sábado, setembro 19, 2015

De um arco, em Paris


Não foram poucas as vezes, quando vivi em Paris, que, chegado a um determinado local, senti pena por não ter por ali comigo o meu pai, falecido pouco antes. Gostaria imenso de poder ter andado com ele pelas ruas da cidade que, desde criança, me descrevia com pormenores afetivos que, durante anos, encheram a minha imaginação. Ele que, nesse tempo, nunca lá tinha ido! Mas, em nossa casa, havia um mapa com o centro da cidade desenhado em pormenor, com o título "Paris à vol d'oiseau" e um guia Baedeker que nos ensinava a capital francesa como se lá estivéssemos! Com o meu pai, nessa passagem dos anos 50 para 60, o que eu aprendi a "passear" pelos boulevards e a conhecer os nomes de alguns daqueles edifícios e de episódios da História que lhes está associada!

Francófilo como era, o meu pai deu, durante cerca de 20 anos, explicações gratuitas de francês a filhos de familiares e amigos, apenas pelo amor que tinha a uma língua que identificava com a liberdade. Estou certo de que teria gostado muito de rever comigo, com calma, os lugares da sua "pátria" de adoção, quando citava Thomas Jefferson: "Tout homme a deux patries: la sienne et la France". E teria um imenso gosto em saber que acabei a minha carreira como embaixador por lá.

Há dias, passei a pé junto ao Arco do Triunfo do Carrousel, um monumento situado entre o Louvre e a praça da Concórdia, no jardim das Tulherias, mandado construir por Napoléon Bonaparte para comemorar a vitória em Austerlitz. Subitamente, lembrei-me do meu pai. É que daquele pequeno arco, "pequeno" se comparado com o Arco do Triunfo na Étoile, possuo em Vila Real, deixada por ele, uma pequena reprodução em mármore, um objeto que sempre representou muito para mim. Bem miúdo, lembro-me, como se fosse hoje, de ouvir o meu pai dizer: "Se olhares deste Arco de Triunfo do Carrousel do lado do Louvre, irás ver que ele está em linha precisa com o obelisco egípcio da praça da Concórdia e, ao fundo, no alto dos Campos Elísios, verás o grande Arco do Triunfo, na Étoile". Ao tempo, repito, ele apenas sabia que as coisas eram assim.

Da primeira vez que fui a Paris, comecei a visita à cidade por aquele arco. Não para confirmar a asserção do meu pai, que era uma evidência óbvia, mas para começar a conhecer verdadeiramente a cidade pelo monumento que tinha iniciado o meu infindo gosto por ela.

Na tarde da passada segunda-feira, voltei a olhar os dois arcos, com o obelisco de ponta dourada pelo meio. E, olhando ao longe, os Campos Elísios, recordei o tom grave com que o meu pai descrevia a humilhação que a França sentira ao ver as tropas alemãs de ocupação descerem aquela avenida - ele que era um aliadófilo feroz. E de contar-me como, no dia da Libertação, De Gaulle caminhara, em apoteose, pelo mesmo caminho. É que, deste lado da Europa, o meu pai também sentiu que havia ganho a guerra!

Nem imaginam o que se pode ver de um pequeno arco quando as memórias são agradáveis!

13 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Como sempre, um belo texto , pleno de nostalgia e emoção. Somos milhões a pensar a mesma coisa de Paris. Existem mil razoes de amar Paris. Os mais clássicos apreciarão a riqueza incomparável dos seus museus, os puristas a perfeição da sua arquitectura, os românticos as suas inumeráveis baladas.

Nos anos 60 levei o meu Pai a Paris. Com duas visitas obrigatórias, depois das clássicas : o Muro do Federados e o Mont Valérien. Depois foi Verdun e a trincheira das baionetas!

Portugalredecouvertes disse...


Os símbolos são importantes, fixam as convicções!

Anónimo disse...

Embaixador, sendo eu de Vila Real, embora mais novo que o senhor ai uns vinte anos, conheci o seu Pai, recordo ainda antes de entrar na escola primária ir com a minha avó(materna)á caixa geral depósitos, onde ela ia levantar a aposentadoria e recordo porque ela sempre queria que fosse o senhor Costinha a tratar dos seus assuntos. A vida é assim, também recordo muitas vezes o meu Pai e o que aprendi com ele. Por vezes acontece-me a mesma coisa, quando estive em determinados lugares também me lembrei dele porque ele sem lá ter estado falava muito de certos lugares.

João Manuel Vicente disse...

Belíssimo, sentido e comovente texto. Sem mais adjectivos que nada mais há que se deva dizer.

Anónimo disse...

O seu pai acompanhou-o de certeza, de uma forma ou outra, nesse belo passeio por Paris. O nosso espirito humano consegue abranger outros planos e andamos para tras e para a frente no tempo ( desagrada-me o estar sempre no presente dos budistas!)

Maria Eu disse...

Tudo ganha ainda um maior encanto se visto com o olhar da ternura.

Boa noite. :)

Anónimo disse...

E como a magnífica Paris (que não conheço) ficou pequenina e insignificante perto desse seu sentir...

Maravilhoso texto. Comoveu-me.

Anónimo disse...

E um dia fui vizinho desse Arco!
Poucos anos mais tarde junto dele estacionava o meu carocha.
Na altura o "eixo de la défense" ainda não tinha sido desviado nem l'arche existia.
O virus da francofonia, e que mais tarde se transformou em francofilia, me foi incutido pelo meu avô.
No coração continuam a coexistirem duas terras.
Aquela que não escolhi e que amo e aquela, que por opção fui viver e onde ainda me sinto como peixe na água.
Gostei do texto, fez-me regressar umas décadas aquela juventude que por opções não económicas escolhia a migração e não a submissão.

patricio branco disse...

recordações, evocações, paris, pais, sitios, de tudo isso são feitas as histórias pessoais.
bom texto da memória

Anónimo disse...

Eu tive a sorte de ir pela primeira vex a Paris com os meus pais aos dez anos. Ficámos no Hotel Saint-Pierre, na rue de l'Ecole de Médecine, que mais tarde iria acolher Mário Soares, quando do seu exílio. Ainda se viam nas ruas cartazes da campanha presidencial entre Pompidou e Poher. Uma especie de duelo Passos-Portas embora Pompidou soubesse de literatura como ninguém e Poher oferecesse no Senado os melhores repastos de França. Gostei muito de toda a cidade, como ainda gosto acima de qualquer outra. Mas do que gostei mais foi de passar tardes a ler na Hachette, livraria já desaparecida ao virar da esquina, no Bd Saint-Germain. Só voltei a Paris em 1977 e fiquei alojado clandestinamente na Casa de Portugal. Memórias...

Helena Sacadura Cabral disse...

Meu caro Francisco
Que tocante testemunho, este seu. E que terna homenagem a seu Pai.
A França é a minha segunda pátria e Paris a minha casa. Por muitas razões que conhece, este seu post recordou-me os dez anos mais felizes da minha vida. Bem haja, por isso, Francisco!

Anónimo disse...

Este seu testemunho serve para muitos de nós e para as nossas famílias. Paris de França! Ir a Paris de França... É um privilégio andar a perder-se por estas ruas e boulevards... Entre nós, ainda se leram algumas das páginas de Victor Hugo... Nesta estação - Outono - Paris sabe-nos a plátano a três cores...

Unknown disse...

Ahhhh! os arcos de Paris!!!
Grata pelas lembranças compartilhadas.
Saudades.

16 de dezembro de 1965

Faz hoje 60 anos. Tudo começou numa conversa, num passeio ali pela avenida Carvalho Araújo, em Vila Real. Tínhamos 17 anos. A conversa nunca...