quinta-feira, agosto 21, 2025

Durmam bem!


Desde 2014 que guardo esta fotografia de uma tarde de Gaza.

"A Arte da Guerra"


Caso tenham interesse em ouvir a conversa, desta vez monotemática e em modo estival, que tive com o jornalista António Freitas de Sousa, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal do "Jornal Económico" sobre temas internacionais, ela aqui fica.

quarta-feira, agosto 20, 2025

Primakov e a NATO


"Ainda hoje de manhã, na reunião da NATO, disse ao ministro Gama que vocês organizaram uma excelente cimeira da OSCE, em Lisboa, há poucos dias. Se soubermos trabalhar à luz do que ali foi decidido, as coisas na Europa podem vir a correr muito bem". Quem me dizia mais ou menos isto, naquela noite de 11 de dezembro de 1996, era Yevgeni Primakov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, onde Boris Ieltsin era então presidente. Eu acabara de ser-lhe apresentado, antes do jantar. 

Primakov fora a Bruxelas convidado pelos ministros da NATO. Aproveitando a sua presença na cidade, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia organizaram um jantar de trabalho com o seu colega russo. 

Muitos dos presentes tinham estado na reunião da NATO, nessa manhã. Não era o meu caso. Em outras tarefas em Bruxelas, como secretário de Estado, substituia no jantar Jaime Gama, que tivera de regressar a Lisboa. "Já ouvi o Primakov falar esta manhã. Acho que ele não vai dizer à União Europeia coisas diferentes das que disse na NATO. Depois conte-me", foi o que me lembro do telefonema que recebi de Jaime Gama, já do aeroporto. De facto, não disse.

Primakov, nesse jantar, em que era anfitrião o ministro irlandês dos Estrangeiros, Dick Spring, voltou a referir-se com ênfase à Cimeira da OSCE em Lisboa. Nesse tempo em que quase metade da minha vida se passava fora de Lisboa, eu falhara a reunião da OSCE em Lisboa. Nem eu desconfiava que, meia dúzia de anos depois, a OSCE se viria a cruzar comigo, durante a presidência portuguesa da organização. Não recordo, aliás, que o tema OSCE tivesse suscitado grande entusiasmo naquele jantar oficioso no edifício do Conselho. 

O tema do jantar eram as relações entre a Rússia e a União. Tudo parecia ir bem nesse domínio. O ministro russo sossegou os presentes: os alargamentos da UE que estavam em curso de preparação, embora parecessem a Moscovo "desnecessários", não era algo que a Rússia visse com grande contrariedade. Não havia entusiasmo, mas não era por aí que os problemas surgiriam. Talvez Primakov pensasse que a complexidade técnica dos processos de adesão acabaria por atrasar muito a sua concretização.

Coisa diferente, porém, era a ideia do alargamento da NATO, fez questão de frisar Primakov. Temendo que a agenda deslizasse, Dick Spring, que ali representava um país neutral e fora da NATO, tentou mudar de conversa. A NATO não era o tema. 

O britânico Malcom Rifkind, naquele seu tom pespineta que tanto desagradava a Margareth Thatcher, não lhe fez a vontade e, até ao final, para evidente desagrado de Spring, o assunto do jantar acabou por ser o alargamento da NATO. Primakov começou por dizer ser sua firme convicção que a ampliação da NATO conduziria inevitavelmente a uma nova divisão da Europa. Lembro-me da prudência do ministro alemão, Klaus Kinkel, que procurava deitar alguma água na fervura. Tenho também na memória que o francês Michel Barnier, que ali representava Hervé de Charette, no seu tom algo pomposo (mas não mais do que de Charette, que era conhecido pela sua arrogância insuportável), se embrulhou num discurso confuso e pouco claro sobre a atitude de Paris, na consabida leitura própria que o seu país nunca se dispensava de procurar ter sobre a segurança europeia. A França estava então afastada da estrutura militar integrada da NATO. 

O ministro russo, na linha de uma doutrina que Moscovo não abandonaria, embora declinada de várias formas e feitios, falou do facto da "segurança ser indivisível", isto é, não dever resultar na segurança apenas para alguns, fossem eles a NATO, a União Europeia ou mesmo a CEI (a frágil estrutura de coordenação inter-estatal pós-soviética que, sem sucesso, a Rússia procurou por algum tempo alimentar). E Primakov insistiu: na arquitetura de segurança europeia, a OSCE devia ser o ator principal. A exemplo de vários outros presentes, não me recordo de ter intervindo na conversa. 

Como me recordo desta conversa?, inquirirá o leitor. Ora essa! Não é todos os dias que se janta com um ministro dos Estrangeiros russo.

Hoje conhecemos bastante bem as diferenciadas leituras que os alargamentos da NATO acabaram por ter. A Rússia coloca-os nas "root causes" da crise que o mundo atravessa, a "nova Europa", assim crismada por Donald Rumsfeld (que, à vista de Trump, passaria hoje por um republicano apresentável), nem quer ouvir falar do assunto. E assim vai o mundo. 

Primakov era então um homem visivelmente respeitado pelos seus colegas ocidentais, quanto mais não fosse pelo seu modo urbano de tratar temas polémicos. Chegaria a primeiro-ministro. Ainda pensou candidatar-se à presidência da Rússia, mas um tal Vladimir Putin estava já uns passos à frente. Acabou por dar-se bem com ele. Morreu há uma década. O "The Guardian" fez-lhe um obituário precioso.

Fazer a paz e fazer as pazes

1. A Noruega é um país com uma história digna e séria. O comité que atribui o Prémio Nobel da Paz é constituído por um grupo de personalidades selecionadas pelo Storting, o seu parlamento. Se acaso caíssem no ridículo de vir a escolher Trump, a Noruega entraria no anedotário internacional.

2. Os "acordos de paz" que Trump diz ter conseguido em seis meses, são, em todos os casos, meros arranjos pontuais, compromissos de conjuntura que, em nenhuma das situações, resolvem as raízes de fundo dos conflitos, pelo que podem desfazer-se de um instante para o outro.

3. Se Trump viesse a ser premiado em Oslo por uma eventual trégua obtida na Ucrânia, com a finalidade de travar a perda de vidas, seria importante lembrar, na ocasião, que ele é exatamente a mesma pessoa que não objeta a que os israelitas chacinem palestinos às dezenas de milhares.

4. Como se viu pelo comportamento dos seus líderes em Washington, a Europa vive atarantada, não com o poder americano (é o mesmo que Biden tinha), mas com o modo despudorado como Trump o exerce. Por isso, embora o despreze, humilha-se a bajulá-lo, numa hipocrisia medíocre e triste.

Belos tempos!

 

Uma iniciativa de Henrique de Freitas.

terça-feira, agosto 19, 2025

Sem surpresas

Era expectável que Trump excluísse a possibilidade de colocar tropas americanas na Ucrânia, inseridas numa eventual operação de paz. O ambiente na América para qualquer aventura "boots on the ground" é nulo. A "participação" de que Trump falou deve ser no quadro da monitorização.

Chegou o carteiro

Trump disse que não gosta do voto por correspondência. Eu também não, mas reconheço que, em certas circunstâncias, é difícil evitar esse mecanismo.

Vistas

Alexander Stubb, atual presidente da Finlândia, que eu e vários diplomatas portugueses conhecemos bem há mais de 30 anos, percebeu tudo muito rapidamente: "I should think that Russia’s view of security guarantees is quite different from our view.”

Aliás, Maria Zakharova, a porta-voz de Moscovo foi clara: “Russia categorically rejects any scenario that envisages the appearance in Ukraine of a military contingent with the participation of NATO countries.”

Troféus


É um gesto muito interessante da parte de Donald Trump transformar a prateleira sobre a lareira da Sala Oval num espaço de exibição dos troféus do Grupo Desportivo dos Funcionários da Casa Branca.

Local

Em cada rotunda do país, há uma mão cheia de cartazes para as eleições autárquicas. Quando se fala de "confiança", quase sempre isso significa pedir o voto para quem já está no poder. Já a "mudança", que também enxameia a propoganda, é para tentar isso mesmo. 

segunda-feira, agosto 18, 2025

Prova de força

Trump é um visível ignorante em termos geopolíticos. Diz barbaridades simplórias sobre coisas complexas. Mas sabe duas coisas verdadeiras: que, até ver, ninguém tem mais poder do que a América e que as armas nucleares são a chave de poder de qualquer potência que se preze.

De caras


Salvo no caso de Merz (a BlackRock ensinou-o a fazer "cara de poker"), o olhar dos líderes europeus à volta de Zelensky refletiu o desespero coletivo depois do encontro com Trump. Todos desprezam Trump, todos o temem, todos acabarão por fazer o que ele quiser. E ele sabe isso.

Duas Américas

Não há uma única América, estão os europeus a aprender. Houve uma América que levou a Europa a pensar que era possível trazer a Ucrânia para o "lado de cá", a fazer parte da sua fronteira de segurança. E há esta.

Lembrar Kekkonen

Na conversa com Trump, Alexander Stubb, presidente da Finlândia, lembrou o "modus vivendi" que o seu país encontrou com a Rússia no termo da 2 ª Grande Guerra. Há uns anos, a Rússia talvez tivesse aceitado a "finlandização" da Ucrânia. Agora é tarde.

Ai Europa!

Um dos momentos mais patéticos da reunião à mesa entre Trump, Zelensky e os líderes europeus foi o elogio feito pelo presidente americano a Ursula von der Leyen, pelo resultado na negociação comercial entre os EUA e a União Europeia. Foi um esmerado encadernar de um "diktat".

Estejam atentos

Não excluo poder estar enganado, mas ver os europeus (já) empenhados na discussão das garantias de segurança para uma futura paz na Ucrânia parece significar que dão por adquirida a "troca" de territórios.

E a outra paz?

O Comité Nobel ficaria na História se, por uma vez, mudasse o seu método de trabalho e anunciasse: Trump será prémio da Paz se obrigar Israel a aceitar o Estado Palestino e, até lá, facilitar a gestão de Gaza por uma entidade internacional neutral. E que, sem isso, nada feito!

Táticas

O tom de Gouveia e Melo contra Luís Montenegro, por causa dos incêndios, pode vir a custar-lhe algum eleitorado "laranja". Que contas estará o almirante a fazer?

A autonomia de Zelensky

A única coisa óbvia é que o facto de Zelensky ir em companhia europeia ao encontro de amanhã com Trump amanhã é algo significativo. Depois, cada um infere o que lhe apetece.

A estamina de Trump

Qualquer que seja a opinião que possamos ter da personagem Trump, uma coisa é certa: o homem tem uma estamina física notável para a idade. Estar na berlinda e a falar quase todos os dias para a imprensa é obra! É claro que o "doping" do desejado prémio Nobel faz milagres!

domingo, agosto 17, 2025

Portugal e Israel


Na revista "Visão" desta semana, escrevo um texto em que analiso as relações entre Portugal e Israel, desde o 25 de Abril. 

Na semana anterior, tinha ali inserido um artigo sobre o modo como o novo Estado de Israel, criado em 1948, viveu com a ditadura do Estado Novo.

Não transcrevo aqui artigos da "Visão": a revista atravessa um período de grande dificuldade, pelo que aconselho que a comprem.

sábado, agosto 16, 2025

Alasca 4

1. Putin conseguiu evitar que Trump lhe impusesse um cessar-fogo, que de todo não lhe convinha, porque perdia o ímpeto ofensivo e, essencialmente, permitia à Ucrânia refazer o seu dispositivo militar. Foi a grande vitória russa em Anchorage.

2. Putin não vai conseguir que Trump pressione os europeus a deixarem de armar a Ucrânia, porque o negócio de armas americano é um lóbi demasiado forte. Provavelmente, vai ter de viver com isso. Além disso, a "desmilitarização" da Ucrânia não é concebível.

3. A próxima e muito difícil "batalha" de Putin é garantir que os europeus não colocam tropas na Ucrânia, para as famosas "garantias de segurança". Trump já lhe fez "meio favor", ao dizer que retiraria as garantias NATO. Mas Putin nunca aceitará "boots on the ground" europeias.

4. Se Trump conseguir impor a Zelensky a entrega à Rússia do terço restante de Donetsk, a Ucrânia perderia cinco áreas fortificadas vitais, criadas depois de 2014. Para a Ucrânia, significaria a "entrega dos pontos". Parece-me muito difícil que isso aconteça.

5. Putin poderá viver facilmente com as linhas da frente que existem hoje em Zaporizhia e Kherson. Ao que se sabe, é sua cedência para recuperar o resto de Donetsk. Se o conseguisse, seria um excelente negócio, não perdendo a central nuclear de Zaporizhia.

6. Putin quer obter dos EUA uma recusa formal à possibilidade de entrada da Ucrânia para a NATO. Trump pode dar-lha, mas é duvidoso que consiga blindar o futuro. Um estatuto de neutralidade da Ucrânia, no modelo austríaco, não parece possível.

7. No atual estado de coisas, é implausível que Trump venha a tentar impor aos europeus uma "arquitetura de segurança" que acomode uma revisitação das "root causes" que Putin continua a referir, isto é, a reanálise das fronteiras NATO pós 1997.

8. Não é concebível que, se os EUA conseguirem pilotar até ao fim um processo de paz, não venham a ser conduzidos a levantar as sanções à Rússia. Nada indica, contudo, que venham a conseguir que os europeus procedam de idêntica forma.

9. Parece ser muito difícil aos EUA, por muito boa vontade que tenham para com Putin, conseguir desmantelar os mecanismos jurídicos internacionais entretanto levantado contra este e contra a Rússia. Mas o acesso aos mecanismos de transações financeiras é plausível.

10. Para além dos ganhos territoriais "de facto" (será difícil serem "de jure"), a grande vitória da Rússia na Ucrânia, para além de não ter de pagar quaisquer indemnizações, seria a substituição de Zelensky. A Europa terá aqui a sua real prova de força, ou de fraqueza.

11. É óbvio que o efeito Nobel anda na cabeça de Trump, a propósito da Ucrânia. Isso será um fator de aceleração da sua vontade. Se Zelensky e os europeus (que Trump acusará de influenciarem uma provável recusa ucraniana do seu plano) se opuserem, vai ser o bom e o bonito...

12. No entanto, tudo o que escrevi vale o que a realidade vier a confirmar ou a infirmar.


Alasca 3

Como Trump pensava antes do Alasca:“I want to see a cease-fire rapidly,” he said. “I don’t know if it’s going to be today. But I’m not going to be happy if it’s not today.”

Como Trump pensa depois do Alasca"It was determined by all that the best way to end the horrific war between Russia and Ukraine is to go directly to a Peace Agreement, which would end the war, and not a mere Ceasefire Agreement, which often times do not hold up".


Alasca 2


Se esta fotografia não diz tudo, então já não percebo nada!

sexta-feira, agosto 15, 2025

Alasca

Para a Rússia, o pior resultado que poderia ter saído de Anchorage seria uma pressão americana para um cessar-fogo. A ocorrer, este travaria o seu ímpeto no terreno e daria tempo à Ucrânia para se reconstituir militarmente com apoio ocidental.

Está por saber se Putin fez alguma promessa de moderação das suas atividades ofensivas, correspondendo a recentes desabafos desagradados de Trump sobre a escalada militar russa, ao provocarem vítimas civis.

A ameaça de sanções secundárias a parceiros comerciais russos terá desaparecido do horizonte imediato, o que é uma excelente notícia para a Índia. Nunca acreditei que os EUA chegassem a esse ponto com um parceiro tão importante para impedir a mão livre da China nos Brics.

A acreditarmos - e eu acredito - na sua obsessão infantil sobre o Nobel da Paz, Trump não vai deixar "cair a bola" e vai querer resultados rápidos, para provar que é o "dono da bola". Posso estar enganado, mas Zelensky e os seus aliados europeus vão ficar agora sob forte pressão.

quinta-feira, agosto 14, 2025

Aqueçam os motores!


O país arde de desejo ter de volta a Fórmula 1.

Ganda Estebes!


Foto inédita de José Estebes, no 1° de Maio de 1974, na magnífica exposição "Venham mais cinco", em Almada, que encerra a 24 de agosto. Não percam esta exposição!

quarta-feira, agosto 13, 2025

Lições da estatística

"Peace agreements rarely end wars, making it important to set expectations for Ukraine peace negotiations. Only 16 percent of interstate wars after World War II ended in a peace settlement. Roughly 21 percent ended with a decisive military victory by one side, while another 30 percent ended with a ceasefire as the warring sides faced a military stalemate but failed to reach a formal settlement". (Seth G. Jones, CSIS) 

Olha a meta!

As presidenciais começam a assemelhar-se ao último quilómetro de um sprint. Todos olham para todos, há quem desista, quem mostre que poderá ir ao despique, quem dê a "sapatada" que o anuncia já a caminho da meta e até ressurgem alguns lançados de trás, a fazer prova de vida.

Diplomatas de Abril

(Fotografia de Ana Gomes, ali de passagem)

Lembro-me de que estava calor, mas não tanto como no dia de hoje, com o país assolado por incêndios. Nesse 13 de agosto de 1975, Portugal vivia o histórico "verão quente".

O "documento dos nove" tinha sido publicado no dia 7 de agosto, trazendo para a Revolução de Abril uma leitura mais moderada do que aquela que ainda prevalecia no plano político. É que, no dia seguinte à divulgação desse manifesto, tomou posse o V Governo Provisório, o último sob a chefia de Vasco Gonçalves. Duraria pouco mais de um mês.

É óbvio que a última coisa com que a imprensa da época se preocupou foi com o facto de, no dia 13 de agosto, terem tomado posse, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, as primeiras mulheres diplomatas. Até então, era-lhes vedado o acesso à carreira. Havia sido um ministro dos Negócios Estrangeiros chamado Mário Soares quem, um ano antes, decidira acabar com essa anomalia.

O primeiro concurso para novos diplomatas, após o 25 de Abril, foi aberto e anunciado em 13 de novembro de 1974. A partir dessa data, ao longo de meses, tiveram lugar as múltiplas provas escritas, orais e "de apresentação". No seu termo, de entre largas centenas de candidatos, foram escolhidos 43 novos diplomatas. No total, foram admitidas nesse concurso 11 mulheres. A posse foi feita em duas levas: 24 no dia 13 de agosto de 1975 e 19 no dia 1 de julho de 1976.  

A "Visão" desta semana traz uma memória desse concurso, a que junta um depoimento do professor Aníbal Cavaco Silva que, com Joaquim Mestte, foi um dos dois examinadores externos ao MNE que integraram o júri de acesso.

Aqueles que tomaram posse nesse primeiro dia, há precisamente 50 anos, juntaram-se hoje num belo almoço de confraternização. Conseguiu-se juntar 17 das 24 pessoas então admitidas. A lei da vida levou, entretanto, seis de entre nós e um impedimento obstou à presença de um outro colega. Deixo a imagem desses 17 diplomatas - melhor, desses sempre "novos" diplomatas...

Na CNN Portugal...


... para falar da Ucrânia e da Palestina.

Pode ver aqui.

Falemos claro

Aquilo que a legislação impõe como ações preventivas para evitar os incêndios é cumprido? Claro que não. Mas, se fizerem as contas, constatarão que, incúria à parte, não há em geral condições de viabilidade económica que permitam aos proprietários levarem à prática essas regras. 

terça-feira, agosto 12, 2025

A lasca


Quando, em 1979, cheguei à Noruega, meu primeiro posto diplomático, a aprendizagem da língua portuguesa fazia-se na Universidade de Oslo, num minúsculo departamento dependente da secção espanhola, como frequentemente acontece. Era seu responsável o professor Kåre Nilsson que, nesse mesmo ano, lançou o primeiro dicionário de Norueguês-Português. 

A embaixada prestava o apoio possível (que era muito pouco) a esse esforçado núcleo lusófilo, que tinha quatro ou cinco alunos. O grande discípulo de Nilsson, também docente de Português, era o tradutor da nossa embaixada, Johan Jarnaes.

Um dia, num intercâmbio universitário, um consagrado professor da Universidade de Coimbra foi a Oslo proferir uma conferência, a convite desse departamento de Português. Quando, na véspera, num jantar que lhe foi oferecido na residência, constatámos que a palestra era sobre uma temática muito técnica, ligada à utilização dos pronomes reflexos num certo tipo de frases, e que seria proferida exclusivamente em português, assaltou-nos uma preocupação: quem iria estar presente na conferência? Quem, entre os noruegueses, conseguiria segui-la?

A nossa preocupação tinha fundamento. No início da sessão, lembro-me bem!, prudentemente organizada numa pequena sala, estavam presentes, para além da embaixada "em peso" - isto é, quatro pessoas... - e de uma funcionária do então Fundo de Fomento de Exportação (a quem eu havia pedido o favor de ir), um representante da secção espanhola (meu amigo pessoal, um pouco "arrancado a ferros") e oito noruegueses, entre os quais Nilsson e Jarnaes. 

A palestra lá foi andando, por um pouco mais de meia hora, em estilo académico cerrado, debitando teses complexas. O tom era monocórdico, o assunto era mais do que críptico, mesmo para nós, portugueses, que estoica e patrioticamente íamos resistindo à chatice. 

O embaixador e eu sentávamo-nos na primeira fila, fingindo estar atentos, desertos por que aquilo terminasse. Íamos sentindo, atrás de nós, a sala a esvaziar-se, à medida que o tempo passava. No final, para além dos organizadores e dos funcionários da embaixada, notei que restava, num canto, uma figura de olhar fixo, que eu notara desde o primeiro momento. Um aluno? Era um homem de quarenta e tal anos, com ar visivalmente norueguês. Quem seria esse admirável cultor nórdico da língua portuguesa, que fora capaz de seguir atentamente aquela difícil palestra?

No dia seguinte, na embaixada, comentávamos o evento. Perguntei então ao Jarnaes quem era aquela figura estranha - mas decididamente simpática! - que havia resistido até ao fim da conferência e que ajudara, na medida do possível, a atenuar a escassez de público e a aridez do evento. 

O nosso dedicado Johan Jarnaes, uma pessoa encantadora que hoje vive a sua reforma em Kongsberg, explicou-me então, algo embaraçado: era um seu amigo, cego, que ajudava na secção espanhola e que ele próprio encaminhara de volta à sua sala, no fim da conferência. Tinha-lhe pedido para vir, para "compor" o nosso público... Estava explicada a "persistência" do homem. 

Não obstante toda sua dedicação à língua portuguesa, de que aspirava poder vir a ser professor titular na universidade, no termo do reinado de Kåre Nillson, o Português de Jarnaes era muito artificial e pouco prático. Aparentemente, só tinha estado em Portugal uma única vez, por dois dias, pelo que dependia bastante daquilo que lia e do que captava no seu contacto connosco. Porém, como o pessoal português que trabalhava na embaixada, com exceção do embaixador e de mim próprio, falava correntemente norueguês, as suas hipóteses de aperfeiçoar a língua eram muito limitadas.

Meses antes de eu chegar a Oslo, Jarnaes tinha sido o involuntário causador de um pequeno incidente diplomático: traduzira para português, de um editorial do jornal oficioso trabalhista, o "Arbeiderbladet", um adjetivo qualificativo sobre o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro que Lisboa considerou ofensivo. O embaixador Fernando Reino foi instruído para "tirar satisfações" dessa agressão semântica. Com uma análise mais fina da questão, veio a ficar claro que o termo usado pelo jornal era passível de mais do que uma leitura. Jarnaes acabou como o bode expiatório do incidente. Fernando Reino fervia, sempre que se falava disto.

Nas minhas conversas com Jarnaes, um profissional empenhado, de quem fiquei amigo e com cuja família cheguei a andar a apanhar cogumelos na sua casa de Kongsberg, dei-me conta de que, com frequência, procurava utilizar uma linguagem que ele supunha ser o modo corrente de falar, no dia a dia, em Portugal. Porque não tinha um comando capaz da nossa língua, tinha muita dificuldade em avaliar os contextos em que se podia utilizar certas palavras e expressões. E isso dava lugar algumas confusões. Lembro-me de eu mesmo ficar um pouco embaraçado quando, um dia, lhe perguntei pela mulher, uma simpática checa que saíra de Praga em 1968, fugindo da invasão soviética. A sua resposta foi: "A gaja está boa". Vi-me em apuros para explicar delicadamente ao Jarnaes que não era adequado, mesmo na linguagem portuguesa mais informal, que ele se esforçava por mimetizar, referir-se dessa forma à sua própria mulher.

Um dia, apareceu na secção consular da embaixada uma voluptuosa criatura feminina, creio que norueguesa, para tratar de um qualquer assunto. Os poucos que estávamos por lá na ocasião (éramos mesmo muito poucos, na embaixada), entre os quais eu e o Jarnaes, olhámos silenciosamente para senhora com a devida admiração e com o apreço estético que considerámos adequado. Quando ela saiu, sorridentes, não retivemos alguns comentários elogiosos das formas e da beleza da utente. Imagino que a Luísa Ringstad se tenha divertido com a impressão que a senhora causara nos homens presentes. Tenho absoluta certeza que o José Manuel dos Santos, pessoa sempre muito dedicada a essa temática, tenha feito um comentário algarvio qualquer. Pela minha parte, terei dito qualquer coisa contida, para preservar a minha autoridade de chefe. Mas toda essa contenção se esvaiu, e houve uma imensa gargalhada coletiva, quando ouvimos o Jarnaes sair-se com uma frase que podia ter sido dita por alguém numa revista do Parque Mayer, nos anos 40 ou 50, mas em absoluto desligada do vocabulário comum dos anos 80 que então começavam: "Era uma lasca!"

Agora, nestes dias em que Alasca é uma palavra tão referida, veio a propósito a "lasca" que o Jarnaes foi buscar ao seu vocabulário português. Nunca mais esqueci, por via do Jarnaes, aquela "lasca" na terra do bacalhau. Aqui fica a historieta, com um abraço ao Jarnaes, à Luísa e ao José Manuel, por onde quer que andem.

Antes do Alasca

Parece haver importantes avanços militares russos nos últimos dias na frente ucraniana. Pode ser só uma coincidência, mas o "timing" decidido por Trump para a reunião no Alasca parece ajustar-se à perfeição ao interesse essencial russo. Quem é amigo, quem é?

O Alasca


Já dormi (numa tenda militar!) a norte do Círculo Polar Ártico, mas nunca fui ao Alasca, que anda por essas bandas. Confesso que a minha curiosidade sobre aquele que é o maior estado dos EUA se resumiria à possibilidade de conhecer a cidade de Anchorage, o seu aeroporto (por razões históricas que eu cá sei) e de poder ter oportunidade de olhar, do lado "de cá", o estreito de Bering, o que seria mais complicado. Sou muito dado a fazer "vezinhos" em algumas geografias, nem sempre as mais óbvias e populares. Mas também já me resignei a ser modesto nas minhas ambições nesse domínio.

Um amigo que, há tempos, se passeou num cruzeiro pelo Alasca disse-me que tudo aquilo é uma imensa "seca". Mas tenho quase a certeza de que deve ter exagerado. Imagino que o Alasca deva ter paisagens lindíssimas. Mas depois de uns dias de férias que fiz na Islândia, no passado mês de julho, concluí uma coisa que nunca tinha assumido mas de que há muito suspeitava: sou um irreconvertível turista urbano.

Ao jantar ontem com uns amigos americanos, falou-se brevemente do Alasca. E, nessa sequência, lembrei que, há uns anos, na vida política americana, tinha havido uma inesperada "aparição" do Alasca. Foi o caso da candidata a vice-presidente republicana, Sarah Palin, que, embora nascida no Idaho, tinha sido governadora do Alasca em 2006-2009. 

Palin era a "running mate" que o Partido Republicano tinha gerado para acompanhar a candidatura de John McCain, que viria a ser derrotado por Obama. Vinda da ala direita do partido (daí a sua escolha para "compensar" McCain), acabaria a apoiar o "Tea Party", que podemos considerar um antecessor do trumpista movimento "Maga".

A senhora, que pediu o seu primeiro passaporte em 2006, viria então a revelar-se uma imensa ignorante em matéria de política externa. As "gaffes" foram tantas que os republicanos pediram a Henry Kissinger que tentasse dar-lhe um curso apressado na matéria. O "ticket" McCain/Palin perdeu, pelo que o problema ficou resolvido por aí. E Palin passou a falar na Fox News, onde a ignorância, como se sabe, não é um pecado capital.

Trump e Putin vão estar juntos no Alasca na próxima sexta-feira. Será uma interessante reunião, onde, como se especula, o Ártico pode estar na conversa. Mas nem por isso o Alasca se me torna mais apetecível para uma visita. 

segunda-feira, agosto 11, 2025

Pousio

Os comentários a este blogue andam muito agitados. Em lugar de ter de os selecionar, acho mais avisado suspender a sua aceitação. Até ver.

Os trabalhos do Luís

Sabemos que é mais agradável aparecer apenas a público nas ocasiões positivas, imagino que reste ainda alguma memória traumática do patético incidente com o helicóptero, mas seria simpático o senhor primeiro-ministro vir a terreno mostrar solidariedade com as populações afetadas pelo fogo. Pense nisso!

Notícias da paz (4)

Será um teste para a independência do Comité Nobel norueguês o modo ira atuar face à pressão para galardoar Donald Trump. Se Trump viesse a ser escolhido, quase absolveria o viés do comité sueco, quando, em 1953, deu um inenarrável Nobel da Literatura a Churchill. 

Notícias da paz (3)

A entrega de um território em disputa entre dois países para exploração por parte de empresas americanas, protegidas por forças militarizadas próprias, é, sem a menor dúvida, uma iniciativa original. Dá mesmo um novo e mais prático sentido à expressão "negociar a paz".

Notícias da paz (2)

Há qualquer coisa de potencialmente muito contraditório entre o que parece serem as bases de um acordo americano-russo sobre a Ucrânia e a preservação da face, não apenas de Zelensky, mas igualmente dos seus principais aliados europeus.

Notícias da paz

Um dos fatores que, até há pouco tempo, ninguém tinha em grande conta no processo negocial sobre a Ucrânia era o desejo, narcísico e quase infantil, que Trump tem de obter o Prémio Nobel da Paz - proposta já apresentada por um eventual criminoso de guerra e alguns autocratas.

domingo, agosto 10, 2025

A Volta


A Volta a Portugal passou hoje por Vila Real, precisamente pelo local onde foi tirada esta fotografia, que um vila-realense do meu tempo facilmente identifica como sendo na "marginal", entre o quartel velho e a garagem do Loureiro. Um vila-realense como este miúdo que ora se assina e que nela espreita sobre a mão no ombro do ciclista. 1957?

António Filipe

António Filipe, um homem sério que merece o respeito de muita gente à esquerda, não pode ser o candidato de quem não quer ver em Belém um presidente de direita, fardado ou não, por uma razão muito simples: numa eleição presidencial vota-se em quem tem possibilidades de ser eleito

Anexar ao processo


Será muito útil (e justo) que o processo de candidatura de Donald Trump a Prémio Nobel da Paz seja acompanhado por imagens elucidativas sobre o resultado efetivo dos esforços do presidente americano para promover a paz e o respeito pelos Direitos Humanos em certas áreas do mundo.

sábado, agosto 09, 2025

"A Arte da Guerra"


A partir da próxima semana, regressa "A Arte da Guerra", uma conversa em vídeo entre mim e o jornalista António Freitas de Sousa. Em cerca de 30 minutos, abordamos três temas de política internacional da atualidade, em programas que depois podem ser vistos nos meios digitais do "Jornal Económico", com simultânea divulgação por aqui. Caminhamos para o quinto ano deste trabalho semanal onde damos a volta ao mundo e procuramos explicar o que nele se vai passando. 

Nós e Israel


Na revista "Visão" desta semana, publico o primeiro de dois artigos sobre as relações entre Portugal e Israel. 

Adquira a "Visão" e ajude à sobrevivência de uma revista que foi e é um marco no jornalismo português.

Regresso da praia


O Tintin é bem mais velho do que eu. Não uso bonés, nem chapéus e hoje não trago gravata. E ando com uma barba preguiçosa de verão. Não tenho cão. Gostava de ter uma mala amarela, mas não tenho. O barco em que agora estou a navegar não é bem igual a estes. Mas, que hei-de fazer?, ninguém me apanha a fazer selfies. Por isso, aqui fica a imagem possível.

"Espíritos zainas e marranicas"!


Naquela que em tempos idos foi a casa da minha avó paterna, em Viana do Castelo, um belo edifício frente à doca onde hoje se acolhe uma fundação musical, existia uma sala conhecida como o "escritório". Esse espaço, por quase dezena e meia de agostos, transformava-se sazonalmente no meu quarto de férias. 

Recordo-me que, à volta da improvisada cama, para além de uma pequena escrivaninha, havia três armários envidraçados, dentro dos quais reluziam belos livros encadernados, que tinham pertencido ao tio Túlio, que tinha morrido antes de eu nascer. Desde então, Túlio da Mota, de seu nome mais completo, passou a ser para mim um membro da família envolto em algum mistério.

O tio Túlio fora casado com a minha tia Regina, irmã do meu pai, pessoa de quem eu gostava bastante, que havia sido figura marcante da minha infância e juventude, e que morreu já nos anos 90 do século passado. Tenho uma vaga ideia de ter ouvido dizer que o tio Túlio era bastante mais velho do que a minha tia e que era viúvo quando com ela casou.

A figura severa desse misterioso tio Túlio olhou-me, por anos, da parede, de uma fotografia em que ele aparecia com ar grave, vestido com uma farda, que eu imaginava cinzenta, de tenente da Cruz Vermelha. Ao lado, num outro caixilho, tilintavam as suas condecorações, que, em pequeno, eu me divertia em fazer chocalhar. 

Soube sempre muito pouco sobre o meu tio Túlio. Hoje, inesperadamente, soube um pouco mais.

Quando, por curiosidade, fazia sobre ele uma busca no Google, vim a encontrar, numa edição da revista cultural municipal de Vila Real, a "Tellus", a informação de que o meu tio Túlio tinha tido um papel destacado em Vila Real, durante a "pneumónica", a "gripe espanhola", em 1918 e 1919, como "tenente-comissário da Cruz Vermelha em serviço na nossa terra". 

A revista recupera uma entrevista dada por ele a "O Vila-Realense", um jornal local muito importante à época. O trabalho do tenente Túlio da Mota, nesse tempo difícil e trágico, é ali altamente elogiado. Para além da curiosidade - que praticamente só a mim interessa - desse meu tio ter estado destacado na terra onde nasci, Vila Real, e depois ter vivido e morrido na minha segunda terra, Viana do Castelo, apetece-me recuperar esta "pérola" que encontrei numa das resposta que deu na entrevista. Era a contestação a uma acusação de que o hospital de Vila Real estaria a dar alta aos "griposos" antes destes estarem totalmente a salvo da doença:

"Assevero-lhe que nenhuma pessoa honesta e séria é capaz de propalar tão miserável falsidade. Uma tal atoarda só pode conceber-se em espíritos zainas e marranicas, manifestamente rebeldes a tudo que seja verdadeiro, boatando e blaguando sempre, consoante é próprio de quem vive e medra desocupado". 

Bela resposta!

O tio Túlio poderia talvez ficar contente se soubesse que este seu sobrinho é hoje, lá na Vila Real onde ele ajudou a salvar gente, o feliz proprietário de uma das preciosidades daquela biblioteca que rodeava os sonhos de uma infância feliz de férias em Viana: a coleção completa dos volumes da "Ilustração Portuguesa", encadernada a couro, com "ferros" dourados, onde brilha o seu "ex-libris".

E fico a dever para sempre ao tio Túlio os preciosos "espíritos zainas e marranicas"...

sexta-feira, agosto 08, 2025

Pimba!

Bela resposta do Tribunal Constitucional a um gesto de cedência xenófoba do governo, apenas para agradar à extrema-direita e tentar não perder o eleitorado preconceituoso das "perceções".

A solução final


O plano para a ocupação total de Gaza, aprovado pelo governo israelita, é inteiramente compatível com o projeto da 'nova Riviera' anunciado por Trump. Há contudo o irritante 'detalhe' da existência dos palestinos por ali, de quem seguramente se espera que não estraguem uma tão bela ideia.

É mais ou menos isto

O pessoal no poder anda deslumbrado e tenta apressar o receituário liberal, soprado por jovens turcos (e outros já menos jovens) das "business schools". O truque é comprar a extrema-direita com medidas xenófobas no "ar do tempo", em troca do apoio no desmantelar do Estado social.

Façam as contas

Os números de Gaza começam a aproximar-se da estimativa mais baixa de Hiroshima. E não foi preciso incomodar ninguém em Dimona.

Os Inglusos


Formam uma raça à parte, uma espécie de casta, embora pálida e sem turbante. Representam-se como o genérico lusitano de uma elite. Não se juntam muito entre si, porque são de tempos diferentes ou porque os feitios e os afetos os fizeram conflituar e, vá lá!, porque todos têm o individualismo como o único modo filosófico de vida que é "bem" adotar.

Alguns já não vão para novos, outros assumem uma postura eterna de maduros, outros são velhos há muito, embora sem disso se terem dado conta. Todos, um dia, por qualquer razão, atravessaram a Mancha, graças aos cabedais da família ou à ajuda da Gulbenkian. Tal como Baptista Pereira chegava a nado às praias de Dover, as braçadas burocráticas deles levaram-nos até às ruas de Oxbridge. Nas bibliotecas da sabedoria, nos claustros dos "colleges" ou sob o fumo dos pubs cruzaram por ali nomes famosos. Que hoje citam, claro. Passarinharam por cursos que, por cá, nem se imaginavam, fizeram teses definitivas, que lhes adubam o currículo com que arrasam a concorrência.

Começaram todos - mas todos! - na esquerda, a maioria vive hoje na esperança de que a direita os perdoe desse pecadilho pouco original, afadigando-se em contribuir para a sua instrução - com artigos, com livros ou apenas com dichotes, mais ou menos espirituosos. Ainda não se percebeu bem o que lhes irá acontecer com o Brexit. Às tantas, ficam apátridas. Nasceram em Portugal (ninguém é perfeito!), mas mantêm o coração nessa grã-ilha a que pertencem, por direito natural. Idealmente, a maternidade do St Antony's College seria o seu berço óbvio, mas têm de contentar-se com o facto de S. Sebastião da Pedreira figurar no seu Cartão de Cidadão.

Alguns falam e vestem como acham que os ingleses devem falar e vestir. Quando atingidos pelos "blues" da vivência nesta "piolheira" que lhes caiu em rifa natal, à falta dos couros de Pall Mall, vão tomar chá à York House, pelas tardes pardacentas. Adoram Churchill e os Church"s. Escrevem (às vezes, bem), bebem (alguns já tiveram melhores fígados) e todos resmungam (de preferência, por escrito) contra este país onde não há um "Spectator" capaz, este lugar que verdadeiramente os não merece - no que têm toda a razão: Portugal nada fez de mal ao mundo para ter de os aturar. São os "inglusos". Não são nem ingleses nem lusos. São uma espécie de náufragos do autocarro, mas do tempo em que a Carris era britânica. Não passam de uns expatriados, não de cá, mas de lá. Era justo que Boris Johnson se preocupasse com eles.

(Publiquei este artigo há cinco anos, na coluna semanal que então tinha no Jornal de Notícias. Muita coisa mudou. A York House já não é o que era, o Brexit foi chão que deu uvas, sei lá bem onde anda o Boris Johnson. Só que ontem, no "Onda Azul" cruzei-me com um dos tais "inglusos", ajoujado com um garrafão de água. Está velho mas, para surda vingança dele, tenho de concordar que eu também estou.)

quinta-feira, agosto 07, 2025

Oferta

 


Morreu o último ministro de Salazar


O último ministro de um governo de Salazar - e também do governo de Marcelo Caetano - que ainda estava vivo, Mário Júlio de Almeida Costa, morreu ontem, com 97 anos. 

Almeida Costa tomou posse como ministro da Justiça em 22 setembro de 1967. Foi reconfirmado no cargo por Marcelo Caetano, em 27 de setembro de 1968. Deixou o cargo em 7 novembro de 1973. Foi presidente da Câmara Corporativa de 16 de novembro de 1973 até ao 25 de Abril.

quarta-feira, agosto 06, 2025

Lições do Tio Sam

Ver Trump e a sua camarilha, agressores diários da separação de poderes e da liberdade dos media, incentivadores de conspirações violentas contra a democracia, virem acusar as libérrimas instituições brasileiras de abusos de poder seria caso para gargalhada se não fosse trágico.

Não me convinha...

Há horas, falei por aqui num tenente que era conhecido como "podre", um velho militar de Viana do Castelo cujas atitudes bizarras o meu pai se divertia a contar.

Hoje, vou referir uma outra pessoa de Viana, cujo nome nunca cheguei a reter, protagonista de outro episódio curioso que o meu pai relatava.

A pessoa em causa era casada com uma senhora com "pêlo na venta" - esperando que os leitores mais velhos possam explicar aos mais jovens que a expressão identifica uma pessoa com mau génio. 

Reza a historieta que essa senhora, indo um dia pela rua com o marido, se pegou de razões com um indivíduo qualquer. O conflito terá azedado e, como reação a algo que a mulher teria dito, essa pessoa pespegou na senhora uma valente bofetada. Sem poder competir com o agressor em poderio físico, a senhora não reagiu à agressão.

E o marido da senhora? Não foi capaz de defender a honra ferida da cônjuge? Essa foi a pergunta que, nas horas e dias seguintes, amigos e familiares fizeram ao homem: "Então tu não reagiste?" A resposta do homem ficou nos anais: 'Não me convinha..."

Nunca terão ficado claras as relevantes razões de conveniência que terão tolhido a mão do cauteloso marido. O qual, para sempre, ficou conhecido como o "não me convinha". 

terça-feira, agosto 05, 2025

Índia

Estejam atentos. Uma chave determinante para o futuro do sistema geopolítico global chama-se Índia. O que vier a ocorrer em torno da evolução da posição desse país, na sua relação com os EUA, a China e a Rússia, num prazo muito curto, será relevante muito para além das suas fronteiras. Repito: estejam atentos.

segunda-feira, agosto 04, 2025

O Hamas e as vítimas

As crianças devem morrer à fome em Gaza como forma de castigar o Hamas? Mas então não era ponto assente que o Hamas não tinha legitimidade democrática e mantinha a população de Gaza debaixo de coação, sob um regime de violência e medo? Se assim é, que culpa tem a população?

De costas direitas


Por razões bem identificadas, sofro "das cruzes", como antes se dizia. Ganho assim em estar sentado "de costas direitas" (sem ser no sentido figurado), não forçando a coluna a posições inconvenientes, não devendo "dobrar a cerviz". Coisas da minha crescente juventude, nesta idade em que o corpo nos adolesce a olhos vistos. Por essa razão, e porque há quem se preocupe comigo, ouço frequentemente: "Senta-te direito! Não te "estendas" no sofá!" Eu obedeço, claro, durante cinco minutos. Depois, as "cruzes" queixam-se. E volto à postura (que fino!) inicial. 

Ao ouvir ontem, pela milésima vez, o "senta-te direito!", lembrei-me do Tenente Podre. O meu pai, nativo de Viana do Castelo, que teve um doce exílio em Vila Real durante 60 anos, levou consigo para lá um montão das suas histórias de infância e juventude, que passaram a fazer parte do património de uma memória que não vivi. Às vezes, falava no Tenente Podre. 

O Tenente Podre não se chamava assim. Era conhecido com essa designação porque, rezavam as crónicas, cheirava em regra mal, provavelmente por défice crónico de lavagem corporal, detetável por quem com ele se cruzava nas ruas. Tinha sido da arma de Cavalaria, mas o facto de não ter passado daquela patente, já na fase avançada da vida em que o meu pai o tinha conhecido, fazia presumir que a sua carreira castrense não fora por aí além. 

Casado com a Dona Miquelina (do que eu me lembro!), o Tenente era conhecido por usar para com ela expressões tributárias da sua especialidade militar. No Café Bar, para lhe pedir o açúcar, ficara famoso o seu: "Ó Miquelina, dá aí um coice no açucareiro!". Na Bandeira, a caminho da casa, que parece que era perto da Capela das Almas, se a cônjuge se adiantava na passada, atirava-lhe, à distância: "Ó Miquelina, parece que vais com o freio nos dentes!"

O Tenente e a Miquelina tinham uma filha solteira, a Ilda. Dizia o meu pai que a pequena, já entradora numa então preocupante trintena de anos, passava bastante ao largo da formusura e que o decurso do tempo não parecia ajudar a que arranjasse um par que a fizesse desamparar a casa paterna. A Ilda tinha por mau hábito, ao andar, inclinar-se um pouco para a frente. O Tenente, pressentindo que essa atitude corporal poderia agravar a já de si escassa atração de pretendentes, volta e meia berrava-lhe, com voz de parada: "Ó Ilda! Põe-te tesa!"

Há que convir que entre o "senta-te direito!", que vou ouvindo cá por casa, e o "põe-te tesa!" que a Ilda escutava do pai militar não há, salvo no estilo, um oceano de diferenças. Em ambos os casos, é tudo por boas causas.

O serviço na restauração turística


Estou de férias numa zona de praia. Um pouco por todo o lado, mais do que em anos anteriores, quando falo com responsáveis pelos restaurantes, ouço sempre queixas de falta de pessoal para o serviço de restauração. Já nem é pessoal qualificado, parece ser pessoal "tout court". Será que isso se deve, como é voz corrente, às baixas remunerações que são oferecidas? Não sei, mas admito que possa ser isso. Sinto que a qualidade média do serviço que é prestado nos restaurantes mais caros baixou de forma sensível, tendo como termo de comparação anos anteriores. Nos restaurantes de qualidade inferior a diferença não é tão sensível, talvez porque as expetativas não são já muito elevadas. Pode ser uma perceção caricatural da minha parte, mas fico também com a ideia de que, na maioria das unidades de restauração, neste mercado que dura apenas alguns meses, está criada uma espécie de hierarquia funcional: os portugueses chefiam, por regra, os brasileiros, com os empregados de outras nacionalidades a cumprirem, quase sempre, funções abaixo ou sob o controlo destes. Aliás, os brasileiros são, a uma grande distância, na perspetiva do regular cliente de restaurantes que sou, o que vai salvando, pela sua simpatia, a qualidade do serviço que nos é prestado - mesmo se comparados com os empregados portugueses. E alguns patrões já perceberam isso, atribuindo-lhes crescentes responsabilidades. Os empregados de outras nacionalidades têm maior dificuldade em ultrapassar o desconhecimento das subtilezas da língua portuguesa e isso condiciona-os bastante, não obstante o visível esforço que a maioria faz para estar à altura das tarefas. Em geral, é patente uma grande debilidade na formação profissional para as funções executadas, uma falta de maturidade no "métier", área em que também não se salvam muitos empregados portugueses. Como consumidor, mesmo pagando caro, sinto que há um visível declínio no serviço prestado pelo pessoal na restauração, em zonas de alta intensidade e de exigência turística. Dito isto, fica uma boa notícia: salva-se a comida, cuja qualidade, nos locais mais caros, não me parece ter baixado de qualidade.

sexta-feira, agosto 01, 2025

Ulster


Hesitação dramática sobre a melhor forma de apoiar a justa luta do povo do Ulster (que, para quem não saiba, não é corresponde exatamente à região da Irlanda do Norte).

Leis

Marcelo Rebelo de Sousa, com algumas decisões sobre diplomas governativos, avisa Luís Montenegro de que, em São Bento, existe um executivo que é apenas minoritário, pelo que não pode "armar-se" em maioritário na atitude, em especial quando legisla sobre temas altamente polémicos.

Democracia. Ponto

Ouvi há pouco uma declaração deliciosa: "Não me venhas com essa conversa ideológica da 'democracia liberal'. Democracia é democracia, não precisa de adjetivos. Não estraguem a democracia com qualificativos que só afetam o seu bom nome."

"Chapeau!"


Não conheço Pedro Tadeu, salvo das conversas que lhe ouvi com Jaime Nogueira Pinto, na rádio. Vou comprar este seu livro porque estou muito curioso em conhecer as razões que levam a que alguém se proclame abertamente comunista nos dias de hoje, em que a popularidade da ideologia não parece estar no topo de venda de ideias. E mais: que tenha tido coragem para fazê-lo, nestes tempos de caça às bruxas e de fachos à solta. "Chapeau!"

Velhos são os brancos!

O governo nomeou João Soalheiro com presidente do Instituto do Património. Não conheço o senhor, mas conheço o Soalheiro Vinhas Velhas (bebam bem fresco!), pelo que me parece um nome adequado para tratar de coisas antigas.

Ah! Pois é!

A Finlândia comemora um ano sem mortes nas estradas. Imagino o comentário dos nossos aceleras, à conversa, a atestar uma bejeca à porta de uma loja de "tunning":  "Aquela malta não pisa o pedal nas estradas e depois queixa-se: tem depressões e suicida-se. Vai dar ao mesmo."

A "Visão"


Envio um abraço de imensa solidariedade a Rui Tavares Guedes e à equipa que, contra ventos e marés, continua a assegurar a publicação da "Visão", uma revista que há muito faz parte do melhor jornalismo português, que atravessa um período de extrema dificuldade, fruto de erros de gestão dos quais sai prejudicado o produto do trabalho dos seus excelentes profissionais e a qualidade da informação oferecida aos seus leitores.

Sou um "teimoso" leitor da "Visão" desde o seu primeiro número, em 1993, ao tempo de Carlos Cáceres Monteiro. Creio que nunca deixei de adquirir qualquer das suas edições, tendo mesmo passado a ser seu assinante, na última meia dúzia de anos, precisamente para reforçar o meu apoio ao seu excelente jornalismo. 

Custa-me imenso encarar a hipótese de perder esta "news magazine", que nasceu da escola de "O Jornal" e que fez par com outras publicações do antigo grupo, onde também se destaca o magnífico "Jornal de Letras", este sob a batuta do meu amigo José Carlos de Vasconcelos, a quem também mando um forte abraço.

quinta-feira, julho 31, 2025

Devolvam-me o Ras!


Sou um praticante errático de palavras cruzadas. Faço-as quando o tédio se encaminha para o desespero. Gosto delas muito difíceis, das que têm várias letras a que se não chega por verticais ou por horizontais, nomes de aves raras do Bornéu ou interjeições tupi-guarani que nem o "Aurelião" acolhe. Detesto os irritantes "romanos", a graçola medíocre do "no meio de", as batidas notas musicais e, claro, as palavras hiper-banais - a pedra de altar "ara" ou o velho "aru", um sapo que nunca consegui ver no Amazonas. Sempre achei graça ao rio da Suíça Aar, até que a minha amiga Manuela Júdice retirou todo o mistério ao vocábulo, dizendo-me ter vivido numa casa com vista para as suas águas.

Mas a que propósito vem isto? É que pressinto no ar uma imensa jogada de discriminação política e étnico-cultural, um pouco subtil deliberado de esquecimento de alguém que, desde a minha juventude, me tinha habituado a ter entre os íntimos, essa insigne figura que sempre foi o chefe etíope Ras. Foram décadas em que fui acompanhado pelo Ras. Agora, nem a mais medíocre folha pseudo-informativa do interior se digna lembrar esse nome histórico do cruzadismo. Há, manifestamente, uma conspiração contra a Etiópia! Não há vergonha! A terra do Preste João, do Negus, do Abebe Bikila! Devolvam-me o Ras, por favor!

quarta-feira, julho 30, 2025

Mau, Maria!

A política externa não é uma coisa "de modas", mas de princípios. Não se vai "por aqui" ou "por ali" apenas porque os outros países vão nessa direção. Se vier a reconhecer a Palestina agora que outros o fazem, Portugal não passará de uma "Maria vai com as outras" ... se as outras forem. O comodismo é muito triste!

O preço dos vinhos


Frequentemente, ouço pessoas a queixar-se do preço das garrafas de vinho nas listas de restaurantes. Às vezes têm razão, outras vezes não.

Um garrafa, num restaurante, nunca custa o mesmo que, pelo mesmo produto, nos é pedido numa loja especializada em vinhos ou numa grande superfície. É uma ingenuidade pensar que um restaurante teria a obrigação de cobrar, por uma garrafa, um preço similar àquele pelo qual ela é vendida no comércio de rua. No vinho, como em qualquer outro produto que comercia, o restaurante cobra sempre um diferencial: com ele paga o investimento da aquisição, os custos do serviço, os salários, os encargos de estrutura (rendas, empréstimos, etc) e, naturalmente, o lucro legítimo que o proprietário retira do seu negócio.

A minha experiência mostra-me que, nos vinhos mais baratos, o multiplicador normal é três vezes superior ao custo em loja, nos vinhos topo de gama um mínimo de duas vezes mais e, nos vinhos intermédios, 2,5 vezes. Mas há restaurantes que praticam multiplicadores bem maiores. Resta ainda acrescentar que, sendo o preço base, para os nossos cálculos, o valot comercial em loja, é preciso ter em conta que os maiores restaurantes compram os vinhos que vendem, em regra, nas empresas distribuidoras, que praticam uma tabela de preços mais baixa. Assim, o seu lucro é ainda maior. Nos vinhos pouco conhecidos, de produtores independentes ou com marcas novas, alguns restaurantes fazem o que muito bem entendem, o mais das vezes à nossa custa...

Como frequentador regular de restaurantes, sigo o princípio de ter sempre presente os preços médio de três ou quatro marcas vulgares de vinhos (sempre com atenção ao ano), no Pingo Doce ou no Continente, comparando-os depois com aquilo que me apresentam na lista de vinhos do restaurante. Até três vezes o preço em loja, acho razoável; mais do que isso, entendo ser um exagero. E a minha apreciação do restaurante "ressente-se" disso, nos conselhos que depois dou aos amigos. Um critério que também sigo é o uso da "app" "Vivino", que permite "fotografar" os rótulos e nos indica, de imediato, o preço médio em loja do vinho.

segunda-feira, julho 28, 2025

Os sorrisos dos dias felizes da relação transatlântica

 



Trump 15 - Europa 0

Conheço alguma coisa de negociações internacionais para ousar ter um juízo simplista sobre o resultado da negociação comercial que, aparentemente, terá ontem ficado concluída entre os EUA e a União Europeia. (Escrevo "aparentemente" porque, com Trump, nada é seguro). Quero com isto dizer que não tenho a certeza de que uma qualquer outra equipa negocial europeia tivesse conseguido fazer melhor, nas atuais circunstâncias. Mas uma coisa é bem clara e não pode ser iludida: tratou-se de um "diktat" e o resultado é brutalmente desequilibrado em desfavor da Europa. A acrescer aos direitos aduaneiros impostos (que devem ser comparados com os atuais, não com o pior cenário, como desonestamente Bruxelas está a fazer), a Europa comprometeu-se (ainda não percebi bem como, dado que não se trata de uma competência comunitária) a comprar gás e petróleo aos Estados Unidos, bem como "enorme quantidade" (Trump dixit) de equipamento militar. Se alguém tinha pensado que o aumento exponencial de verbas orçamentais que vai passar a ser dedicado à defesa, aprovado no quadro NATO sob pressão americana, se destinava a reforçar as indústrias europeias e a contribuir para vir a obter a famosa "autonomia estratégica" do continente, pode tirar já o cavalo da chuva, antes que ele se constipe. Os europeus, que desde há três anos vivem atarantados com a ideia de que a Rússia pode "chegar com os tanques à praça da Concórdia", para recuperar uma célebre mitologia de 1981, entregaram-se agora por completo à vontade de Washington. Nada de novo, convenhamos, salvo esta humilhação alfandegária. Era possível fazer melhor? Não sei e, com total franqueza, duvido que fosse. Mas que o resultado é péssimo, disso não tenho a menor dúvida. E há que assumi-lo, sem querer fazer de nós parvos.

domingo, julho 27, 2025

"Bonito 7!"


Ontem, num jantar de amigos de início de férias, surgiu na conversa o tema das idas ao cinema, na juventude de alguns de nós, nas salas de espetáculo de província. Falou-se de Vila Real, de Viana, de Coimbra e até de Portimão. 

Para admiração da gente presente que era de Lisboa, onde os filmes se demoram por alguns dias nas salas, explicou-se que, nessas terras pequenas, eles só passavam uma única noite (havia umas matinées nos domingos, com coisas muito leves para crianças), em sessões que, em regra, ocorriam duas vezes por semana. Por esse tempo, com o pouco que então havia para fazer por aquelas localidades, e com os bilhetes, na categorias mais simples, a preços relativamente baixos, era quase de regra ir-se ao cinema nessas noites.

Contudo, havia um problema: a idade. Alguns filmes eram "para adultos", o que implicava ter mais de 17 anos. À porta, o cavalheiro que "cortava" os bilhetes, se desconfiava da nossa idade, pedia o Bilhete de Identidade. 

Lembro-me que, a certa altura, comecei a ter inveja dos mais velhos, que contavam que tinham assistido às "cenas quentes" de um drama ou de uma comédia qualquer. Com pormenores que assumiam laivos de sadismo, nos dias seguintes, nos intervalos das aulas, comentavam entre si o que tinham visto na véspera. Nós, a quem a idade tinha impedido o acesso ao filme, ali ficávamos, "ougados", com alguma raiva.

Era voz corrente que o porteiro do cinema, quando exigia a identificação de alguém, só olhava o ano de nascimento - nunca o mês e a data. Um dos meus colegas, o Teixeirinha, um tipo franzino que perdi de vista há mais de 60 anos, tinha nascido no dia 29 de dezembro de 1947. Assim, desde janeiro de 1964, o Teixeirinha passou a "ter" os requeridos 17 anos. Ora eu, por um azar histórico que devia atribuir à falta de cuidado dos meus pais, tinha nascido "apenas" em janeiro de 1948. Por um mês, eu "tinha" menos um ano do que o Teixeirinha. E isso significava um imenso atraso na construção da minha base filmográfica. 

Quem é mais antigo recordar-se-á que os Bilhetes de Identidade não eram plastificados e eram preenchidos à mão, desde o nome à datas e outros pormenores. Um dia do ano de 1964, com vontade de acelerar o meu acesso às delícias da maioridade, para efeitos de écrans, tomei a íntima decisão de falsificar o último algarismo do meu ano de nascimento. Sabia que o meu pai ficaria furioso de viesse a descobrir, mas decidi arriscar. Com delicada mas não muito hábil precisão, limpei com lexívia o "8" do ano e escrevi por cima um mal amanhado "7". Como, com a pressa, não tinha deixado secar bem o resultado da operação, o algarismo do crime acabou por sair um tanto borrado. 

Dias depois, imagino que com um frio imenso a percorrer-me a espinha, lá fui para a fila de entrada do Cine-Teatro Avenida, para ir ver uma fita qualquer "para maiores de 17". À entrada, estava o cavalheiro do costume. Devo ter feito uma cara séria, para dar ares de mais idoso, levando o documento de identificação bem à mão. Escolhi um momento em que a fila estava densa, tentando que ele não mo fosse pedir, mas o homem não dispensou: "Tem o seu Bilhete de Identidade?" Tenso e nervoso, estendi-lhe o papel. O cavalheiro, pai de uma colega de liceu, que ali fazia um extra para arredondar o seu ordenado de funcionário das Finanças, e que aliás conhecia o meu pai, olhou para mim, sorriu discretamente e disse apenas: "Bonito 7!" E mandou-me entrar. 

No dia seguinte, lá estava eu no intervalo a disputar a um perplexo Teixeirinha os detalhes sobre o filme do dia anterior. Mas a minha ousadia ficou por ali: nunca mais arrisquei enfrentar o porteiro do cinema, em filmes para adultos. Dias depois, voltei a utilizar lexívia e repus o 8. Imagino como aquilo terá ficado... E só conto isto agora porque estou certo de que o "crime" já prescreveu!

(A imagem de exemplo é de um BI dessa altura, apanhada na net)

"Le Tour"


Cá por casa, nos fins de julho de cada ano, é certo e sabido: para-se para ver o "Tour de France". De duas maneiras diferentes: eu só tenho paciência para os "destaques", para os final das etapas e para olhar as paisagens, mas há no casal quem se obstine em ver quase tudo, quem saiba o nome dos ciclistas e coisas assim. Feitios.

A Volta à França de 2025 acaba hoje, com a clássica chegada aos Campos Elísios, em Paris. Há pouco, por curiosidade, olhei o desenho das etapas e, porque andava distraído, reparei, pela primeira vez, que o "Tour" anda aos saltinhos, havendo uma regular descontinuidade entre os vários percursos diários. Deixo dois mapas comparativos da prova de hoje com a de, por exemplo,1939.


Nuno Portas


Aos 90 anos, morreu agora Nuno Portas, figura maior da arquitetura portuguesa mas, igualmente, da reflexão e da intervenção na dimensão social do urbanismo, setor de que iria ser o primeiro governante em Portugal, logo após o 25 de Abril. 

Portas era, para a minha geração, uma figura quase mítica dessa arquitetura, tal como Nuno Teotónio Pereira, com quem teve obra conjunta. 

Grande amigo de Jorge Sampaio, foi num jantar nos 60 anos deste que o vim a conhecer melhor. Recordo que tivemos uma bela e longa conversa. Há uns anos, fez-me a agradável surpresa de me ir ouvir a uma palestra que fiz no Porto. À saída, disse-me: "Saio daqui mais preocupado do que entrei, sobre o futuro da Europa". Tinha razão para isso.

Deixo um abraço de muito pesar à Catarina e ao Paulo.

O "Público", no online, publica um magnífico texto de Jorge Figueira sobre Nuno Portas.

Durmam bem!

Desde 2014 que guardo esta fotografia de uma tarde de Gaza.