sexta-feira, janeiro 17, 2025

PSF bem

A partilha pela esquerda francesa da obsessão presidencial de Jean-Luc Mélenchon começava a ser um tapete vermelho para Marine Le Pen entrar no Eliseu. Em nenhuma circunstância Mélenchon teria o voto de 51% dos franceses. Mesmo para derrotar Le Pen. O PSF fez bem em afastar-se.

Biden

Não é muito popular lembrar que Barack Obama deixou uma herança desastrosa em matéria de política externa. Contudo, isso não nos deve coibir de dizer que Joe Biden disputa fortemente aquele "benchmark" negativo. Salva-se a sua prudência ao ter procurado evitar um conflito global.

"Bougain"


No meu blogue "Ponto Come" ficou uma nota de apreciação do restaurante "Bougain", em Cascais.

A solidão socialista

Ontem, o PS francês decidiu arriscar. Viabilizando o governo Bayrou, rompeu a aliança à esquerda, ficando numa "terra de ninguém". Ganharam em credibilidade, mas, se houver novas eleições, Mélenchon colocará candidatos contra eles e podem voltar a desaparecer.

quinta-feira, janeiro 16, 2025

Estudem!

Repita-se, para que não fiquem dúvidas: Portugal fez muito bem em não estar representado na transição presidencial em Moçambique pelo presidente da República e fez igualmente muito bem em fazê-lo através do ministro dos Negócios Estrangeiros. Quem não percebeu, estudasse!

Radicais à solta

Já se percebeu que a linha argumentativa do PSD para combater a liderança do PS, com a luta pela câmara de Lisboa como passo intermédio, é vir acusá-la de radicalismo. 

Para um partido que anda a mimetizar o Chega em matéria de segurança, isto não deixa de ter alguma graça.

As mentiras da IA


Apanhei a Inteligência Artificial a mentir. Vejam a resposta que me deu.

A Trump o que é de Trump

Ouça aqui.

Gaza


Goste-se ou não, é simplesmente isto. 

Mistério

Alguém me há-de um dia explicar a razão pela qual este blogue, depois de ter suspendido a publicação de comentários, ter passado a ter mais visitantes: estamos numa média de três mil / dia.

quarta-feira, janeiro 15, 2025

Diplomacia


Tive hoje o gosto de fazer uma palestra ao grupo de diplomatas que acaba de ingressar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no início de um curso intensivo de preparação que se prolongará por várias semanas. A sua seleção foi feita através daquele que é o mais exigente concurso de acesso ao serviço público que existe no nosso país.

Com a assumida limitação do caráter datado da minha experiência - entrei no MNE é precisamente 50 anos e saí do serviço ativo já há 12 anos -, atrevi-me a dar alguns conselhos, mais comportamentais e menos doutrinários, que me pareceu poderem continuar a ser minimamente válidos. As experiências passadas pode ter algum interesse, mas há que ter em conta que cada percurso profissional dependerá de uma multiplicidade de variáveis impossíveis de prever ou controlar. Alertar para alguns riscos e para a necessidade de estar atento a certas circunstâncias recorrentes foi o que procurei fazer. Espero que isso lhes possa ser de alguma utilidade.

Durante aquela hora de conversa, troquei impressões com quem vai ter o extraordinário privilégio, nas décadas que aí vêm, de defender o nome de Portugal pelo mundo e de interpretar os nossos interesses junto de outros Estados e em organizações internacionais. Só posso desejar muito boa sorte a todos aqueles jovens que apostaram a sua vida na nossa diplomacia.

terça-feira, janeiro 14, 2025

A segurança da Europa

O novo secretário-geral da NATO disse no PE que, para se poder substituir militarmente aos EUA, a Europa precisaria de gastar 10% do seu orçamento em defesa. Por muito grande que possa ser o susto europeu, depois da Ucrânia, não há a mais longínqua hipósese de isso vir a suceder.

A União Europeia não é um país, são 27 opiniões públicas com agendas de interesses e perceções de risco diferentes, que jamais conseguiriam acordar simultaneamente numa medida dessa dimensão - nem sequer metade disso.

Porque nunca poderá ter uma defesa autónoma, a União Europeia vai continuar a "comprar" segurança aos Estados Unidos. O preço que Trump vai exigir vai ser elevado, em termos comerciais, de venda de armamento, de gás e outras concessões. A Europa vai esbracejar, mas vai ceder.

Trump, tal como fez no passado, vai desprezar a União Europeia como um todo e vai "pescar à linha" no seu diálogo com os Estados europeus que lhe convenham. Estes, como se viu já com Meloni, irão, um por um, comer à mão de Washington e, com isso, enfraquecerão a capacidade da UE.

E cá?


É pena que não haja coragem política em Portugal, no governo e na oposição, para defender e viabilizar uma medida idêntica.

"Público"

Tenho pena de ver José Alberto Lemos sair do cargo de Provedor de Leitor do Público. Acompanhei a sua tarefa com admiração. Essa admiração foi aumentando à medida que constatei que o seu trabalho se foi tornando mais difícil, perante a crescente resistência de setores da redação.

Alexandra Leitão

Dificilmente o Partido Socialista poderia ter encontrado um melhor nome do que Alexandra Leitão para candidata a presidente da Câmara de Lisboa. A atual líder parlamentar, que foi ministra no primeiro governo de António Costa, é um dos quadros mais qualificados do partido. 

segunda-feira, janeiro 13, 2025

Fernanda Maria


Lembrarei para sempre o seu clássico "Não passes com ela à minha rua", uma página ímpar da grande enciclopédia portuguesa do ciúme.

Com 87 anos, morreu hoje Fernanda Maria, um imenso nome de um fado de que eu gosto.

Assim tem de ser

Atendendo seguramente a uma avaliação prudente da atual conjuntura política no país, acho de muito bom senso que Portugal se faça representar na tomada de posse do novo presidente de Moçambique apenas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. 

Europa, querida Europa


Caiu na esparrela, caro Sebastião Bugalho. As listas para o Parlamento Europeu são tituladas por "iscos" no topo (foi o seu caso, desta vez) para atrair votos fora da bolha partidária, e depois compostas com pessoas menos cómodas que as lideranças querem manter longe de Lisboa e com outra gente, em geral muito capaz, mas que (bem ou mal) é considerada sem préstimo imediato para a política lisboeta. Somam-se uns amigalhaços políticos da liderança de turno que precisam de ganhar algum. Depois, cada vez mais e felizmente, olha-se ao equilíbrio de género, pedem-se dois nomes às ilhas e, finalmente, pergunta-se: quem é que se põe do Porto?

Xenofobia

Devemos ser o único país do mundo em que um conflito de rua que provoca sete feridos mobiliza todas as televisões. A menos que achemos natural que essa atenção se deva ao facto dessas pessoas serem estrangeiros. Ao atuarem como atuam, as nossas televisões ajudam à agenda xenófoba.

domingo, janeiro 12, 2025

Pensem bem!

Salvo para os "maduros" que apostam na China ou mesmo na Rússia, e partindo do princípio óbvio de que a Europa e o resto do mundo afim serão incapazes de travar as loucuras que Trump venha a tentar, já pensaram bem que só há uma entidade que o pode vir a suster? O povo americano.

Ofensa

Com o respeito institucional que qualquer primeiro-ministro do meu país me merece, por estar lá pelo voto popular, gostava que o Dr. Luis Montenegro soubesse que, como cidadão e como democrata, me sinto insultado ao ouvir-lhe a barbaridade de chamar extremistas quantos, no sábado, saíram à rua a condenar o racismo e a xanofobia.

Os presidentes da Junta

Em 2011, a "troika" mandou reduzir o número de freguesias. O país obedeceu. Passados todos estes anos, o bloco de interesses partidário resolveu retalhar de novo a geografia administrativa. Quantos mais vão agora poder dizer "eu é que sou o presidente da Junta" ? Que país este!

Ditadores e ditadores?

O mundo indigna-se com a posse do ditador Maduro, depois de eleições que quase todos concluíram terem sido fraudulentas. Mas por que será que ninguém mexe uma palha, por exemplo, face à Arábia Saudita, outra ditadura. Quando serão as eleições por lá? Há ditaduras boas?

Daniel Ribeiro



Tinha a sensação de conhecer Daniel Ribeiro muito antes de o ter encontrado pessoalmente, quando fui colocado em Paris como embaixador, em 2009. 

Havia-o lido com regularidade em "O Jornal" e depois no "Expresso". Ouvira falar a conhecidos comuns do seu longo percurso em França, da política ao diverso jornalismo que ali praticou. Por isso, quando o convidei a vir almoçar comigo à embaixada, no mês de fevereiro desse ano, acabava por ser, de certo modo, um "reencontro". 

Estabelecemos logo uma boa relação, cimentada, dias depois, num almoço em casa do pintor José David, de quem o Daniel era muito amigo. Ao longo dos quatro anos que vivi em Paris, essa relação nunca se perdeu, iamo-nos encontrando a espaços, tendo partilhado com ele dois jantares muito agradáveis no "Les Trois Maillets", onde íamos ouvir a sua amiga asiática Mieko.

A ligação entre os jornalistas e as embaixadas, devendo desejavelmente ser fluída, não é necessariamente fácil. O Daniel Ribeiro era um jornalista hábil. Procurava sempre "tirar nabos da púcara", como é da natureza da sua profissão. Como eu cedo prescindi de ter uma pessoa dedicada exclusivamente às relações com a imprensa, fiquei deliberadamente sem qualquer "filtro" nos contactos diretos que aceitava ter com os jornalistas, o que me dava algum trabalho mas também a garantia de que a "voz" da embaixada era sempre e só a minha. 

O Daniel, tal como qualquer dos outros jornalistas portugueses em Paris, ligava-me de quando em vez e, pelas perguntas que fazia, eu ia percebendo o que estava a mobilizar a imprensa face à embaixada e ao mundo português em Paris. Como é óbvio, dizia-lhe apenas o entendia, quase sempre bem menos do que ele pretendia. São essas as regras do jogo, que todos conhecíamos bem. E, ao que me ficou na memória, tudo correu sempre bem entre nós.

Um dia, creio que no final de 2011, o Daniel Ribeiro convidou-me a mim e ao cineasta Mário Barroso, para almoçar no restaurante português "Saudade". Achei muito simpática a sua iniciativa, tanto mais que não havia um motivo óbvio para esse convite. Recordo que o almoço foi muito agradável, com um animado bosquejo, quase geracional, por muitas gentes e algumas histórias passadas. O Paris dos portugueses é um mundo sem fim.

Lá para meio do repasto, que recordo ter sido longo, o Daniel perguntou-me se eu tinha o contacto de José Sócrates, que, desde há cerca de meio ano, vivia em Paris. Disse-lhe que tinha um número de telefone de Sócrates, creio que de um telefone português, mas que não lho podia dar. Pediu-me então se eu podia transmitir uma mensagem ao antigo primeiro-ministro: de que ele, Daniel Ribeiro, como correspondente do "Expresso", pretendia fazer uma longa reportagem para o jornal sobre a sua estada em Paris.

Expliquei-lhe que, desde que Sócrates vivia em Paris, tinha-o encontrado duas únicas vezes, que não mantinha um contacto regular com ele e que, mesmo que assim não fosse, nunca seria "go-between" entre ele e quem quer que fosse. A especulação em torno da vida de Sócrates em Paris estava então no auge, os nossos tempos políticos internos eram muito tensos e estava em absoluto fora de causa que o embaixador de Portugal viesse a envolver-se na trama. Recomendei que, através do seu jornal, em Lisboa, tentasse fazer esse contacto com José Sócrates. Estava certo que, seguramente, alguém o poderia conseguir. 

O Daniel não deve ter apreciado a recusa, mas aceitou a minha atitude e lá pagou o almoço para que nos tinha convidado. Há uns anos, eu e o Mário Barroso lembrámos, no Procópio, essa refeição. "Só percebi a razão do convite do Daniel depois do bacalhau...", riu-se o Mário.

Chega agora a triste notícia de que o Daniel Ribeiro morreu, aos 71 anos. Vale a pena referir que o papel importante que ele desempenhou ao assegurar, durante décadas, a cobertura comentada da vida política francesa para os leitores da nossa imprensa. Tinha uma abordagem equilibrada, culta, sempre muito bem informada. O Daniel pertencia a um outro tempo do jornalismo, do qual, confesso, sinto cada vez mais falta.

sábado, janeiro 11, 2025

Simplesmente Coimbra


O Alfa em que estou a viajar, entre o Porto e Lisboa, acaba de fazer uma breve paragem em Coimbra-B. 

Este é o último dia em que a estação tem esta designação. A partir de amanhã, esta paragem do comboio, na Linha do Norte, passa a designar-se apenas por Coimbra. 

Há minutos, constatei que a placa da estação ainda era esta.

Desde 1885, Coimbra tinha uma outra estação, situada no centro da cidade, que fazia a ligação, num "shuttle" de cerca de cinco minutos, a esta Coimbra-B, por onde acabo de passar. E, daqui, acedia-se “ao mundo”... 

A estação central de Coimbra deixará de existir precisamente amanhã, 140 anos depois de ter sido posta em funcionamento. 

Daí esta nota histórica e nostálgica.

Essa estação mais central era oficialmente designada como Coimbra, embora muita gente da cidade lhe chamasse a "estação nova". Outras pessoas, como era o meu caso, chamavam-lhe Coimbra-A.

(Historicamente, era em Coimbra-B que os “caloiros”, arribados à universidade da cidade, eram pela primeira vez chamados de “doutor”, pelos carregadores de bagagem, à espera de uma gorjeta pelo “elogio”, que inchava esses incautos novatos.)

Mas hoje trago à baila as duas estações ferroviárias de Coimbra por uma outra razão: uma anedota que se contava no meu tempo de liceu.

Segundo a historieta, alguém de Coimbra quis, um dia, ir de comboio até Qianjin, uma cidade no norte da China. Dirigiu-se à bilheteira da estação de Coimbra-A, no centro da cidade, e pediu um bilhete. O homem do guichet respondeu-lhe: “Para isso, só em Coimbra-B. Eles é que têm as ligações internacionais”. 

Chegado a Coimbra-B, a resposta não foi muito mais promissora: “Só na Pampilhosa, meu amigo. Lá é que os comboios ligam a Espanha. Ali é que o podem informar”. 

Na Pampilhosa, de facto, as coisas começaram a compor-se, ainda que não em definitivo: “Vendemos-lhe um bilhete para Paris. Depois, eles lá o encaminham para a China”.

E o homem assim continuou. De Paris foi mandado para Moscovo, dali para Pequim e um dia lá chegou a Qianjin. E por ali ficou o tempo que tinha de ficar, sabe-se lá bem a fazer o quê.

Um dia, o coimbrão decidiu regressar. Dirigiu-se então ao guichet da estação ferroviária de Qianjin. A fila de pessoas era grande (tudo o que mete pessoas, na China, como se sabe, é “em grande”). Esperou pela sua vez e, quando esta chegou, pediu um bilhete para Coimbra, que explicou ser uma cidade em Portugal. Contava-se - mas “vendo-a como me a venderam”, como soe dizer-se - que o chinês, sem paciência de chinês, lhe retorquiu: “Mas o meu amigo acha que aqui não temos mais nada que fazer? Seja mais preciso, homem! Quer um bilhete para Coimbra-A ou para Coimbra-B?”

E agora? Já terão avisado a bilheteira de Qianjin?

Na rua


Nunca fui muito dado a participar em mobilizações de rua, mas, se pudesse estar hoje em Lisboa, iria com muito gosto e convicção a esta manifestação. As coisas estão a chegar a um ponto em que a indiferença e a neutralidade acabam por ajudar à festa dos outros. E eu não gosto, mesmo nada, da festa dos outros.

sexta-feira, janeiro 10, 2025

Coisas à letra


No final do jantar, no restaurante "Mito", no Porto, ao pedir um café à belíssima empregada loira que me serviu, que era brasileira, fui tentado a ironizar que esperava que esse café fosse mesmo "o melhor", a rimar com este azulejo numa parede ali bem perto. 

Mas calei-me, para evitar confusões, porque o mundo anda perigoso e nem tudo o que, no passado, parecia óbvio e natural, é hoje tomado de forma benévola. 

Schutt...!

Não poderia a CP lançar uma campanha de educação comportamental básica, com vista a fazer perceber aos passageiros dos seus comboios que é de uma extrema falta de respeito falarem alto ao telefone durante as viagens? Ninguém pode ser obrigado a ouvir as conversas dos outros.

E se...?

Na imprensa francesa, perante a ausência, por doença, da presidente da Comissão Europeia, fala-se que a Europa está "aux abonnés absents", a clássica expressão para significar incontactável. Mesmo sem forçar cizânias, não quererá o Conselho Europeu ir a jogo?

Não sou de cá


Havia uma expressão, muito usada em outros tempos, que transpirava uma atitude de desinteresse: “Não sou de cá, eu só vim à bola!”. Era assim a modos de um “não tenho nada a ver com isto!” A frase renasceu-me, na cabeça, a propósito de Lisboa e da rua onde vivo. Para concluir, precisamente, o seu contrário.

Há uns tempos, sob uma bátega que caía sobre a cidade, soprada dos céus, a que deram um nome de espanhola acompanhante de bar, comigo a caminho do carro, sem guarda-chuva, com as pingas a não darem espaço para fugir entre elas, matutava, a sério!, que esta é hoje, mais do que nunca e para sempre, a minha cidade. Disse isto para dentro com uma sinceridade tão enfática que até a mim me surpreendeu.

Não sou de cá, de facto. Nasci em Vila Real. A primeira vez que vim a Lisboa, o meu pai levou-me ao Jamor, numa tarde onde Portugal apanhou uma “abada” da Suécia, em futebol. Sou dos que vieram “à bola”, vistas bem as coisas. Com os meus sete anos da época, nem reparei que andava ali, na relva, o grande Matateu (um dia, contei isso ao Vicente, irmão dele, num estádio de Nova Jérsei, onde, há mais de vinte anos, fui gozar uma tarde de convívio com velhas glórias lusas em chuteiras). Por isso, nem sequer me recordo de ver o Costa Pereira “encaixar” os seis golos nórdicos, com o Águas a tentar salvar a honra do convento, com os dois da nossa parca resposta.

Vim para Lisboa no final dos anos 60. Morava nos Olivais. De manhã, ia a Moscavide apanhar o 28 para chegar perto da zona da Junqueira, onde estudava. Guardei, na minha organizada memória de cheiros, o fumo baixo e intenso que nos entrava no autocarro, vindo das refinarias que, muitos anos mais tarde, a construção da Expo iria fazer desaparecer. Seguíamos ali, ensonados, como sardinhas em lata, a embaciar de respiração, em tempo pré-covid, as janelas dos verdes carros da Carris.

Tempos mais tarde, sem ter mudado de morada, tinha mudado provisoriamente de vida e de rumo: apanhava o 21 para Entrecampos, depois o metro para os Restauradores, subia o elevador para o Bairro Alto, que atravessava a passo rápido, para entrar, até às 9 e 35, no meu emprego de funcionário da Caixa, no Calhariz. (Depois das 9 e 35, tinha de se pedir ao senhor Marques, com uma desculpa, para nos deixar assinar o livro de ponto). Comia, com os meus colegas bancários, nas tascas da Bica, de Santa Catarina e de coisas por ali à volta, no Bairro Alto.

No fim do trabalho, mudava de registo. Parava na Opinião, entre livros e uma “Cuba libre”, bebida então na moda, cruzando nomes de quem lia coisas nos jornais. Ia a uns cursos no Centro Nacional de Cultura, ali perto. Ao cair da tarde, com as lojas a fechar e os caixeiros a apressarem-se, descia, até ao Rossio, um Chiado deserto, num cenário que o tempo da pandemia me fez recordar.

À época, verdade seja!, eu quase não conhecia aquilo que se pode chamar de lisboetas de gema, os tais alfacinhas, de que agora já ninguém fala. Tenho ideia, provavelmente errada, de que ninguém, das minhas relações de então, era de Lisboa. Uns eram da Beira, muitos amigos eram de Trás-os-Montes, gente que estudava comigo vinha de África, tinha minhotos conhecidos, de Viana, terra onde passava as minhas férias. 

Só uns primos, que por aqui tinha, eram mesmo gente de Lisboa. Recordo que eles ecoavam, nas conversas, um sotaque muito próprio, que por anos me pareceu bem bizarro e que, agora, dá ares de ter-se dissolvido - ou será o meu ouvido que entretanto mudou. E diziam umas palavras estranhas, para quem vinha do norte: algibeira para bolso, gelosias para persianas, cadeado para aloquete, telefonia para rádio, imperial para fino e coisas assim. 

Com todos eles, muito por causa deles, mas também porque me adaptava com facilidade e gosto às cenas urbanas em que projetavam as suas muito diferentes vidas, fui-me habituando a gostar das muitas Lisboas por onde me levavam. Fui-me tornando lisboeta assim.

Casado, passei a viver, depois, um pouco fora da cidade, naqueles caixotes a estrear, para a pequena burguesia, que se construíam então em Santo António dos Cavaleiros. O dia era passado em Lisboa, onde havia de ser a minha tropa e em que tive outros empregos.

A certa altura, fui-me embora para o estrangeiro, levado pela profissão em que, entretanto, ingressara. Regressei a Lisboa quando isso tinha de acontecer, vivi ao lado do Campo Pequeno, com lojas onde se conheciam as pessoas. Casas com vizinhos com nome, essa coisa boa que nos faz sentir parte de um mundo, como hoje felizmente de novo me acontece.

Um dia, já nem sei bem porquê, ou talvez porque me faltava espaço para os meus livros, fui viver para a Lapa.

Quando disse ao meu pai, lá para Vila Real, que tinha comprado (melhor: que iniciara a compra, porque demorou muitos anos a pagar ao banco) uma casa na Rua de S. Domingos à Lapa, ouvi, de volta, pelo telefone, com uma gargalhada: “Vê lá se não compras a casa do Dâmaso!”. 

É claro! Era isso! Tinha-me esquecido! O Dâmaso Salcede, o "sportsman" de “Os Maias”, tinha “morado” naquela que ia ser a minha rua. É lá que se passa a cena magnífica em que o João da Ega e o Cruges lhe foram exigir a carta de desculpas para o Carlos da Maia, com o Dâmaso a hesitar se “embriaguez é com um “n” ou com um “m” “? Quantas vezes, com o meu saudoso amigo Luís Santos Ferro, discuti onde é que o Eça teria pensado colocar a casa do Dâmaso. A doutrina comum foi assentando em que seria lá bem para o fundo da rua. Nem imaginam as manias que os queirosianos obsessivos podem ter!

“Olha lá, ó meu burguês! Ouvi dizer que agora vives na Lapa!“ Foi do vozeirão de um amigo esquerdalho, mas bem na vida, que saiu, numa noite do Procópio, esta ironia sobre a “traição” política de classe que o meu novo bairro simbolizava. Pois era! Tinha essa sorridente contradição. À defesa, eu argumentava que a “minha” Lapa era já inclinada para os lados da Madragoa, o que dava um ar fácil de poder esperar integrar uma marcha nos santos populares. 

Durante anos, a minha freguesia foi a de Santos, mas, depois, fez-se uma molhada geográfica, que passou a incluir os Prazeres, tudo embrulhado no nome de Estrela. Razão tinha uma amiga que achava que, à nova freguesia, assentava melhor o nome de “Santos Prazeres da Lapa”! 

A ”revanche” ideológica possível tinha-a descoberto muito cedo, mesmo antes de para ali ir viver. A minha rua, a Rua de S. Domingos, é cenário de uma das mais emocionantes fotografias de como se viveu, em Lisboa, o dia da vitória dos Aliados, no final da Segunda Guerra mundial. 

À direita de quem desce a rua, esteve sedeada, por décadas, a embaixada britânica, num excelente edifício, há anos vendido pelo “Foreign Office” a uma companhia de seguros, que hoje muito ganharia em ter quem lhe iluminasse profissionalmente a bela fachada. 

Alguém, nesse dia de júbilo democrático de 1945, de uma varanda da antiga embaixada, fotografou a multidão, onde se agitavam as bandeiras dos países vencedores. De todos? Não. Há alguns manifestantes que se vê terem um simples pau na mão, sem nele se vislumbrar qualquer bandeira. A verdade é que ousar mostrá-la, bem vermelha (não encarnada) como devia ser, com a foice e o martelo do estandarte soviético, era capaz de não ser muito prudente, atento o zelo de um pessoal que, como se vê em algumas imagens, colocara os carros um pouco mais acima e que, com certeza, iria acabar o dia a reportar o evento num certo endereço no Chiado. Tenho orgulho de ver as minhas janelas de hoje nas imagens daquela manifestação de coragem.

Há semanas, no 25 de Abril, lembrei-me de que, nessa data exata, em 1974, quando, como militar a prazo, andava, curioso, a espiolhar as instalações da RTP no Lumiar, que a minha unidade havia ocupado na madrugada anterior, quis saber qual era o gabinete de Ramiro Valadão, que presidia à televisão.

Foi então que, alguém, lá da casa, me esclareceu: “Não é aqui! Aqui são só os estúdios. O gabinete dele é na rua de S. Domingos à Lapa”. Só muitos anos depois fui a esse belo palacete, situado no lado sul da rua, encontrar-me com essa grande figura do bem que foi Mário Ruivo, que por ali trabalhava, no final da vida, nesses mares em que navegava sabedoria e jovial inteligência.

É assim, caro leitor, esta minha rua. Entra-se nela vindo da Buenos Aires. No alto, por alguns anos, sobreviveu uma loja com produtos da Transilvânia, que a pandemia terá ajudado a fechar. Nunca lá entrei e hoje tenho pena de não ter ali tido uma conversa sobre o Drácula, como se impunha. 

Um pouco mais abaixo, olhando ao fundo, vê-se o rio e a outra banda. A rua é longa, nela passam elétricos e muitos aceleras. Hoje, quase não tem comércio. Em outros tempos, houve por ali um café, com o épico nome de Valquíria. Se continuarmos a descer a rua a pé, vê-la-emos estreitar, ficar com um piso de bairro antigo, desaguando, finalmente, numa escada com corrimão, antes de chegar às Janelas Verdes.

É uma rua de muitas casas e poucas gentes. De muito alegre, verdade seja, a minha rua tem apenas um infantário, cuja paragem de atividade fez cessar, por alguns meses, a gritaria saudável que a miudagem por lá faz. Mas tudo isso já voltou, felizmente. Ligo o tempo do confinamento à falta desse chilrear.

Quero com isto dizer que a minha rua é uma rua triste? Ora essa! É a minha rua e a rua onde vivemos tem a alegria da felicidade que nela queiramos e possamos ter. E, já agora!, que fique muito claro: eu também sou de cá, da minha rua, desta Lisboa.

Na linha justa


Gosto de viajar em comboios em que me sinto confortável.

Ora Eça!

Foi comovedor ver a imensidão de exegetas da presumível opinião de Eça de Queiroz sobre a decisão de colocar os seus restos mortais no Panteão. O que por aí vai de "achismo" queirosiano...

Não, Eduardo

Discordo tão poucas vezes do meu querido amigo Eduardo Ferro Rodrigues que não quero perder esta rara oportunidade de dizer que não concordo com a sua ideia de "primárias" presidenciais no PS, embora perceba a racionalidade da ideia. A nossa Constituição não é presidencialista.

Embaraço

PS e PSD estão num imenso embaraço, em face das eleições presidenciais. Ambos já perceberam que dificilmente conseguirão segurar os seus eleitorados. Não fosse dar-se o caso de estar em causa a dignidade do país, isto poderia ter alguma graça. Mas não tem nenhuma.

Por tabela

Nunca entendi a naturalidade com que, um pouco por todo o mundo, se aceita escutar as opiniões de alguém, só pela circunstância dessa pessoa ser cônjuge, filho ou parente de qualquer outra natureza, de uma pessoa que exerce um cargo público, em especial eleito. Mas já percebi que estou sozinho. 

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Uma ideia sem sentido

A ideia de António José Seguro de isentar o OGE de voto parlamentar não tem o menor sentido. Lamento ver uma pessoa por quem tenho grande consideração pessoal, antigo líder do PS num período muito difícil, que saiu com grande dignidade do lugar, cometer este imenso erro político.

"A Arte da Guerra"


Vai para quatro anos que faço para o "Jornal Económico", com o jornalista António Freitas de Sousa, um podcast semanal sobre a atualidade internacional intitulado "A Arte da Guerra". 

São programas de cerca de 30 minutos, divididos em três partes, cada uma delas abordando temas diferentes. 

Esta semana, depois das férias natalícias, o "A Arte da Guerra" tem, excecionalmente, cerca de 50 minutos.

Se tiver curiosidade e paciência para nos ver e escutar, clique aqui.

Gentileza


Acontece há muitos anos. Um pouco por todo o mundo, as embaixadas do Japão oferecem, a pessoas suas amigas, um belíssimo calendário, com extraordinárias fotografias de flores daquele país. É um gesto de grande simpatia e gentileza, mas também de uma imensa sensibilidade. As imagens do calendário transmitem-nos sempre serenidade, ao longo do ano, na sua elegante estética.

Este ano, vou confessar, a não chegada do calendário tinha-me levado a comentar, em família, que talvez a representação diplomática japonesa tivesse decidido optar por cessar a distribuição do ritual calendário. Senti alguma pena, mas dei comigo a aceitar que tudo na vida tem um termo. 

Há minutos, chegou-me a casa o calendário do Japão! Fiquei satisfeito, confesso.

Deixo um abraço grato ao meu amigo embaixador Ota Makoto e à sua dinâmica equipa, com votos de um excelente 2025 para todos e, naturalmente, também para o seu belo e amigo país.

Dâmaso


Vinha a sair, ontem à tarde, da antiga Valquíria, onde uma senhora chinesa agora passa roupa para fora. Trazia com ele uma trouxa. Está mais gordo, balofo, um pouco desmazelado. Vestia uma gabardine com ar encardido, modelo Columbo. Como o Eça contou, na cena de "Os Maias" em que o Ega e o Cruges o foram intimar a pedir desculpas escritas ao Carlos, o Dâmaso mora na São Domingos à Lapa. Tal como eu e o Guilherme Oliveira Martins moramos, e tanta outra gente. Vive sozinho, ao fundo da rua, perto das escadinhas. Às vezes encontramo-nos por ali. Cruzo-o tambem a espaços na Cristal, sempre agarrado ao "Correio da Manhã", a comer um croissant com sumo de laranja, trocando larachas com o Fernando, que o trata por "Sô Salcede". Longe vai o tempo em que fazia esperas às "piquenas" (o Dâmaso cuida sempre em utilizar o "tialecto", isto é, o dialecto das "tias", para garantir usucapião social), nas esquinas da Buenos Aires. Consta que se meteu, há tempos, com uma cabeleireira e que, em lugar de umas clássicas bengaladas, que teriam algum estilo, levou duas secas lambadas do marido da senhora. Ontem, encontrei-o bastante aborrecido, com alguma razão: ninguém o tinha convidado para ir ao Panteão, despedir-se do Eça. "Logo eu, que sempre me dei tão bem com o Zé Maria! Às vezes, zombou de mim, é verdade, mas a rapaziada do nosso tempo nunca se zanga". Pois não.

Resta esperar pela América?

O sentimento internacional que prevalece, em face da arrogância quase sem limites de Trump, é de impotência e de atarantado atentismo. Fica a ideia de que apenas nos resta esperar por aquilo que vier a ser o futuro de Trump no seio dos próprios EUA. Triste destino do mundo!

Agora muito a sério

Ouvir o antigo e futuro líder da maior potência do mundo dizer as barbaridades que tem dito sobre outros países, numa atitude de "bullying" político assente no abuso da força, demonstrando um total desrespeito pelo Direito Internacional, não os assusta?

quarta-feira, janeiro 08, 2025

Steinbroken


Cruzei-me com ele à saída do Panteão, sob a chuva infernal desta manhã. Descia, ligeiro, em direção de Santa Apolónia. A cara, que olhei de raspão, dizia-me alguma coisa, mas o chapéu de chuva (divertido tipicismo semântico dos lisboetas para um simples guarda-chuva), pressionado pelo vento forte, rapidamente o cobriu. Ao fundo da rua, já ao pé do Estado-Maior, a matrícula diplomática do carro em que apressadamente entrou confirmou a minha suspeita. Era ele, era o meu colega Steinbroken, ministro plenipotenciário finlandês. Reconheça-se que foi um gesto bonito do diplomata da Finlândia ter querido estar presente em Santa Engrácia, na homenagem ao Eça. A bem dizer, Steinbroken deve quase tudo ao escritor.

terça-feira, janeiro 07, 2025

Eça agora!


Ouvir aqui.

O Ferrari dos bombeiros


Em 1979, quando fui colocado na embaixada em Oslo, encomendei um Golf. A casa que ia ocupar era um pouco fora da cidade e, sem carro, a minha vida diária seria impossível - como me avisara Fernando Reino, o meu futuro embaixador. 

No dia seguinte à minha chegada a Oslo, fui levantar o automóvel. Era de um vermelho berrante, como se fosse um Ferrari! Parecia uma ambulância! Detesto carros "vistosos"! Fiquei furibundo, mas foi-me explicado que era o único carro disponível, a menos que estivesse disposto a esperar várias semanas por outra cor. Não estava. E como, para mim, um carro é apenas um carro, como nada sei nem me interesso por automóveis e o que me importa é ter sempre um veículo cómodo e potente para me deslocar, quase esqueci a "ambulância" em que passaria a andar nos próximos anos.

Tempos mais tarde, a minha mulher foi juntar-se-me em Oslo. Ao ver o nosso novo carro, exclamou: "Que diabo de cor! Parece um carro de bombeiros! Isto não é um Ferrari!". Lá vinha outra vez a síndrome da "ambulância"! 

Passaram uns meses. Foi-nos visitar à Noruega Álvaro Magalhães dos Santos, um vila-realense, há muito residente em Lisboa, com afiado humor na ponta da língua e da escrita - ele que foi o "Vicente Gil" de "A Capital" e fazia páginas satíricas para "O Diabo" e para o "Correio da Manhã". O Álvaro, que já se foi desta para pior há muito, ao chegar junto do meu carro, no aeroporto de Fornebu, logo disse: "Olha! Tens um carro igual ao do Neto. A fingir de Ferrari!"

Quem era o Neto? Foi um antigo comandante de uma das corporações de bombeiros de Vila Real e que era conhecido por ter o seu carro privado, creio que um pequeno Austin, precisamente com o vermelho berrante com que eram pintados os veículos da corporação que chefiava. Também o Álvaro Magalhães Santos, autor do livro "Rua Direita - uma janela sobre Vila Real", um repositório de saudades irónicas sobre a artéria onde vivera a juventude, numa casa vizinha dos bombeiros do Neto, não se privara de sublinhar o vermelho-ambulância-Ferrari do meu Golf.

Ontem, de Lisboa, por zoom, intervim numa sessão comemorativa da vetusta corporacão de bombeiros de Vila Real de que o Neto foi comandante e que é atualmente dirigida pelo Álvaro Ribeiro, que me fez o convite. Fiquei com uma curiosidade: qual será a cor do carro do Álvaro Ribeiro? 

No dia da morte de Jean-Marie Le Pen


Aquele meu conhecido parisiense, um homem encantador que vivia numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vivia rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que, na ocasião, também estivesse o seu "ami Jean-Marie".

À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, fazia claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.

Estávamos em 2010. Le Pen continuava a ser, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. A sua filha estava então prestes a assumir a presidência do seu partido, o "Front National" (hoje ""Rassemblement National").

Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, uma década antes, a propósito da chegada ao poder da extrema-direita austríaca (curiosamente, por estes dias, um quarto de século depois, o cenário volta a repetir-se). E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o tal convite para jantar.

Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.

Foi cordial para com o embaixador de um país que conhecia bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que era então uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que havia uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.

À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios.

Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen, bem pelo contrário.

Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir.

Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente bem aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas, que acabava por radicalizar a postura do "Front National" e dele afastar potenciais simpatizantes?

Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E, nesse jantar, voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam aos campos de concentração alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que até então nunca ouvira falar do assunto!).

Tudo isto acabou por dar, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada.

À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França". Vim a saber depois que era uma figura da comunidade judaica.

Jean-Marie Le Pen, indiscutivelmente a grande personalidade da extrema-direita francesa no pós-guerra, morreu hoje.

No debate no Parlamento Europeu, em janeiro de 2000, em que fui por ele zurzido, a propósito da questão austríaca, houve uma figura francesa que saiu em minha defesa - e a quem, anos mais tarde, tive o ensejo de agradecer pessoalmente a sua atitude. Foi François Bayrou. É hoje primeiro-ministro do seu país.

(Estes episódios já foram por aqui contados no passado. Achei interessante relembrá-los no dia da morte de Jean-Marie Le Pen.)

segunda-feira, janeiro 06, 2025

Fernanda de Castro


Há figuras únicas na sociedade e na cultura portuguesas. Fernanda de Castro foi uma delas. O seu marido, António Ferro, foi outra.

Com os anos e com a vida, fui aprendendo a saber desligar os meus preconceitos ideológicos da avaliação do perfil público das pessoas. Tudo, na política, me afasta de Fernanda de Castro e de António Ferro. E, no entanto, é fascinante acompanhar o percurso daquele casal no Portugal da ditadura. 

Há já bastantes anos, li, com muito agrado, os dois volumes das memórias de Fernanda de Castro. É o tipo de livro que nos ajuda a perceber a intimidade de alguns setores do regime, a sociologia de uma certa Lisboa, vista pelos olhos de uma pessoa comprometida com esse tempo. Não é necessário estar de acordo com a interpretação que a autora faz das situações que atravessa para apreciar o modo, literariamente límpido, como as aborda e descreve. Vejo agora que essa obra foi reeditada, num único volume. Quem se interessa por perceber melhor o país que herdámos ganhará em lê-la. 

Houbigant


Desde criança que ouvia o meu pai referir, como sendo uma espécie de "benchmark" dos odores, o nome de um perfume para mulher com o nome de Houbigant. Nunca vi lá por casa aquela marca. Imagino assim que ele tivesse preservado essa referência cimeira, sabida algures, sem, contudo, alguma vez ter testado o verdadeiro cheiro de Houbigant.

Por muitos anos, sempre que perguntava, em perfumarias, em Portugal ou lá fora, se tinham Houbigant, a resposta era invariavelmente negativa. Nem sequer alguma vez encontrei alguém que tivesse ouvido falar da marca.

Há tempos, descobri que o perfume Houbigant estava à venda no comércio digital. Pensei assim oferecer, na noite de Natal, a quem me acompanha os dias, um frasco do tal Houbigant. Uma vez não são vezes! Não consegui para essa data. A encomenda atrasou-se e o perfume só nos chegou a casa hoje! Que tal é? Não sou especialista em odores, mas, a mim, como leigo, parece-me bastante agradável. Mas sou completamente incapaz de o desconstruir e de descrever a sua composição - como algumas pessoas conseguem fazer com os vinhos, prenhes de sabedoria no palato. 

Para mim, o "mistério" do Houbigant, que se mantinha desde há quase sete décadas, acabou hoje. Só tenho pena que já me não seja possível partilhar, com o meu pai, esta experiência do Houbigant, que ele sempre mitificava como o suprassumo das fragrâncias.

domingo, janeiro 05, 2025

sábado, janeiro 04, 2025

Seminário diplomático



Esta segunda-feira terá início em Lisboa o Seminário Diplomático, que anualmente reúne os chefes de missão que Portugal tem pelo mundo.

Além de intervenções de membros do governo da área diplomática, a começar pelo ministro Paulo Rangel, e do primeiro-ministro, Luís Montenegro, terá lugar a tradicional reunião com o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Os diplomatas encontrarão também por ali quantos foram convidados a intervir na ocasião. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que estava prevista como tal, não vai poder participar, por motivos de saúde. Foi anunciado que Durão Barroso irá saltar do banco de suplentes para o palco. E lá estará também, com toda a naturalidade, a nova comissária europeia portuguesa, Maria Luís Albuquerque. A participação da equipa política de turno no evento será completada com a intervenção do ministro da Economia, Pedro Reis.

Recupero aqui um desenho recente do Financial Times, sem que, com isso, me atreva a sugerir que talvez pudesse ter sido convidado a intervir, na ocasião, o novo presidente do Conselho Europeu, pessoa que, por coincidência, é de nacionalidade portuguesa. Mas sou obrigado reconhecer que isso estragaria a impecável, e pelos vistos implacável, uniformidade partidária de todos os tenores políticos chamados a terreiro. Assim, só posso deixar os meus votos de que, como quase sempre aconteceu no passado, o Seminário Diplomático venha a correr a preceito.

sexta-feira, janeiro 03, 2025

Hélder Macedo


Hélder Macedo é uma das figuras maiores da cultura portuguesa. Com um percurso próprio na vida académica e literária, feito bastante fora das capelinhas tradicionais, sem dever nada a ninguém e com uma independência que sempre irritou alguns bonzos da paróquia, soube construir, com imensa solidez, uma prestigiada carreira. 

Nos últimos anos, a República consagrou-o com duas distinções importantes. Hoje, ao que acabo de ler, foi-lhe atribuído o Prémio Vasco Graça Moura - Cidadania Cultural. Fico feliz por isso. Pelo reconhecimento do indiscutível mérito que isso representa e, o que não é menos importante para mim, porque sou amigo do Hélder. 

quinta-feira, janeiro 02, 2025

Viajar livre


Uma vez, há já bastante tempo, fiz uma viagem de carro, entre Paris e Vila Real. Saía, por esses dias, de quatro anos de embaixador em França. E, de imediato, ia reformar-me (pensava eu). Passava a ter livres todos os dias da vida que restava à minha frente. Havia decidido fazer dois "stopovers", em Bordéus e Bilbao. Faria o percurso de regresso em três dias. Era um período fora das épocas altas, pelo que iríamos marcando os hotéis pelo Booking, apenas horas antes. Saídos de Paris com neve, o dia foi-se compondo e chegámos a Bordéus logo ao início da tarde. Tanto tempo por ali? Mudámos de ideias: íamos dormir a Biarritz. Perdíamos o jantar que eu tinha imaginado no La Tupina, de que eu gostava quase tanto como Chirac, mas ganhávamos umas horas. Chegados à zona basca francesa, lembro-me de termos feito, já com a calma de quem vai por ali assentar o dia, a estrada da Corniche, enquanto decidíamos o hotel onde ficar. Talvez desse mesmo para, na manhã do dia seguinte, dar uma saltada a Urt, ao cemitério onde está sepultado Roland Barthes, uma das minhas estimações. De repente, ele há cada uma!, deu-me um vaipe. E se fôssemos dormir a San Sebastián?! Há quanto tempo ali não parávamos. Tinha saudades daquela orla marítima. No caminho, com a noite já a cair, pôs-se a hipótese de "saltarmos" um dia e, afinal, ir dormir logo a Bilbao. Contudo, não tínhamos reservado bilhetes para ir visitar o Guggenheim. Haveria vagas, na manhã seguinte? A interrogação absolvia-me o ânimo. Parámos a jantar num restaurante de estrada, à entrada da cidade. Enquanto ainda olhava os hotéis possíveis em Bilbao, um pensamento comodista atacou-me: mas, afinal, quanto é que faltava para chegar a Portugal? Por Puebla de Sanabria a Chaves era "um saltinho"! (Lembrei-me de uma boleia que, nos anos 70, tinha apanhado pela velha estrada por aí, com um taxista português, numa tirada direta, de Dax às Pedras Salgadas). E assim fomos. Pouco passava das 11 da noite (tínhamos, entretanto, ganhado a hora de diferença), lembro-me bem, estávamos a entrar num confortável quarto do Palace Hotel do Vidago (quem não é daqui diz "de Vidago", quem é diz "do Vidago"). Minutos depois, desci ao bar, para "atestar" qualquer coisa. Recordo a sensação de estar um pouco "elétrico": tinham sido mais de 12 horas a conduzir. Se alguém, dias antes, me tivesse aventado a ideia de fazer uma viagem direta para Portugal, chamaria a isso uma insensatez. Mas foi assim, faz, daqui a uns dias, precisamente 12 anos.

Ontem, fui ao hotel "do Vidago" para um chá com torradas, depois de uma épica travessia da serra da Padrela, desde Valpaços a Loivos, com o termómetro colado nos zero graus. O carro é o mesmo da viagem de 2013. Com mais 250 mil quilómetros, claro. A escadaria central do hotel ainda está natalícia, como se vê.

O alfaite de Damasco


É muito curioso o esforço da nova liderança síria, ao cuidar mostrar-se ocidentalizada nos seus trajes, sem fardas nem "panejamentos", como subliminar fator de credibilização política. Como aquilo é feito um pouco "a martelo", o resultado acaba por resultar saloio, mas com alguma piada.

quarta-feira, janeiro 01, 2025

terça-feira, dezembro 31, 2024

Só para recordar

É em absoluto ridícula a ideia de que uma força de interposição na Ucrânia, para sustentar um eventual armistício, possa vir a ser composta por tropas originárias de países que deixaram claro de que lado estão face a esta guerra, nomeadamente pelo apoio já dado aos contendores.

Nos tempos em que trabalhei na OSCE, era motivo de risota na organização a ideia russa de transformar os militares que deixou na Transnístria em "peacekeepers", a atuar entre a Moldova e aquele sua região separatista pró-russa. É que já se pressentia qual iria ser a sua "neutralidade"...

Qualquer força militar que vier a ser colocada na Ucrânia, no caso do curso da paz vir a passar por aí, tem de surgir com base num mandato do Conselho de Segurança da ONU e terá de comportar-se de forma rigorosamente equânime face às partes em conflito.

Carter


Na morte de Jimmy Carter, à conversa com João Póvoa Marinheiro. 

Pode ver aqui.

segunda-feira, dezembro 30, 2024

Espairecer


Deve haver poucas localidades mais desinteressantes do que Verin. E, no entanto, na minha infância, ir a Verin era significado de "ir ao estrangeiro". Ia-se a Verin, a terra espanhola que ficava mais perto de Vila Real, logo depois de Chaves, nos dias da festa do Lázaro, em março. Os passaportes eram dispensados nessa altura e, ao atravessar a fronteira, até os pides e os polícias espanhóis de tricórnio tinham, por escassas horas, um ar menos ameaçador.

À época, o que se vendia nas lojas espanholas tinha pouco a ver com o que por cá havia. Muita coisa era diferente e tudo era aliciante, só por essa diferença. E ver o polvo cortado à tesoura, saído de uns caldeiros, à porta de umas tascas com ar estranho, era um verdadeiro cenário de filme para aquele miúdo de então. Adorava ir a Verin, confesso.

Com os anos, com as viagens a democratizarem-se, com outros mundos já nos olhos de toda a gente, Verin começou a perder a sua graça, que aliás sempre fora muito mítica. Mas, para os meus pais, por muitos anos, a deslocação ia valendo a pena. Lembro-me de o meu pai, já reformado, dizer: "Apetece-me espairecer! E se fôssemos hoje a Verin?" E, estando nós de passagem em Vila Real, sem outro programa na proximidade, lá íamos nós com eles, "numa saltada" a Verin.

Houve tempos em que algumas casas comerciais ainda por lá mantinham algumas coisas com (embora muito decrescente) interesse, desde logo no setor da alimentação onde, por muito tempo, a Espanha deu cartas (mas já não dá). Mas muito do que ali conhecíamos parou, entretanto, de vez. O Café Aurora segue há décadas entaipado. O supermercado "da gorda" (desculpem a crueldade, mas era assim que, em outros tempos, designávamos a avantajada dona de uma razoável mercearia onde tínhamos o vício de ir) foi substituído por um qualquer escritório. Tudo o resto se uniformizou até ao limite da pasmaceira que hoje por ali se vive.

Passada a minha fase adolescente do deslumbre pela "stationery" e pelos baralhos de cartas da "Heraclio Fournier", cedo percebi que, em Verin, nunca mais haveria livros nem música, só se conseguiam jornais nas estações de serviço (agora, por cá também...) e eu já quase não sei comprar mais nada. E como, de lá para cá, a democracia nos autorizou a Coca-Cola que o Botas de Santa Comba proibira, e como já não há pachorra para os "melocones" enlatados, nem para os rebuçados que nos evocavam a Espanha de outros tempos, Verin está hoje uma imensa seca. A imagem é de um dos seus mais "cosmopolitas" cruzamentos.

Fui hoje a Verin, para "espairecer", como diria o meu pai. Bebi uma cerveja e comi uns queijos assim-assim no Parador, atestei pouco patrioticamente o depósito e zarpei logo para Portugal, sem saudades nem nostalgias. A grande chatice destas experiências é que nos estragam, cada vez mais, o que nos resta de mitos do passado e nos desestimulam visitas no futuro. Já só voltarei a Verin quando me esquecer da última vez que lá fui. Que foi hoje.

domingo, dezembro 29, 2024

A brigada do Júlio de Matos ataca de novo

Pronto! Lá começaram os maluquinhos do costume a criar uma teoria da conspiração sobre a coincidência temporal nos acidentes aéreos de hoje. É a useira e vezeira malta do "ai, julgas que é por acaso que... ?".

Notícias do sebo

Uhf! Vou-me permitir utililizar uma frase histórica - quiçá pouco elegante, mas muito apropriada - cunhada pelo ciclista Alfredo Trindade, há pouco menos de um século, depois de uma vitória sobre o seu rival e amigo José Maria Nicolau: “Finalmente, limpámos o sebo à gajada do Benfica”.

Carter

Jimmy Carter, que morreu agora com 100 anos, foi um presidente polémico e contraditório. Teve belas atitudes no tocante aos Direitos Cívicos, à igualdade de género e ao ambiente, mas fugiu da tradição democrática nas políticas sociais e direitos laborais. Socialmente, Carter era muito conservador.

Carter hesitou na "détente", mas acabou por assinar o Salt II com a URSS. Confirmou a abertura à China, fez os acordos de Camp David, colocou os Direitos Humanos na agenda dos EUA, mas caiu na armadilha do Irão. Deu da América uma imagem de fraqueza, assim abrindo as portas a Reagan.

Jimmy Carter foi mais valorizado depois de sair da Casa Branca, pelo seu apego aos Direitos Humanos e à promoção da ordem democrática. Teve o prémio Nobel da Paz. No todo, provou ser um homem decente. Faria bem ao seu curriculum póstumo que Trump o não elogiasse.

Paz

Há dez dias, na RTP 3, numa conversa com Ana Santos Pinto, referi este assunto, que não tinha visto ninguém suscitar: no caso de um eventual compromisso provisório na Ucrânia, ainda que precário e para sustentação de um simples armistício, que Trump possa vir a forçar, será necessário montar uma operação de "peacekeeping". A única entidade que pode fazer isso é o Conselho de Segurança da ONU. Mas o Conselho não está bloqueado, por oposição mútua dos EUA e da Rússia? Claro que sim. Mas se um acordo, ainda que provisório se fizesse, isso aconteceria precisamente pela vontade conjunta dos EUA e da Rússia, logo, o problema no Conselho de Segurança poderia ser ultrapassado. Seria necessária uma "conjugação de astros" muito grande para que o "milagre" se concretizasse? Claro. Mas a diplomacia é isso mesmo. E, já agora, os países europeus, se têm verdadeiramente interesse no multilateralismo, deveriam vir a aplaudir a ideia. Se ela surgir, claro.

Há minutos, vi este diálogo no X, entre alguém e Gérard Araud, que foi embaixador francês na ONU e em Washington. Vale a pena lê-lo:



Tesourinhos deprimentes

Não há coincidências?


Tenho na ideia que as melhores fotografias que tirei em Vila Real (sou um assumido mau fotógrafo) foram sempre em dias muito frios. Por qualquer razão, também na minha memória, as datas em que fiz essas imagens coincidem sempre com a de grandes constipações que apanhei.

Periscópio

Comecei por estranhar a frase de um velho amigo que há pouco cruzei numa rua de Vila Real: "Cada vez mais me convenço de que o Covid deixa efeitos colaterais muito negativos". E perguntei: "Quais?" Fez um ar muito sério: "Olha! O Gouveia e Melo, por exemplo".

"Sorry" por ter de dizer isto

É escandaloso o tropismo saneador do PSD e do CDS quando chegam ao poder. Deve diminuir imenso o "desemprego" nas hostes que estavam na oposição... Só não me escandalizo mais porque o PS, embora de forma apenas um pouco menos sôfrega, costuma atuar de forma muito parecida. Sorry!

E o vento mudou...

Valeu a pena denunciar a coreografia sectária da operação policial no Martim Moniz. Luís Montenegro, depois deixar intuir precisamente o contrário, mas cheirando o vento que entretanto começou a soprar, já veio "às boas" e afasta agora a ligação entre criminalidade e imigração.

Geórgia

Na Geórgia, foi eleito e tomou posse um novo presidente. Temos de ser coerentes. Se há provas concludentes de que a eleição dos deputados que o escolheram foi fraudulenta, a legitimidade do novo eleito pode e deve ser contestada pelo mundo exterior, daí retirando eventuais consequências na sua aceitação internacional, bem como da representatividade do governo do país. Mas o facto de, alegadamente, o homem ser anti-UE, anti-ocidente e pró-russo é uma opção que só a eles respeita. 

Voar

Apesar da "perceção de insegurança" que alguns acidentes aéreos recentes possam ter induzido, vale a pena lembrar que a aviação continua a ser o meio de transporte mais seguro em termos relativos: as hipóteses de morrer num voo comercial são de uma em quinze milhões.

Uma desgraça nunca vem só

Chirac, com escassa elegância mas grande acerto, dizia que "les emmerdes, ça vole toujours en escadrille", para referir que quando as coisas quando correm mal surgem todas juntas. A Coreia do Sul atravessava numa profunda crise política. Há horas aconteceu-lhe uma tragédia aérea.

sábado, dezembro 28, 2024

"Então e o ... ?"

Agora, parece que anda na moda. Fala-se ou escreve-se sobre um determinado assunto e é certo e sabido que aparece logo um fabiano a dizer: "Ai é? E então o 'coiso'? ". E lembra algo, parecido ou não, tentando essencialmente relativizar a importância da anterior afirmação. Chama-se a isto, no jargão anglo-saxónico, "whataboutism" e quem utiliza este medíocre processo de discutir revela que não é capaz de abordar o assunto em si mesmo.

Trabalhistas

O novo governo trabalhista britânico está a ter um início turbulento, desagradando a cada vez mais setores. Depois do catastrófico consulado conservador, havia a ideia de que Keir Starmer, de uma esquerda suave, era uma alternativa para durar. Afinal, pode ser que não.

Quintela


Sabem onde é a Torre de Quintela? Não é longe de Vila Real e é perto de Bisalhães, onde se pode adquirir peças de barro preto, que a Unesco já consagrou no património mundisl. Passem por lá, que vale a pena.

França

A aventura Bayrou no governo francês não está a correr muito bem. Salvo talvez ele, ninguém esperava que corresse. Pode ser que o facto das expetativas serem tão baixas possa dar-lhe alguma hipótese de sobrevivência. Em meados de janeiro se verá se terá a mesma sorte de Barnier.

Uma "estrangeirinha"

Parece estar a armar-se uma "estrangeirinha" entre o ocidente nórdico-báltico e a Rússia, a montante da chegada de Trump à Casa Branca. Espero sinceramente que o único "adulto na sala" no ocidente, leia- se EUA, ajude toda a gente, Rússia incluída, a ter juízo.

Parvoíce

Um tipo qualquer mata uma senhora a tiro em Viseu e o país, apenas por causa desse incidente, acha logo que deixou de ser dos mais pacíficos e seguros do mundo? Está tudo parvo ou são só os parvos a reagirem assim?

Sem olhos em Gaza

O que se passou em Gaza, com os doentes e o pessoal de um hospital a terem de sair pelo seu pé, ao frio, é um ato de desrespeito pelos Direitos Humanos mais primários. O silêncio da União Europeia mostra que perdeu qualquer autoridade moral.

É só Saúde!

Há cinco urgências fechadas neste fim de semana. Se este governo tivesse um módico de vergonha na cara, assumia com humildade que tinha subestimado a dimensão dos problemas do SNS que o anterior governo não conseguira colmatar. Mas não tem. É apenas uma máquina de auto-propaganda.

sexta-feira, dezembro 27, 2024

É proibido ter saudades...


... mas não é proibido ter orgulho numa bela ideia. Tive-a em 2004, há precisamente 20 anos. 

Eu estava de saída da Áustria e quase de partida para o Brasil. Num fim de tarde, creio que de setembro, de visita a Lisboa, sentei-me com o Nuno Brederode Santos na Mesa Dois do Procópio e lembrei que talvez pudéssemos juntar os "utentes" da tertúlia que há anos se reunia nessa mesa, somados a alguns erráticos visitantes que por ali às vezes aportavam, e organizar uma bela jantarada, lá para dezembro, antes do Natal. 

O Nuno achou a ideia ótima, passando-me logo a bola da logística: "Tu tratas de fazer as convocatórias e do local, claro!", assegurou-se. Como eu era o tido como o "maníaco" dos restaurantes e vivia agarrado ao email, esse lado estava garantido. 

E passámos à lista dos convocados. Comecei a alinhar os nomes mais óbvios, o Nuno foi-se lembrando de uma imensidão de gente que ele, com tribuna diária assegurada na "Dois", conhecia de ginjeira. 

A lista foi crescendo nas semanas seguintes. Ela só era consensual entre mim o Nuno. Ele era o patrono da Mesa e o "vetting" essencial a ele pertencia. Por mim, propus a eliminação de três figuras que, passando episodicamente pela Mesa Dois, o faziam em geral já com um nível de toxicidade etílica que se tornava desagradável para os restantes convivas. Um deles era mesmo tido como uma figura "histórica" do Procópio. Na Mesa Dois bebia-se, não se ficava bêbado. O Nuno concordou comigo. 

Posso agora revelar que, quando alguns outros nomes começaram a transpirar, foram levantadas, por certas pessoas do "núcleo duro" da Mesa, fortes objeções: ou eram "fachos", ou eram não eram republicanos, ou eram "bestialmente esquerdalhos", ou "berravam alto", ou eram "calados como ratos", ou eram "chatos". Na realidade, eram, muito simplesmente, pessoas com quem alguém "não ia à bola", por questiúnculas passadas. Eu e o Nuno tínhamos combinado que ninguém, além de nós, organizadores-mor do jantar, tinha direito de veto. Quem se sentisse mal com a presença de alguém, então nessa noite que ficasse a jantar sozinho em casa. Ninguém faltou. E cedo começaram mesmo a chegar-me as cunhas de alguns que não se sentiram lembrados.

A Alice Pinto Coelho, dona do Procópio, metida ao barulho da ideia desde o início, e que a acolheu com entusiasmo, decidiu fazer uma surpresa simpática aos presentes no repasto: a cada um, como prova maior de confiança e fidelidade, ela ofereceria uma chave de acesso ao bar. E assim veio a acontecer, apenas com o pormenor, quiçá despiciendo, de que nenhuma das chaves abria a porta...

Lembrei-me de organizar o evento no restaurante A Marítima de Xabregas. Reunia as condições cumulativas que, à época, eram consideradas essenciais: comportar as cerca de 80 pessoas estimadas, ser local com uma comida simpática, não ser caro, ter lugar para estacionar e, condição "sine qua non" para uma imensidão de gente, ali ser permitido fumar.

Com o António Dias, e comigo ainda em Viena a fechar o posto e as malas, nuns blogues que então alimentávamos, começamos a lançar a ideia, que dois jornais semanários vieram mesmo a tomar por séria, de que o jantar se destinava a aprovar um manifesto chamado "Documento de Xabregas". Fomos publicando extratos inventados desse manifesto de "regeneração política" que tinha como finalidade servir de contraponto a um texto que, meses antes, surgira entre a fina-flor do liberalismo económico lisboeta, o "Compromisso Portugal", lançado no convento do Beato. Ora Xabregas era logo ali ao lado... Xabregas ia responder ao Beato! Nasceu mesmo o blogue "Espírito de Xabregas", escrito vá-se lá saber por que mãos, que durou uns anos e muito nos divertiu.

Lembro que, por essa altura, se viviam os deliciosos dias do estertor do governo santanista, o tempo das trapalhadas diárias e especialmente noturnas, do sai-e-entra para São Bento, quer fosse para o divertido governo, quer fosse apenas para a residência do animado primeiro-ministro, felizmente então já quase "sortant". 

Mas uma "sombra" estava ainda para surgir. A data que eu e o Nuno tínhamos escolhido para o repasto coincidia precisamente com uma imensa jantarada que ia ser feita pelo Partido Socialista, na velha FIL, em torno de José Sócrates, que por essa altura estava já a aquecer os motores para chegar a São Bento. Recordo-me de que o José Vera Jardim telefonou a alertar para a funesta coincidência de datas e para o que pudesse ser daí interpretado politicamente. Respondi-lhe que a esmagadora relevância daquilo que ia sair do "Documento de Xabregas" se sobrepunha à espuma dos dias que a jantarada "chucha" representava. O Sócrates que se amanhasse! O Zé riu-se.

E lá fomos todos, muitos, jantar a Xabregas, num dia que era de dezembro de 2004, mas cuja data exata não tenho presente. O momento foi tão divertido que acabaria por ser o primeiro dos de dez jantares quase anuais da Mesa Dois que acabaram por ter lugar. Em nove dos 12 anos seguintes, organizei idênticos encontros em vários locais que fui escolhendo: do Vírgula (duas vezes) à Ordem dos Engenheiros, do Jardim do Tabaco ("et pour cause") à Tasca do Papagaio, passando pelo Manel do Parque Mayer (duas vezes) e pelo Rota das Sedas. 

O último foi em 2016 e, simbolicamente, decidi regressar à origem, à Marítima de Xabregas. Foi também o derradeiro em que o Nuno esteve presente, já com a saúde muito debilitada. Da cama do hospital em que estava então internado, o António Dias enviou-nos um divertido poema, que foi lido na sala pela Maria do Céu Guerra. Com a saída de cena do Nuno e com o fim da Mesa Dois do Procópio que ele encarnava e de que era a alma, já não se justificam mais jantares. Agora muito menos, sem termos a querida Alice connosco.

Porquê a foto que ilustra o texto?, perguntará o leitor. Nela figuram dois convivas improváveis, que retratei num dos jantares. Ambos também já desapareceram. Um é o Caetano da Cunha Reis, fundador da Juventude Centrista, homem orgulhosamente de direita. Outro é o Carlos Antunes, criador das Brigadas Revolucionárias e do PRP, para quem a esquerda era tudo. Ambos eram meus amigos e do Nuno Brederode Santos. Esta fotografia ilustra precisamente o que era o espírito da Mesa Dois do Procópio.

PSF bem

A partilha pela esquerda francesa da obsessão presidencial de Jean-Luc Mélenchon começava a ser um tapete vermelho para Marine Le Pen entrar...