Sabem o que é a Gomes? É provável que a maioria dos leitores deste espaço não saiba. Tal como acontece em quase todas as cidades, Vila Real tem um local de café de culto. No nosso caso, é a Pastelaria Gomes.
Porquê a Gomes? Porque sim. Historicamente, distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser um pouco mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, o Plácido já não estranhava ver a gente atravessar a rua.
A Gomes começou na vizinha “Gomes velha", nos anos 20 do século do mesmo número, onde me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e em que hoje ainda estaciona essa figura de bem que é o seu filho e meu amigo Tito Gomes. Por lá se vai pelo bolo-rei e pela bola de carne, pelas "cristas de galo", pelos “éclairs” ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" (que ideia foi essa de lhes mudarem o recheio?!) de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz.
Foi depois construído, nos anos 50, o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que, durante décadas, ninguém viu funcionar. Tinha, no alto, um mastro com uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta, pela noite dentro, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.
Se a memória me não falha, a Gomes foi o primeiro café de Vila Real onde as mulheres podiam. com naturalidade, sentar-se sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre em cima) com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada de uma senhora na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a parte “social” da Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.
Na Gomes, sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo em detalhe para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", tipo “polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam alto, para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.
A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do meu desaparecido amigo Zé “Foquita” Araújo, de samarra pelos ombros), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, que foi lugar dos jornais com estaca de madeira e onde, durante muito tempo, esteve situado o telefone preto (“chamam ao telefone o senhor...”). Por muito tempo, essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria o que isso é, mas quem não for doutro tempo de Vila Real sabe lá quem foi o Achilles!) induziam timidez nos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio do pessoal sentado no “balcão” ou de costas para as “grades”.
No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que em tempos se prolongava pela esplanada que aí havia, mas com esta agora misteriosamente reduzida ao largo do Pelourinho. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas ao Afonso - a alma atenta e sempre simpática do serviço, um pilar da casa cuja dedicação e importância espero que seja bem entendida pela gerência.
Foi pela Gomes que comecei a parar, ainda nos meus tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política.
Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste espaço me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram por algum tempo ao Governo civil.
A Pastelaria Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi de grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da “Situação” ou da “Oposição” - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem.
Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. Por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.
A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada. O pessoal, embora sempre simpático e educado, tem em alguns casos um estilo profissional “pela rama”, de recrutamento aparentemente errático e excessivamente rotativo. Talvez o defeito seja meu, que venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José.
A Gomes é já uma instituição e as instituições têm rituais sem os quais a sua identidade de esvai. Não se lhe pedem grandes mudanças (até se agradece que as não façam), requer-se apenas constância e perseverança na atitude profissional de uma casa que, tendo hoje uma nova frequência e diferente clientela, tem obrigação de conservar as caraterísticas que a qualificaram como a sala de visitas da cidade. Atenção a isto, ó gente da Gomes!
Ontem, dia de Natal, não foi “dia de Gomes”. Mas há um lugar que nunca "fecha" e à volta do qual é a própria cidade que gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do Pelourinho. É que uma coisa é a Gomes, outra coisa é a esquina da Gomes, consagrada como tal por uma placa da confraria dos “Pyjamantes”, um prestigiada tertúlia vila-realense.
Por essa esquina nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, essa é a sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que no vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outro), o que, nesta época natalícia, é logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que utilizada até aos Reis.
Por ali se passeiam, nos dias 25 de dezembro e seguintes, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas de véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, uma memória sedimentada desde a infância ou aprendida por adesão voluntária ao espírito do Marão.
A Gomes e a sua esquina continuam, contra ventos e marés, a ser o lugar geométrico afetivo de Vila Real. Alguns dirão: a Gomes já não é o que era! Eu digo: deixem estar a Gomes como está, conservem-na com carinho e prestarão um inestimável serviço à identidade de Vila Real. Mai’nada!
(Em tempo: este texto recupera partes de um post publicado em 2012)