seria avisado pôr de parte algumas caixas, o que fiz na mala do carro que estava a usar. O que se estava a passar justificou, assim, em pleno, a minha prudência.
Em S. Tomé, foi ver para crer: ao contrário do bíblico milagre das bodas de Caná, o vinho havia-se transformado em água...
Perante a "crise", lá fui, com alguém da Embaixada, buscar as garrafas de reserva ao carro, as quais ficaram, a partir de então, sob a tutela ajuramentada de alguém de presumível confiança. E - revelo agora "para a História"! - levei discretamente comigo duas garrafas desse excelente vinho para a minha própria mesa! (Não têm nada que agradecer, João Paulo Guerra e Fernando Castro Brandão!)
Os Presidentes puderam regressar, finalmente, já com o necessário apoio líquido substantivo, à elevada temática etílica para a qual derivara a conversa de Estado.
Passaram 34 anos. Só posso desejar que nada de similar se repita na animada visita do presidente Marcelo Rebelo de Sousa.