Sempre que uma personalidade política de relevo de um país morre, é de regra que as embaixadas que esse Estado tem espalhadas pelo mundo abram, durante alguns dias, um livro de condolências. Esse livro recolhe notas de simpatia de quem quiser associar-se aos pêsames. As embaixadas de países amigos costumam marcar a sua presença, através do embaixador ou de um outro funcionário por este indicado.
Por regra, os embaixadores reservam-se para as condolências por morte de figuras mais relevantes - chefes de Estado ou de governo -, encarregando da tarefa um seu colaborador quando a figura desaparecida tem uma importância institucional menor. Diga-se que já tenho visto a abertura de livros de condolências pelo falecimento de personalidades que estão muito longe de ser conhecidas no exterior e, muito menos, são relevantes. Mas imagino que as embaixadas não possam eximir-se às instruções que recebem das capitais.
Um dia, algures, um embaixador estrangeiro pediu para me ver, com alguma urgência. Recebi-o pouco depois. Entrou no meu gabinete de semblante grave e com ar muito preocupado. O que tinha acontecido? Na véspera, tinha-se deslocado à embaixada de um país de expressão portuguesa, para preencher o livro de condolências pela morte de uma importante figura de Estado. Porém, por um "lamentável lapso", em todo o longo texto que escrevera no livro, com quase uma página, onde relevara as imensas qualidades e a sabedoria do estadista que desaparecia, colocara erradamente, e por mais de uma vez, o nome de um outro Estado lusófono.
Esse colega, com "pouca África" no currículo e de uma área do mundo dela algo distante, estava seriamente mortificado com as consequências potenciais que esse seu lapso poderia vir a ter nas relações entre o seu país e o Estado lusófono em luto, que seguramente se iria sentir ofendido com o seu grosseiro erro. Vinha perguntar-me o que haveria de fazer, "porque vocês conhecem-nos melhor a eles".
Pondo implicitamente de parte a "expertise" pós-colonial que me era atribuída, pensei alto, com base no bom senso. Se acaso fosse pedir desculpa ao embaixador que tinha aberto o livro de condolências, seria muito difícil dar-lhe uma razão plausível para trocar o nome do seu país. Seria como que uma presunção da irrelevância do Estado que ele representava ou um atestado à sua própria ignorância (não sei se tive coragem de lhe dizer isto, confesso). Assim, não me parecia que ganhasse grande coisa com um ato de contrição. Mas também não poderia excluir que, se acaso o erro fosse detetado, alguns sobrolhos nacionalistas se cerrariam. Era, de facto, uma situação com contornos algo delicados.
E, sem ter nenhuma certeza, deixe-lhe um conselho, ou melhor, disse-lhe o que faria se acaso estivesse no seu lugar (situação que, sem falsa modéstia, me parecia implausível). Porque sempre presumira que ninguém se devia dar ao trabalho de ler os livros de condolências abertos pelas embaixadas no estrangeiro, devendo haver apenas um levantamento das assinaturas, eu era de opinião de que talvez valesse a pena, pura e simplesmente, esquecer o assunto. Não o vi muito sossegado, mas agradeceu, concordando, a minha sugestão e lá saiu, ainda ajoujado de culpa.
Tempos mais tarde, numa conversa com o embaixador lusófono, testei-o quanto ao colega "gaffeur", para tentar perceber se acaso existiria, da sua parte, algum agravo. Inventei, assim, que tinha ouvido, da parte deste, palavras muito simpáticas a seu respeito. A resposta surpreendeu-me: "Ah! mas é um grande amigo! Ainda há dias, organizou um jantar em minha honra na sua residência. Temos excelentes relações!".
Ora ainda bem, pensei para comigo. E, inapropriadamente divertido no meu íntimo, tenho-me sempre lembrado desta história quando, nas embaixadas, assino os livros de condolências, coisa que faço sempre com a maior atenção à geografia.
10 comentários:
Senhor Embaixador,
Estes seus episódios da vida diplomática são sempre fantásticos. Espero um dia vê-los num livro.
caneta montblanc com aparo 810, edição portanto muito limitada. optimas para assinar, pena serem carotas.
pois, atenção à geografia, mas se um engano geografico pode levar a oferecer um jantar, o dono do livro de condolencias até agradece...
há anos fiquei cheio de admiração por a embaixada da india ter aberto um livro de condolências pelo falecimento, não dum governante, mas dessa grande pessoa que foi a madre teresa de calcutá
Bela história cheia de bom senso, Senhor Embaixador!
Caro Tomaz de Mello Breyner: quem sabe se não podemos fazer o lançamento no belo pátio da York House.
Caro Patrício Branco: a caneta não é minha. Sou muito pouco dado ao culto das "coisas". Só uso lápis e canetas tipo BIC!
Senhor Embaixador,
Fica já combinado. Nesse dia o pátio vai ser pequeno.
caro fsc, esclareço q não havia qq farpa no meu comentário envolvendo presunção sobre a propriedade do instrumento,longe disso. abraço, pb.
ps. subscrevo os votos de jtmb
Caro Patrício Branco: nem eu levei as coisas por aí, pode crer.
Já lá vão quase 20 anos, estava na zona das capelas mortuárias dos Jerónimos, no velório da mãe de uma amiga, quando, para minha surpresa, vejo chegar Sousa Cintra - então presidente do Sporting - acompanhado de mais duas pessoas, que, depois de deixar o cartão de visita na bandeja à entrada da capela, foi apresentar os seus pêsames às pessoas que se encontravam sentadas junto à urna.
Pouco depois, um dos acompanhantes segredou-lhe algo, e ele saiu disparado, pegou no cartão, e dirigiu-se para outra capela, onde entrou depois de ter deixado o cartão na bandeja colocada junto dessa capela.
Curioso, fui perguntar quem estava ali a ser velado, e fiquei a saber que era um dos médicos do clube, de cujo nome não me recordo.
Não tendo o picante do seu post, é revelador da tendência de Cintra para as suas conhecidas (e anedóticas)gaffes.
Custa-me acreditar, Senhor Embaixador, que assine condolências diplomaticas com uma bic...
Après tout, onde esta o mal de possuir uma Montblanc com ou sem aparo em ouro?
Enviar um comentário