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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.
O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.
Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).
A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!
Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:
- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.
- A França, talvez.
- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?
(Pausa longa)
- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!
- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?
- Talvez da Inglaterra...
(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).
- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?
- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!
Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.