terça-feira, junho 21, 2016

A "pérfida Albion"


Agora que o referendo britânico nos atazana os dias, veio-me à memória uma cena penosa, numa noite de Bruxelas, à saída de um jantar de trabalho, há cerca de duas décadas.

Estávamos ainda à porta do local do repasto, eu e uma figura britânica relevante para o que aqui me traz, isolados do resto dos convivas. Enquanto os nossos carros não chegavam, voltei-me para o meu interlocutor, que eu já conhecia há alguns anos e com tinha alguma confiança pessoal, e disse-lhe:

- Espero que o Reino Unido, amanhã, no Coreper (o Comité dos Representantes Permanentes, que reúne os embaixadores junto da União Europeia), apoie a nossa proposta de declaração sobre Timor-Leste. Necessitamos de colocar pressão sobre a Indonésia.

O tema era candente. Tinham-se passado incidentes sérios em Timor-Leste e o nosso embaixador junto das instituições europeias, sabedor de que eu iria ter um jantar onde estava esse britânico, pediu-me que o tentasse sensibilizar. Se a declaração "passasse" no Coreper, a hipótese de vir a ser aprovada, dias depois, no Conselho de Ministros, estava assegurada. Os mais renitentes eram, ao que recordo, os holandeses, mas os britânicos também não estavam a ser fáceis. E era precisa unanimidade. Expliquei, como se isso fosse necessário, a gravidade do problema, ele foi dizendo que sim com a cabeça e, no final, respondeu-me:

- Podemos fazer um acordo. Na reunião agrícola de ontem, vocês colocaram objeções sobre a linguagem que tínhamos proposto sobre a BSE (a doença das vacas loucas). Se levantarem essas vossas reservas, posso assegurar que apoiamos o texto sobre Timor-Leste.

- Estás a brincar?! Estás a pôr uma questão de Direitos humanos ao nível das "vacas loucas"?!, exclamei, quase escandalizado.

- Isso mesmo!, disse ele com aquela espécie de gargalhada snobe que os britânicos fazem quando acham que conseguem fazer uma graçola de "nonsense".

Ouvi-me então a utilizar a expressão começada por "f" com o "you" no fim, que já não ensaiara desde que saíra de Londres, que tinha sido o meu último posto diplomático no estrangeiro, onde aliás me cruzara pela primeira vez com essa figura britânica. Nesse instante, dei razão ao Marquês de Ximénès, quando qualificou a Inglaterra de "pérfida Albion". Virei-lhe as costas, de forma ostensiva, e entrei no carro. Mas fiquei preocupado: tinha ido um pouco longe demais!

No dia seguinte, nos corredores do Justus Lipsius, cruzei-me com ele. Saudou-me como se nada se tivesse passado. A única coisa que não recordo é o destino que teve a declaração sobre Timor-Leste.

1 comentário:

Majo Dutra disse...

~~~
Gostei de o ler, como habitualmente,
mas o parágrafo da «gargalhada snobe» está de mais
e eu adoro rir com gosto, porque é indiscutivelmente saudável.
~~~ Ótimo e feliz verão ~~~
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Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...