sexta-feira, setembro 18, 2015

Jogos com fronteiras

Talvez não nos estejamos a dar bem conta da real dimensão do que se está a passar, mas quero crer que a crise dos refugiados e as repercussões que ela está a ter na confiança entre os estados da União Europeia são, com grande probabilidade, o desafio mais importante que esta enfrenta desde a sua criação.
A presente situação testa os limites da coesão do processo europeu porque traz à evidência o modo diferenciado como os países encaram a partilha das responsabilidades a que a pertença ao espaço comunitário automaticamente os obrigaria. Muito raramente a distância entre os países europeus foi tão profunda. E isso é altamente preocupante.
Vivemos hoje um tempo em que se joga com as fronteiras à luz da preeminência dos medos nacionais, potenciando reações xenófobas, desrespeitando regras mas, essencialmente, desprezando valores que tínhamos por património comum. Alguns estados estão a mostrar-se indignos da solidariedade que, num passado não muito distante, os beneficiou.
No processo de discussão do futuro da liberdade de circulação na Europa, que inevitavelmente já se iniciou, a posição de Portugal tem de ser sempre de uma cristalina firmeza, evitando a tentação de seguidismo com outros, por mais poderosos e conjunturalmente próximos que pareçam. Como país geograficamente periférico, emissor regular de vagas migratórias, qualquer evolução que, neste domínio, pudesse apontar em sentido restritivo seria altamente detrimental para os nossos interesses. Também no plano económico, nomeadamente em matéria de liberdade dos fluxos turísticos, um reposicionamento prolongado de fronteiras teria sempre impactos muito negativos, sem contar com os efeitos nefastos para o interesse global europeu, que hoje integra também o interesse nacional.
Mas os nossos interesses como país não são apenas económicos e políticos, são também éticos. Ao longo dos anos, independentemente dos regimes, a voz moral de Portugal fez-se sempre ouvir em favor daqueles que o mundo tinha deserdado da sorte. Basta recordar o modo como soubemos responder aos apelos dos refugiados da 2.ª guerra mundial e o exemplo nobre de Aristides de Sousa Mendes. Nos conflitos e nas tragédias, o nosso país, nomeadamente a sua sociedade civil, soube sempre respeitar uma reiterada tradição humanista, de generosidade e solidariedade. Nesta crise, é justo lembrar que Jorge Sampaio cedo instituiu um exemplar processo de acolhimento de estudantes sírios e que António Guterres se tem ilustrado como um extraordinário alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Gostaria de ter a certeza que, no auge deste intrincado problema, o nome de Portugal, no plano internacional, continuará a soar como sinónimo de dignidade.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

7 comentários:

Isabel Seixas disse...

Sem sombra de dúvida.

Anónimo disse...

Há semanas, o maior desafio era a Grécia.
Antes, era a crise económica.

Convenhamos, fica sempre bem ao dramatismo dizer que o que se passa, a cada momento, é o maior desafio de sempre.

Joaquim de Freitas disse...

Belo texto, Senhor Embaixador. Toca em muitos pontos essenciais. Mas é angustiante! Mesmo se sabemos que a Europa recolhe os frutos duma política seguidista desde há anos, não há dúvida que o que se passa é um sintoma dum mundo no qual a economia tomou um lugar preeminente. As taxas de crescimento, a evolução da bolsa e os défices das balanças comerciais são agora os instrumentos da queda europeia .Que valores humanos ou morais contam realmente hoje neste velho Continente?

Dois mil anos depois, o fantasma da decadência persegue-nos.
Como dizia Céline em 1937 (Desculpe) : : « Nous basculons définitivement dans la merde ! »

Anónimo disse...

Excelente reflexão senhor Embaixador.
Todavia a prolixa informação, contra-informação, aliada à grave situação de carência de milhares de português já maioritariamente de classe média, o exaspero dos mesmos sem que haja mão amiga [apesar do «socorro» dado por todas as instituições de cariz particular ou não, a falta, literal, de qualquer ajuda, subsidio, fundo ou tarifas socais para determinados grupos de indivíduos de classe média, como profissionais liberais, leva estes seres à "revolta" de verem ser acolhidos e beneficiados [com declarações publicas de personagens de nomeada] outros seres que não eles cidadãos de primeira água deste País. Para eles não há FCP, nem Ronaldos, nem Fundos Comunitários, nem nacionais para ajudá-los.
Creio ser humano e dever-se contemporizar e ter-se empatia por estes seres que se vêem postergados... e entender-se o seu direito à indignação.
É que, por vezes, as parangonas dos média e as organizações internacionais como a ONU, UNICEF e outras que se desagradam de ouvir o lamento destes outros e vetam e calam seus clamores!
O cidadão português é o , ou dos maiores indivíduos empáticos e solidários, mas deixa-se «enrolar» também, por falta de educação em cidadania para a politica, para os média, entre outros, levando-o a actuações de seguidismo por força do empolamento mediático, também!
Eis, sumariamente esta outra achega.
Melhores cumprimentos.

Jaime Santos disse...

Um belo texto, Sr. Embaixador, e e pena que a UE, que reservou tanto tempo a crise grega, não seja agora capaz de resolver um problema que não tem a ver com dinheiro, mas sim com a fidelidade a valores (supostamente) comuns.

Anónimo disse...

Só se "enrola" quem quer, ou tem palas nos olhos!........

Joaquim de Freitas disse...

Com a Grécia, a UE demonstrou que a SOLIDARIEDADE não faz parte dos seus deveres.

Com os refugiados, a UE demonstra que a LIBRE CIRCULACAO das pessoas , inscrita no acordo de Shengen, não faz parte dos seus deveres. Nao importa quem pode erigir muros se isso lhe convém... provisoriamente!

Na verdade, a UE só garante a circulação dos capitais que se evadem para os paraísos fiscais ou escapam dentro da própria UE aos impostos nacionais. Quando penso que o presidente actual da Comissão presidia um governo que facilitou esta evasão de capitais... como podemos esperar !

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...