sexta-feira, dezembro 26, 2014

Adriano de Carvalho

Naquele tempo, antes de Schengen, chegados a Lisboa de avião, tínhamos de preencher aqueles irritantes papelinhos de entrada, com identificação pessoal e número do passaporte. Eu vivia ainda no encantamento "maçarico" de ter um passaporte diplomático (azul, de carneira, com os dados insertos à mão, com a letra magnífica de uma senhora do Protocolo). Antes da aterragem na Portela, comecei a preencher a ficha. O cavalheiro ao meu lado, com quem viajara desde Genebra, acompanhado de um imensa família, nessa véspera de Natal de 1977 (eu vinha da Líbia), dedicava-se à mesma tarefa e tinha um passaporte idêntico. Olhámos um para o outro e apresentámo-nos: ele era o embaixador Adriano de Carvalho, nosso representante permanente junto das Organizações Internacionais, em Genebra.

Adriano de Carvalho era um nome consagrado na carreira. Especialista em questões multilaterais, tinha um historial de grande negociador. Três anos depois, voltaria a encontrá-lo em Oslo, quando por ali foi por questões da EFTA, a acompanhar o ministro português do Comércio. Tinha uma figura avantajada, um ar impositivo mas cordial, um à-vontade e uma autoridade profissional com que dominava claramente a delegação portuguesa. Ao que às vezes recordo, por uma imagem que guardo da ocasião, tinha o vício da fotografia. 

Passaram-se muitos anos. Cheguei a Brasília em 2005. Adriano de Carvalho saíra do cargo de embaixador no Brasil quase 20 anos antes. E, no entanto, não obstante muitos qualificados colegas que lhe sucederam e me haviam antecedido nesse posto, ele era, de longe, aquele de que mais pessoas ainda falavam, que havia deixado uma marca de qualidade e prestígio associado ao nome de Portugal. Fora, aliás, o primeiro do escasso número de portugueses a quem a Universidade de Brasília tinha atribuído um doutoramento "honoris causa". Quando saí daquele posto, tive um grande gosto em oferecer-lhe um livro que aí publiquei sobre os meus quatro anos no Brasil, que me agradeceu com grande amabilidade.

Leio agora, pelos jornais, que o embaixador Adriano de Carvalho faleceu, neste Natal. Ficará na história do Ministério dos Negócios estrangeiros como um grande servidor público, frontal, exigente, mas de extrema competência. Fazem falta ao serviço diplomático português muitas figuras do seu calibre. À sua família, deixo uma mensagem de grande respeito e pesar. 

5 comentários:

Helena Sacadura Cabral disse...

Conheci razoavelmente o Embaixador Adriano de Carvalho um bom amigo do meu irmão mais velho.
Tudo o que diz é verdade. Falta acrecenta o seu apurado sentido de humor e o seu apreço pelas mulheres bonitas! E inteligentes, claro.

domingos disse...

O Embaixador Carvalho era a última testemunha viva das negociações de Portugal com os Aliados, no post-WW2, relativas às dívidas do III Reich para com o nosso país.

Anónimo disse...

Conheci bastante bem o Embaixador Adriano de Carvalho, que era amigo do meu Pai. Foio talvez o último "brasileirista" da carreira. Constava quando era Embaixador em Brasília que alguns altos dirigentes brasileiros o consultavam por vezes antes de tomar algumas decisões. Adriano de Cravalho era de Mêda, Guarda. Casou tarde. Quando vinha a Lisboa frequentava uma tertúlia de amigos da região, onde contava as suas histórias, como a de assistir ao Kruschev a bater com o sapato na mesa na Assembleia Geral da ONU, ou uma caso com uma princesa russa, ou outras cenas da vida diplomática. de permeio ia-se queixando das dificuldades que lhe causava o parco vencimento. Contava ele próprio que um amigo e bem remunerado notário na Guarda, o ouvia enlevado e dizia sonhador, "ganha-se mal, mas goza-se muito".
Fernando Neves

Unknown disse...

Embaixador Adriano de Carvalho


EM 1953, quando, equipado com a licenciatura do ISCEF, entrei para o MNE, mediante concurso, fui colocado na DG dos Negócios Económicos, a "mercearia", como lhe chamava o Embaixador Teixeira de Sampayo, poder supremo nas Necessidades nos primeiro vinte anos da época salazarina e que, já como fantasma, continuou a reger o seu antigo feudo até ao final do mandato ministerial de Franco Nogueira. Havia, claro, o chefe da Repartição - aliás muito estimável pessoa - mas cedo me apercebi que Adriano de Carvalho, formado em Direito, dois anos mais antigo do que eu, beirão (da Meda), era quem ali pontificava. Adriano impunha-se pelo conhecimento que tinha dos assuntos em pauta e pelo seu bom companheirismo: bem disposto, apreciador de uma boa piada, sempre pronto a ajudar um colega momentaneamente a braços com qualquer dificuldade do ofício e sempre mais atento à pessoa do que ao assunto. Alto, corpulento, culto, sagaz, frontal nos seus juízos, Adriano dominava naturalmente qualquer meio em que estivesse inserido. Tais condições permitiam-lhe trilhar confiadamente a estreita senda que separa o colega do concorrente, a simpatia da disciplina e a amizade do serviço. Exigente consigo próprio e com os outros, em matéria de serviço não transigia, atitude que o fez geralmente respeitado mas levou alguns memorialistas da carreira diplomática a atribuir-lhe «mau feitio». Não era o caso, mas nem toda a gente aprecia o fino humor. Notava-se em Adriano de Carvalho também um fraco pelas mulheres bonitas o "que lhe ficava bem", no dizer de uma delas. Enfim, Adriano era a referência para os recém chegados. Mas não só. Quando, após muitas delongas e esquivas nossas, os aliados de II Guerra Mundial puseram o Governo português contra a parede e exigiram a abertura de negociações sobre a questão dos bens alemães aqui congelados no decurso da guerra, um arrepio de pavor percorreu a espinha dorsal do MNE. Matéria super complexa e super delicada. O dossier era um montanha de caixas de arquivo que subia até ao teto no espaço que ocupava numa secção do Arquivo Histórico. Entre outras cousas, ali se contabilizava o ouro recebido em pagamento de fornecimentos de volfrâmio feitos aos alemães durante guerra. Estavam em jogo 4 toneladas de ouro reclamadas pelos países vitimas da ocupação nazi. Por despacho ministerial, o assunto foi confiado ao então segundo secretário Adriano de Carvalho e este, em pouco mais de um mês, escalpelizou toda aquela papelada, inventariou os bens, identificou os interessados e propôs uma estratégia de negociação que foi rigorosamente seguida e conduziu, três anos mais tarde, a um arranjo satisfatório para todas as partes envolvidas. A quase totalidade do ouro - mais de 90% - continuou no BdP.
Adriano de Carvalho - que nos deixou para sempre no dia de Natal - tinha uma paixão - o Brasil. Não foi o último «brasileirista do MNE», como já li algures. A relação do MNE com o Brasil é um caso de amor naturalmente sujeito a constantes arrufos. Eles - brasileiros -, como bons filhos, culpam os pais por tudo o que de mal lhes acontece e nós portugueses sentimo-nos enganados perante tais sinais de ingratidão. Depois descobrimos ambos que afinal fizemos - e pudemos continuar a fazer - muito um pelo outro e voltamos a estreitar os laços de amizade. Adriano de Carvalho conhecia este fadário melhor do que ninguém. Sabia ler a acções dos homens; distinguia entre o superficial e o profundo e não se perdia como veleidades. Ao Brasil dedicou boa parte da sua carreira. Foi cônsul geral em São Paulo, conselheiro da Embaixada no Rio e por fim, o melhor embaixador português em Brasília. Por toda a parte, fez obra, cimentou amizades, conquistou respeito e deixou saudades

Luís Soares de Oliveira

Unknown disse...

Erro meu. Não eram 4 mas 44 as toneladas de ouro em jogo. As minhas desculpas aos colegas
LSOliveira

João Miguel Tavares no "Público"