quarta-feira, setembro 16, 2015

Gulbenkian em França


Foi há 50 anos que a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu instalar em Paris, na residência onde o seu fundador vivera, um Centro cultural que evoluiu para aquilo a que hoje se designa como Delegação.

O historiador Rui Ramos está a preparar um estudo de fundo sobre essa presença portuguesa em França e ontem, durante uma sessão realizada em Paris, divulgou um primeiro esboço desse trabalho.

É muito interessante, através desse texto, olhar, em perspetiva comparada, a presença parisiense da Fundação com a evolução e interação, cultural e humana, das sociedades portuguesa e francesa, nesse meio século. E é também importante contextualizar a evolução dessa presença com os desafios que a própria Fundação foi sofrendo, em Portugal e no mundo.

Em 1965, ao tempo da criação do Centro, a guerra colonial começara em Angola há apenas quatro anos, em Moçambique e na Guiné apenas no ano anterior. Dias antes da abertura do Centro, cerimónia a que esteve presente André Malraux, um escândalo envolvia internacionalmente a ditadura portuguesa: fora descoberto em Espanha o cadáver de Humberto Delgado, que, com razão, logo se suspeitou ter sido assassinado pela polícia política de Lisboa. Malraux, ministro da Cultura, acedeu a estar presente à cerimónia mas pediu que nela não houvesse uma representação ministerial portuguesa.

Ainda antes da inauguração do Centro, muito graças à influência e habilidade diplomática do embaixador Marcello Mathias, a coleção de arte que Calouste Gulbenkian fora reunindo na casa da avenue d'Iena, que adquirira em 1922 (e que a Fundação veio a alienar em 2011), foi transferida para Portugal, constituindo o acervo do Museu que hoje existe. A ideia de que existiu um "trade-off" mais ou menos informal fez sempre parte de uma certa "mitologia": o governo francês teria autorizado a partida da coleção e, em troca, a Fundação criava o Centro e, igualmente, financiava a construção da "Maison du Portugal" na "Cité Universitaire de Paris". A síntese de Rui Ramos não aprofunda ainda esta curiosa questão. Uma coisa é certa: nada parece ter ficado formalmente acordado que confira veracidade a esta teoria.

O estudo aborda o percurso do Centro, que foi também muito marcado pelo perfil dos diversos diretores que o titularam, e descreve a filosofia evolutiva que esteve subjacente ao seu funcionamento: desde o seu caráter de estrutura dedicada  à "alta cultura" clássica portuguesa, muito próxima dos interesses dos especialistas "lusófilos" que sobretudo no século XX existiam em França, até a uma leitura bastante mais contemporânea, ligada a temáticas de modernidade, seja na vida europeia, seja em áreas do pensamento à escala global.

Nestes seus 50 anos, o Centro atravessou períodos marcantes. Desde logo o Maio de 1968 em França, a desaparição política de Salazar e a emergência do "caetanismo", bem como toda a tensão provocada pela crescente existência em Paris de uma comunidade migrada de Portugal por razões económicas e, marginalmente, políticas, de que o Centro sempre se procurou isolar. 

Depois, ocorreu o 25 de abril. Em 1975, ano em que a Revolução estava no seu auge, o Centro teve como tema de trabalho ... Damião de Góis. Ontem, ao ouvir falar sobre isso, não pude deixar de lembrar-me da TV Rural, por essa época: embora a Reforma Agrária fosse então o tema maior desse setor económico, o engº Sousa Veloso continuava impavidamente a falar do combate ao míldio e maleitas agrícolas correlativas... 

Hoje, os desafios são outros e a Delegação da Fundação tem uma agenda muito marcada pela contemporaneidade temática, na linha de outras fundações com vocação global, com uma ação aberta à lusofonia e, de forma crescente, a uma nova geração da comunidade luso-francesa. O mundo mudou, Portugal em França também e a Fundação, cuja imensa qualidade se sabe ter sido a capacidade de saber acompanhar os tempos, está a encontrar novos caminhos para a sua presença em Paris, agora numas instalações modernas, onde se abriga a segunda maior biblioteca de temas portugueses no mundo, fora do país. 

Nas funções que desempenho como presidente do Conselho Consultivo da Fundação Gulbenkian para a Delegação em Paris, que reune personalidades portuguesas e francesas, espero conseguir dar uma contribuição útil, não apenas para o contínuo redesenho do novo perfil de intervenção da Delegação em Paris, mas, muito particularmente, para o êxito deste ano comemorativo do cinquentenário da presença da Fundação na capital francesa, que ontem se iniciou.

3 comentários:

Portugalredecouvertes disse...

Muito interessante Sr. Embaixador!
mas acho esta notícia bastante estranha:

....fora descoberto em Espanha o cadáver de Humberto Delgado, que, com razão, logo se suspeitou ter sido assassinado pela polícia política de Lisboa. Malraux, ministro da Cultura, acedeu a estar presente à cerimónia mas pediu que nela não houvesse uma representação ministerial portuguesa....

é que a cultura é do povo, e o povo sofre com as ditaduras. Então se um ministro da cultura tem este tipo de comportamento, está a castigar ainda mais um povo que já se encontra em sofrimento... Aliás nos tempos modernos, parece que já ninguém recusa alguma representação ministerial de países onde apareçam um ou até muitos cadáveres infelizes
ou será que não compreendi?

Reaça disse...

Havia «vistos gold» que valiam a pena.

Porque não me hei-de sentir um grande reaça? Mas que tristeza!

Anónimo disse...

Portugalredecouvertes
Estranha é a sua estranheza. O Malraux apenas não se quis cruzar com membros de um governo de ditadura, coisa compreensíva. Ora, sendo sabido que um governo da ditadura não representa um povo, em que diabo é que essa "falha" diplomática terá causado um sofrimento acrescido ao povo português? Não me consta que o povo tivesse feito espontaneamente uma manifestação de desagravo ao governo de então...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...