Foi há 50 anos que a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu instalar em Paris, na residência onde o seu fundador vivera, um Centro cultural que evoluiu para aquilo a que hoje se designa como Delegação.
O historiador Rui Ramos está a preparar um estudo de fundo sobre essa presença portuguesa em França e ontem, durante uma sessão realizada em Paris, divulgou um primeiro esboço desse trabalho.
É muito interessante, através desse texto, olhar, em perspetiva comparada, a presença parisiense da Fundação com a evolução e interação, cultural e humana, das sociedades portuguesa e francesa, nesse meio século. E é também importante contextualizar a evolução dessa presença com os desafios que a própria Fundação foi sofrendo, em Portugal e no mundo.
Em 1965, ao tempo da criação do Centro, a guerra colonial começara em Angola há apenas quatro anos, em Moçambique e na Guiné apenas no ano anterior. Dias antes da abertura do Centro, cerimónia a que esteve presente André Malraux, um escândalo envolvia internacionalmente a ditadura portuguesa: fora descoberto em Espanha o cadáver de Humberto Delgado, que, com razão, logo se suspeitou ter sido assassinado pela polícia política de Lisboa. Malraux, ministro da Cultura, acedeu a estar presente à cerimónia mas pediu que nela não houvesse uma representação ministerial portuguesa.
Ainda antes da inauguração do Centro, muito graças à influência e habilidade diplomática do embaixador Marcello Mathias, a coleção de arte que Calouste Gulbenkian fora reunindo na casa da avenue d'Iena, que adquirira em 1922 (e que a Fundação veio a alienar em 2011), foi transferida para Portugal, constituindo o acervo do Museu que hoje existe. A ideia de que existiu um "trade-off" mais ou menos informal fez sempre parte de uma certa "mitologia": o governo francês teria autorizado a partida da coleção e, em troca, a Fundação criava o Centro e, igualmente, financiava a construção da "Maison du Portugal" na "Cité Universitaire de Paris". A síntese de Rui Ramos não aprofunda ainda esta curiosa questão. Uma coisa é certa: nada parece ter ficado formalmente acordado que confira veracidade a esta teoria.
O estudo aborda o percurso do Centro, que foi também muito marcado pelo perfil dos diversos diretores que o titularam, e descreve a filosofia evolutiva que esteve subjacente ao seu funcionamento: desde o seu caráter de estrutura dedicada à "alta cultura" clássica portuguesa, muito próxima dos interesses dos especialistas "lusófilos" que sobretudo no século XX existiam em França, até a uma leitura bastante mais contemporânea, ligada a temáticas de modernidade, seja na vida europeia, seja em áreas do pensamento à escala global.
Nestes seus 50 anos, o Centro atravessou períodos marcantes. Desde logo o Maio de 1968 em França, a desaparição política de Salazar e a emergência do "caetanismo", bem como toda a tensão provocada pela crescente existência em Paris de uma comunidade migrada de Portugal por razões económicas e, marginalmente, políticas, de que o Centro sempre se procurou isolar.
Depois, ocorreu o 25 de abril. Em 1975, ano em que a Revolução estava no seu auge, o Centro teve como tema de trabalho ... Damião de Góis. Ontem, ao ouvir falar sobre isso, não pude deixar de lembrar-me da TV Rural, por essa época: embora a Reforma Agrária fosse então o tema maior desse setor económico, o engº Sousa Veloso continuava impavidamente a falar do combate ao míldio e maleitas agrícolas correlativas...
Hoje, os desafios são outros e a Delegação da Fundação tem uma agenda muito marcada pela contemporaneidade temática, na linha de outras fundações com vocação global, com uma ação aberta à lusofonia e, de forma crescente, a uma nova geração da comunidade luso-francesa. O mundo mudou, Portugal em França também e a Fundação, cuja imensa qualidade se sabe ter sido a capacidade de saber acompanhar os tempos, está a encontrar novos caminhos para a sua presença em Paris, agora numas instalações modernas, onde se abriga a segunda maior biblioteca de temas portugueses no mundo, fora do país.
Nas funções que desempenho como presidente do Conselho Consultivo da Fundação Gulbenkian para a Delegação em Paris, que reune personalidades portuguesas e francesas, espero conseguir dar uma contribuição útil, não apenas para o contínuo redesenho do novo perfil de intervenção da Delegação em Paris, mas, muito particularmente, para o êxito deste ano comemorativo do cinquentenário da presença da Fundação na capital francesa, que ontem se iniciou.