Já passaram quase dezoito anos. Jorge Sampaio reuniu num restaurante de Cascais um pequeno grupo que, durante os meses que antecederam a sua eleição para a Presidência da República, havia com ele discutido, com alguma regularidade, as grandes temáticas internacionais e de política externa.
Mais de um ano antes, no final de 1994, por sugestão do António Franco, o então presidente do município de Lisboa havia-me chamado uma noite a sua casa e pediu-me que o ajudasse à estruturação de um grupo para promover essa reflexão. Ainda faltavam alguns meses para que ele anunciasse publicamente a sua candidatura. Devo dizer que estranhei o convite, porque sabia Jorge Sampaio altamente conhecedor dos temas internacionais, pelo que não via o valor acrescentado de uma qualquer ajuda da minha parte. Mas ele insistia, achava importante atualizar-se sobre todos as grandes questões e pretendia, ao longo dos meses até ao sufrágio, informar-se em detalhe e esclarecer dúvidas que lhe surgissem. Lembro-me bem de algo que então me disse: "Mas há uma coisa muito importante: não quero nenhum papel oficial, nenhum documento do MNE! Quero apenas trocar ideias com quem pensa habitualmente estas coisas". (Uns meses mais tarde, quando fui a casa de José Lamego para falar com António Guterres sobre a Europa, ouvi-o dizer uma frase basicamente idêntica. As pessoas com sentido de Estado comportam-se assim). Sugeri que, antes do início do trabalho do grupo a constituir, fosse elaborado um dossiê sobre algumas temáticas mais específicas, com textos a serem preparados por diversas personalidades, muitas delas alheias ao MNE ou afastadas do ministério, altamente conhecedoras dessas matérias, que enumerei. Sampaio viria a pedir pessoalmente a cada uma delas a sua contribuição, a qual deu origem a um trabalho muito interessante. Dei-lhe uma lista nominativa para o grupo de debate, que acabou por ser constituído por Luís Castro Mendes, José Freitas Ferraz, Carlos Gaspar, José Filipe Moraes Cabral e eu próprio. Jorge Sampaio também formularia o convite a cada um.
O grupo reunia, às vezes em minha casa, num "brainstorming" muito interessante e enriquecedor para todos nós, que aprendíamos uns com os outros. Num sábado, deu-se um episódio curioso. À hora de almoço, ao abrir a porta no andar onde na altura vivia, a empregada da casa em frente disse-me: "Hoje de manhã, esteve aí à sua procura o senhor presidente da Câmara". Eu não tinha ouvido nada! Jorge Sampaio tinha combinado connosco encontrar-se nesse sábado em minha casa. Mas era à noite! O que é que o levara a ir lá de manhã cedo? Telefonei-lhe e deslindámos a confusão. A reunião era "às nove horas". Sampaio presumira que era "da manhã"...
Com a minha entrada para o governo, uns meses antes da sua eleição e posse, deixei de poder assegurar a presença regular nesses debates. Porém, o novo Presidente não esqueceu a minha anterior colaboração e teve a amabilidade de me integrar no jantar que ofereceu ao seu "team" de política externa. Mais do que isso: fui eu quem foi encarregado de fazer o agradecimento em nome do grupo, nesse jantar, a escassos dias da posse. Disse da alegria imensa que era para todos nós irmos ter em Belém um homem da qualidade política, cívica e, principalmente, humana de Jorge Sampaio. No final, a título pessoal, fiz-lhe um pedido. Era relacionado com os móveis do Palácio de Belém. Imaginava que devessem ser uma imensidão, mas havia uma coisa que eu lhe solicitava que fizesse: que abrisse todas as gavetas dos móveis do Palácio. Alguns dos presentes no jantar, que incluía esposas, olharam para mim com espanto. Que estranho pedido! Sampaio também se mostrava perplexo. Eu esclareci. Depois de Mário Soares abandonar o Palácio, numa daquelas gavetas, deveria ter ficado algo que ali nos unia. Não fora Soares quem afirmara que metera "o socialismo na gaveta"?
Sampaio não deve ter tido ensejo de aceder ao meu pedido. Aliás, o tempo deu para percebermos que ele deixara de ter sentido: Mário Soares levou com ele o socialismo e, como se tem ouvido da sua boca, nunca mais o largou...
5 comentários:
A partir do momento em que o Estado se transformou num apêndice da classe dominante, isto é , da burguesia, o socialismo deixou de existir. Não pode ter ficado na gaveta !
Entre ser a “variante social-democrata do neoliberalismo” e o thatcherismo "variante neoliberal do conservadorismo clássico", o socialismo tem de escolher. Mas o MERCADO não o deixa escolher.
E como se os mais desfavorecidos pudessem fruir da “livre escolha”, numa sociedade completamente mercantilizada, dominada pelo poder do dinheiro, pela ganância e pelo lucro.
Espera-se sobretudo que Sampaio não tenha qualquer veleidade de regressar, apesar do apelo de António Costa. A equipa egocêntrica de cortesãos que reuniu à sua volta deixou-me sempre a duvida se o próprio saberia mesmo de quem estava rodeado. Nada que se possa comparar às equipas discretas de assessores de Soares ou de Cavaco.
A altivez dos assessores deslumbrados com o poder com quem privei de perto fez-me sempre pensar se estavam conscientes verdadeiramente da função que desempenhavam e do facto de o seu/deles Presidente ser de esquerda. A pesporrência dos colaboradores diretos de Sampaio seria mais típica de uma mandatura de Direita...
Sampaio é no entanto um homem íntegro e bem intencionado embora não tenha a certeza de que se saiba rodear dos melhores colaboradores. Se é para voltar a ter uma equipa daquelas à sua volta então mal por mal votarei claramente num Presidente de direita e não num correligionário socialista que ainda sou e serei.
Já Júlio Diniz escrevia deste modo, bons tempos...
Ao Anónimo das 12:05,
Aborreceu-o ter ficado de fora, foi?
in Le Monde diplomatique:
O socialismo existe, para os ricos.
.OWEN JONES
Enviar um comentário