Há dias, ao sair da A24 para as Pedras Salgadas, olhei uma placa de trânsito com o nome de Bragado, uma aldeia ali perto, e lembrei-me da história. Ouvi-a, há anos, a alguém a quem lha tinha contado quem também a ouvira a terceiros. Mas logo verão que o essencial se não perde.
Estava-se nos primeiros anos dessa trágica aventura migratória portuguesa para terras de França, no final dos anos 50. Do Norte, de Trás-os-Montes, tal como do Minho e das Beiras, saíram "a salto" esses primeiros heróis, em pequenos grupos, às vezes explorados pelas máfias de "passadores" que os "ajudavam" na travessia das fronteiras e, também muitas vezes, abandonavam à sua sorte quem não falava uma palavra das terras de línguas estranhas que tinham de atravessar. Enfrentar o desconhecido, para quem vinha de pequenos povoados, deve ter sido uma saga difícil de imaginar.
Estamos a falar de gente muito simples, lançada num mundo onde cabiam as referências básicas do que lhe fora dado ver, nesse trauma de imagens e medos, de realidades inesperadas e surpreendentes, gerados num percurso bizarro, entre aldeias recônditas e periferias de imensas cidades, que só avistavam ao longe, ou a partir das obras onde iam trabalhar, então quase de sol-a-sol.
O episódio que vou contar é desse tempo, de uma conversa, nas férias em Portugal, de um desses emigrantes, numa roda de amigos, em Vila Pouca de Aguiar. O nosso homem estava a relatar, para benefício de um auditório de gente que nunca tinha ido muito mais longe do que o perímetro da sua aldeia, o que eram as terras do seu destino de trabalho.
A certo passo, um amigo perguntou-lhe: "Olha lá! E de que tamanho é que é Paris?"
Imagino a dificuldade do homem em explicar a ordem de grandeza de uma cidade cujo centro, pela certa, nunca tinha visitado, cujo recorte apenas vislumbrava no caminho para Champigny ou de outro "bidonville" onde a pobreza portuguesa se ia então refugiar, à procura daquilo que o país onde nascera lhe negara.
Pensou um pouco e, com medidas comparativas que os amigos talvez pudessem melhor avaliar, lá se decidiu adiantar:
- Paris é muito grande. É assim de um tamanho que vai de Vila Pouca até às Pedras e que chega até a algum casario do Bragado.
Se pensarmos que de Vila Pouca às Pedras Salgadas são seis quilómetros e o Bragado fica apenas mais dois adiante, e que só o periférico à volta da parte central de Paris tem 35 km de comprimento, poderemos apreciar o erro de perspetiva do nosso homem. De uma coisa estou certo: os amigos que o ouviam ficaram cientes, de forma muito clara, de que Paris era uma cidade muito grande. E isso é que importava.
Por vezes, ao atravessar Paris, quando por lá era embaixador, ao percorrer longas distâncias de um ponto ao outro da cidade, senti-me quase a chegar a "algum casario do Bragado".
7 comentários:
Senhor Embaixador
Olhe que o post está repetido.
LBA
Caro embaixador, receio que o número referido pelo emigrante seja mais claro do que o seu. A cidade de Paris propriamente dita será a parte contida pelo "Boulevard périphérique" que terá os 26km que referiu. Por curiosidade fui verificar no "Google earth" quais as distâncias em linha recta da figura geométrica do referido "boulevard" e medi cerca de 9km no sentido Norte-Sul e cerca de 10km no sentido Leste-Oeste. Este miolo de Paris é aproximadamente circular e um círculo tem um perímetro de π (pi=3,14) vezes o diâmetro. Um círculo com 9km de diâmetro terá assim um perímetro de 28,26km o que é próximo dos 26 km que referiu.
Fui também ver a distância em linha recta entre Bragados e Vila Pouca de Aguiar que corresponde a 9km.
Assim, enquanto o emigrante referia a dimensão da Paris pelo seu diâmetro, o embaixador está a defini-la pelo seu perímetro. A caracterização pelo diâmetro parece-me ser mais comum.
A cidade de Paris propriamente dita está nos limites do periferique. Mas a grande Paris ocupa quase toda a Ile de france, que é muito maior. Antes de se entrar na Gare d'Austerlitz já se viu uma data de cidade e já era assim nos anos 60.
Diâmetros e perímetros, eis a questão!...
area de paris: 105 km2, comprimento do periférico: 35 km (wikipédia)
triângulo vila pouca/pedras/bragados: área 17 km2, perímetro 22 km (google earth pro/função régua)
distraí-me com a conversa, o que pretendia dizer era que as pessoas que vivem em zonas rurais têm melhor percepção das distâncias e áreas que os urbanos, os primeiros andam a pé e trabalham a terra e os segundos vão de táxi e trabalham em cubículos. podem ter deficiências de expressão, mas percebem-se melhor.
Chicamigo
Que crónica excelente! Tu não devias ter ido para diplomata, mas sim para escritor. Creio que já to tinha dito. A ser assim, relembro-o
Bragado - onde nunca estive nem sequer por ele passei - certamente que merece este magnífico escrito e os emigrantes a salto também. Um dia já vão uns bons anos fiz uma reportagem nos bidonvilles Acompanhava-me o António Aguiar (o verdadeiro repórter fotográfico da rua, infelizmente já falecido) que no meio de tanta miséria me disse; ó chefe nunca vi tanta miséria e tristeza. Nem no Casal Ventoso!...
E era verdade. Só então os portugueses imigrados começavam a ser Homens! Pior só nasfavelas e na City of Joy em Calcutá onde conheci a madre Teresa!
Abç do Leãozão
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