« Um espetro ameaça a Europa » : a possível vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Karl Marx usou a expressão para qualificar o medo que o comunismo estava provocar no mundo burguês. Agora, responsáveis e analistas de setores europeus com diferente lateralização ideológica convergem no seu pânico perante a possibilidade de Trump vir a ocupar a Casa Branca. Haverá razões para tal ? Tentemos simplificar a resposta.
Em matéria de política interna, graças ao sistema de « checks and balances » que a constituição americana impõe, através da força da Câmara de Representantes e do Senado, o ocupante da Casa Branca pode ficar de mãos atadas, com grande facilidade, quando pretender executar a sua agenda política. Clinton e Obama sentiram-no na pele. Um eventual presidente Trump deverá, ainda com maior probabilidade, vir a enfrentar o mesmo problema, atento o radicalismo de algumas das suas propostas.
Porém, quem ocupa a presidência americana tem um imenso poder sobre o mundo. Goste-se ou não, os EUA determinam grande parte dos equilíbrios globais. Essa relevância reforça-se nos momentos de maior tensão, como é aquele que atravessamos. Ora o presidente americano, como « chief-in-commander » das Forças Armadas e indisputado gestor da política externa do país, tem escassas peias internas na liberdade da sua ação internacional. Por essa razão, não é indiferente, para todos os não-americanos, quem vier a ser escolhido para o lugar. E, desde logo, para os europeus.
Por muitos anos, o sistema americano produziu figuras que chegaram a Washington com o beneplácito das elites nacionais, republicanas ou democratas. Hillary Clinton, se vier a ser eleita, é uma expressão clara dessa elite. Trump não o será.
Muito de nós, ao longo dos anos, falávamos da « América profunda », desse mundo voltado para si mesmo, que caricaturávamos como ignorante, preconceituoso e cultor de um nacionalismo saloio. Vimos nascer Sarah Palin e o « Tea Party”, mas vivíamos confortados na ideia de que “essa América” nunca condicionaria, de modo decisivo, a atitude do país. No fundo, todos confiávamos que, fosse quem fosse que a América viesse a escolher, seria sempre alguém que emergeria da elite que sempre dominou Washington.
Enganámo-nos. Um dia, isto é, agora, essa América fora do “mainstream”, no seio da área conservadora, produziu um candidato a que a tal elite foi incapaz de opor uma alternativa. Alguém com um discurso errático, um “gaffeur”, com uma agenda internacional que vai do “muro” mexicano à sedução por Putin, passando pela ameaça da saída da NATO e outras bizarrias. Uma certa América cansou-se dos partidos do “mainstream” e está a impulsionar figuras fora da matriz tradicional. Não foi Sanders do lado democrata, é Trump nos republicanos.
Por isso, temos de ser realistas: os pesadelos, às vezes, também se concretizam.
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")