E por que luas a Comissão Europeia (!) lançou a ideia de que o barco terá sido objecto de um assalto em plenas águas territoriais portuguesas? Será do calor?
terça-feira, agosto 18, 2009
Arctic Sea
E por que luas a Comissão Europeia (!) lançou a ideia de que o barco terá sido objecto de um assalto em plenas águas territoriais portuguesas? Será do calor?
Namora
"Un livre que je ne pensais pas trouver, car il n’a pas été réédité depuis 1955. Et quel bonheur de le trouver à la bibliothèque, bien relié, attendant ma visite. Avec son odeur de vieux livre qui ne se décrit pas. Son papier qui a jauni. Ses pages qu’on a trop peu tournées.
Dommage. Oui, dommage que ce livre ait été si peu lu. Car il y a dans ce récit, ou plutôt cette suite de récits, un ton, des images, des scènes, une époque. Un Portugal qui n’est pas encore révolu, dont les villages reculés hébergent encore des guérisseurs de tout genre, où la population gitane n’a jamais cessé de croître, où l’étranger - comme ce médecin venu du nord - n’est pas accepté d’emblée mais après avoir fait ses preuves, dix fois plutôt qu’une. Un Portugal de petites gens, de superstitions, de simplicité. Le Portugal des villages éparpillés dans la montagne, isolés. Un Portugal que l’auteur aime intensément, avec un respect profond pour les travailleurs de la terre.
Le Carnet d’un médecin de campagne est à découvrir, dans cette édition qui a certes vieilli mais qui n’en est pas moins intéressante, en attendant que quelqu’un pense à faire une nouvelle traduction de ce bijou afin de donner à celui-ci le rayonnement auquel il aurait droit, celui d’un « classique » de la littérature portugaise."
segunda-feira, agosto 17, 2009
Mini-Bar
Porém, quem lidara com ele, durante esses mesmos dias, não ficara com a menor impressão de se tratar de alguém afectado na sua sobriedade. O nosso hóspede era quadro superior de um país estrangeiro, de um Estado pobre e com grandes dificuldades. No passado, já tinha ocorrido o Ministério ter de suportar algumas despesas exageradas, feitas por alguns convidados de perfil idêntico, um pouco deslumbrados pela circunstância de todo o consumo que fizessem no hotel ser por nossa conta. Mas isso, à partida, continuava a não explicar a elevada despesa do mini-bar.
Foi tomada a decisão de pedir uma factura detalhada dos consumos feitos pelo cliente, durante todo o tempo da sua estada. A resposta veio e, com ela, a desarmante explicação: a rubrica "mini-bar", inserida na conta do hotel, nada tinha afinal a ver com o consumo de bebidas. Tinha a ver com o facto do nosso homem, no embalar final das suas bagagens, antes de sair do hotel, ter decidido levar consigo, seguramente bem embrulhado, o próprio pequeno móvel do mini-bar...
100 metros
Um recorde histórico na cidade em que Jesse Owens irritou Hitler e no ano em que Obama é presidente dos Estados Unidos. Um excelente momento para o mundo!
Voltas
sábado, agosto 15, 2009
Douro
Nasci, fui educado e vivi durante algum tempo bem perto do Douro, a menos de três dezenas de quilómetros, por estrada. Para quem viajava bastante de comboio, como era o meu caso, a paisagem duriense fazia parte integrante e habitual do nosso cenário de trajecto, quer no tortuoso e bizarro percurso entre Vila Real e a Régua, quer entre esta vila (que o era, à época) e o Porto - que era então a mais próxima imagem de metrópole para os nortenhos.
Nas minhas memórias de infância e adolescência está aquela mancha de água que viajava quase sempre ao lado da linha férrea, às vezes aproximando-se dela de forma quase perigosa. Nelas estão também as regulares enchentes, uma espécie de destino a que as ruas mais baixas da Régua não escapavam. Mas, no nosso imaginário, o Douro não era mais do que isso.
Mas a que propósito vem isto? Vem a propósito do facto de eu, como muito boa gente do Norte do país, só ter acordado muito tarde para a fantástica beleza da região do Douro, para a paisagem magnífica e diversa que ela hoje oferece a qualquer viajante - de carro, de barco ou de comboio. Porque fazia parte do nosso cenário de rotina, não a tínhamos valorizado e, de certo modo, foi preciso que outros a olhassem de fora para que nós também a "víssemos".
O Douro, para além dos vinhos, mas agora muito por causa deles, é um património sem preço que importa a Portugal promover, sem o deixar descaracterizar.
Em Paris, numa data a anunciar, mas ainda dentro deste segundo semestre, em estreita cooperação com as autoridades durienses, vamos levar a cabo, nas intalações da Embaixada de Portugal, uma acção de promoção daquela região. Aí falaremos do vinho, claro, mas também das paisagens, da hotelaria, da gastronomia, da cultura e de um conjunto de outras vertentes que tornam aquela região, nos dias que correm, numa das grandes "surpresas" da oferta turística portuguesa.
sexta-feira, agosto 14, 2009
Cem Amigos
Les Paul (1915-2009)
Aqui fica a uma sua memória. Se puderem, ouçam os seus discos.
República
A Embaixada de Portugal em Paris tem em preparação, para o ano de 2010, algumas iniciativas destinadas a comemorar o Centenário da nossa República - a segunda, depois da francesa, a ser instaurada num país europeu.
quinta-feira, agosto 13, 2009
Telefonista
Aquela telefonista era muito rigorosa e precisa: tudo o que não fosse relacionado com o serviço da Embaixada era imediatamente reencaminhado.
A chamada que recebeu nessa manhã teve a resposta devida. O interlocutor perguntou quem, na Embaixada, o poderia informar sobre as datas de nascimento e morte do rei dom João I.
A funcionária não hesitou: "Nascimentos e falecimentos não é connosco. Isso são coisas consulares. Vou dar-lhe o telefone do Consulado-Geral". E deu...
Crescimento
Dado que o percentual de crescimento foi precisamente o mesmo em França e em Portugal, confesso que estou muito curioso em saber como serão as reacções no nosso país.
Ibéria?
O iberismo acabou por fundar-se, historicamente, no sentimento de finis patriae que nos adveio do declínio posterior à perda do Brasil, marcado pela dificuldade em gerirmos o nosso papel intraeuropeu, no ácido confronto cruzado de ambições coloniais, que nem o carácter de algumas alianças vetustas conseguiu disfarçar. Desde então, esse tropismo, derrotista e derrotado, tende a renascer sempre que surgem conjunturas que alguns identificam com a crise, não necessariamente do país, mas da ideia atormentada que dele alimentam. Tudo isto vale o que vale, mas devo confessar que começa a tornar-se irritante a sua reiterada emergência, com alguns inocentes úteis a dar-lhe foros de dignidade, por vezes mesmo com tentativas de teorização pseudo-intelectual.
Faço parte de uma geração educada "contra a Espanha", na magnificação do papel das batalhas que nos garantiram a independência, das figuras hagiografadas de recorte heróico quase caricatural, tudo se saldando na gestação de uma desconfiança atávica face aos "ventos" que sopravam de Madrid. Os livros de um Matoso anterior e de alguns outros "genéricos" da historiografia portuguesa defendiam essa espécie de doutrina patriótica incontornável, a que a própria diplomacia portuguesa não escapou. Esse culto quase paranóico da História, hiperbolizado ao ridículo pelo Estado Novo, gerou uma espécie de "inimigo nacional" obrigatório. Ainda hoje, alguns iluminados tendem por aí a esquecer uma meridiana realidade: quase nove séculos decantaram uma identidade portuguesa bem clara que, em todas as dimensões, se distingue hoje das "Espanhas" - de todas elas. E essa distinção já nada tem a ver com antagonismo.
A comum entrada de Portugal e Espanha nas instituições europeias fez com que se atenuasse, de um modo natural e num movimento de elementar racionalidade, essa doentia obsessão anti-espanhola, tornando natural o relacionamento dos dois Estados que coexistem na península. O modo como os temas de contencioso bilateral passaram a ser tratados, de que são exemplo os casos das pescas ou da gestão dos rios comuns, provou o carácter altamente benéfico da mútua convivência dentro do quadro formal europeu. Além disso, devo confessar que, para mim, foi uma verdadeira lição ver as novas gerações portuguesas começarem a entusiasmar-se com a "movida" madrilena ou desejosas de aproveitar a riqueza de vida das Ramblas de Barcelona.
A Espanha contemporânea, na sua diversidade e complexidade, é hoje uma realidade pujante, onde um sentimento colectivo de salutar orgulho fixou uma matriz que conseguiu federar autonomias e nacionalismos muito diferentes. É um país magnífico, com uma cultura interessantíssima, um povo optimista e que, em algumas décadas, deu ao mundo a lição de como foi possível desenvolver uma sólida democracia, uma sociedade de bem-estar e de franca modernidade, que conseguiu firmar-se sobre as memórias trágicas da Guerra Civil, as pulsões nacionalistas e as ameaças da barbárie terrorista.
A serena relação com a Espanha constituiu hoje um dos pilares importantes da nossa política externa. Com Madrid, encontramos, dia-após-dia, áreas para uma acrescida cooperação internacional em imensos domínios, definindo cada vez mais linhas comuns de trabalho em instâncias multilaterais. Como disse, há dias, o rei Juan Carlos, Portugal e Espanha são “duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas”.
quarta-feira, agosto 12, 2009
Memória de Agostos (III) - 1974
Tinha assumido essas funções na qualidade de assessor do general Galvão de Melo para as questões do desmantelamento da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa. Galvão de Melo, da Força Aérea, era um dos sete membros da Junta de Salvação Nacional, que então dirigia o país, e, seguramente, a figura mais à direita dentro daquele órgão. Por uma singular ironia, competia-lhe a tutela da Comissão de Extinção da polícia política do anterior regime, tarefa que o não entusiasmava por aí além. E, por outra singular ironia e fruto de diversas circunstâncias, coube-me em rifa ser seu assessor.
Os pides consideravam então estar a ser vítimas de uma imensa “injustiça”, seriam totalmente infundadas as inúmeras acusações de torturas e atentados aos Direitos Humanos que sobre eles impendiam, a esmagadora maioria jurava nunca ter feito outra coisa que não fosse estar nas fronteiras a pôr carimbos nos passaportes. Uns anjos, em suma. Poder-se-á dizer que a sua posterior não indiciação quase colectiva pela Justiça provou que tinham razão?
Descontentes com o prolongamento da sua detenção e respectivas condições, mobilizados por um pretexto conjuntural, os pides tomam alguns guardas da Penitenciária como reféns, abrem o “gradão”, a porta de ferro que lhes permite invadir a parte central da prisão, e anunciam que estão “à disposição” do general Galvão de Melo, que acabara de fazer uma polémica e ultraconservadora proclamação televisiva, que lhes terá ressuscitado a esperança de uma libertação rápida.
No auge desta nova crise, o chefe da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, comandante Conceição e Silva, foi de helicóptero ao Algarve, com o seu adjunto Alfredo Caldeira, para tentar obter orientações de Galvão de Melo. Na conversa, o general, enfadado por ver interrompido o concurso hípico da Penina, terá deixado os seus interlocutores de mãos a abanar. Estávamos assim, num domingo à tarde, reunidos no gabinete do director da Penitenciária, a discutir o que fazer a seguir.
Esgotadas algumas hipóteses de solução, o José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete de Galvão de Melo, decide tomar o assunto em mãos: “Eu vou lá dentro falar com os pides. Quem é que quer vir comigo?”. A idade tem destas coisas e a precipitação é uma delas. Por isso, disse de imediato: “Eu vou contigo”. Arrependi-me no segundo seguinte, mas já era tarde: cinco minutos depois estava a seguir a figura alta e corajosa do então major (hoje general) Costa Neves e a entrar no meio de uma chusma de pides, que sabíamos que tinham armas retiradas aos guardas e desconhecíamos se tinham a intenção de também ficar connosco como reféns.
Enquanto o mar de pides se abria como as águas do mar Vermelho, para ambos podermos chegar ao centro da prisão, comigo numa taquicardia de tardio bom senso, recebo um leve toque num ombro e volto-me, sobressaltado. Dou de caras com o “Navalhas”, um colega de escola primária em Vila Real, que eu não via há muito e desconhecia ter escolhido tão distinta opção profissional.
“'Tás porreiro? Então por aqui?”, saiu-me, num registo social, como se o estivesse a encontrar no Rossio, à porta da Suíça. Apertei-lhe a mão, quase caloroso, para me dares ares de confiança bem à vista do grupo, que tinha já cem olhos sobre mim, com o “Navalhas” a retorquir-me: “É verdade! Quem também cá está é o “Bilrau”, mas não aderiu”. O “Bilrau” era também um antigo colega de liceu que, do mesmo modo, eu desconhecia ter enveredado pela prestigiante carreira de pide. E o meu convívio social-pidesco estendeu-se então, com a maior naturalidade, ao ausente “Bilrau”: “Ó 'Navalhas', dá um abraço meu ao 'Bilrau'… e tive imenso prazer em ver-te, pá!”.
Esta rápida sequência de vénias de cordialidade passou-se, aparentemente, sem que o Costa Neves nada notasse, entretido que estava já a lidar com os cabecilhas do motim e a transmitir ao selecto auditório as presumidas orientações de Galvão de Melo. Dez minutos depois, para meu imenso alívio, estávamos cá fora, sãos e salvos. Os pides acabaram por não se render na sequência da nossa esforçada diligência e só foram “convencidos”, horas mais tarde, pela chegada de um pelotão de “fuzos”, os Fuzileiros Navais que o Conceição e Silva mandou vir do Alfeite.
Desde esse inesquecível mês de Agosto de 1974, nunca mais vi o “Navalhas” ou o “Bilrau”. Coitados, com o acordo de Schengen, até ficaram sem fronteiras para praticarem a sua nobre profissão. Eles que só punham carimbos em passaportes...
Política Agrícola Comum
O que não deixa de ser interessante é ver os comunistas franceses sublinharem o argumentário das associações de agricultores, que vêm agora lembrar outras ajudas que a Europa concedeu, aquando da entrada de Portugal e da Espanha nas então Comunidades Europeias. O "internacionalismo" já não é o que era...
Alguns agricultores franceses parece esquecerem três realidades.
A primeira é que as ajudas recebidas pelos novos aderentes foram a contrapartida natural da abertura desses países aos produtos e agentes económicos europeus - e também franceses -, muitos dos quais repatriaram tais ajudas em lucros e obtenção de quotas de mercado, nos produtos agrícolas, industriais e nos sectores de serviços.
A segunda é a de que um país como Portugal, pela estrutura da sua matriz agrícola e pelo modo como ela foi projectada na negociação da adesão, tem vindo a ser um "contribuinte líquido" da Política Agrícola Comum (PAC), isto é, paga percentualmente mais para o orçamento comunitário do que recebe através das respectivas ajudas no sector.
Finalmente, esses agricultores parece não se lembrarem que a França foi sempre, bem de longe, o maior beneficiário europeu da PAC, política desenhada ao sabor dos seus interesses, muito antes de Portugal ser sequer candidato à integração. E que essas vantagens vão manter-se até 2013, naquilo que foi o curioso acordo em Conselho Europeu que, em 2002, "congelou" mais de 40% do orçamento comunitário até essa data, bem antes de ter sido fixado o orçamento plurianual (2007/2013) da UE.
A posição do Governo francês nesta questão concreta tem sido de um impecável respeito pelas regras comunitárias. E é importante que, de futuro, tudo possa continuar a ser assim, para o que um país como Portugal necessita, mais do que nunca, de uma Comissão Europeia forte, independente e sem medo dos Estados membros. Quem não perceber isto não percebe a Europa.
terça-feira, agosto 11, 2009
Enfim, juntos
segunda-feira, agosto 10, 2009
Memória de Agostos (II) - 1969
Nos meios em que, à época, me movimentava, as esperanças na “abertura” marcelista eram nulas. A confirmá-lo, se necessário fosse, estava a “não homologação” ministerial dos resultados da eleição para a direcção associativa universitária, de que eu próprio fazia parte, e que deu mesmo origem a uma divertida reunião com o ministro José Hermano Saraiva (que um dia contarei). Dentre outras movimentações, nesse importante ano político, há ainda que destacar a grave crise académica em Coimbra. O país andava bem agitado.
E iria ficar mais. Em Outubro de 1969, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. Em Lisboa, tinha já andado envolvido em algumas movimentações preliminares, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas da Oposição se separaram. À esquerda, ficava a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e a franjas mais radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade.
Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, sou contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista) para integrar a estrutura local da CDE. Foi um período intenso de reuniões e mais reuniões, redacção de artigos e manifestos, agitação dos meios da juventude, alguma tensão ideológica intergeracional. Mas, algum tempo mais tarde, lá estou eu, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.
Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque amplamente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, eram atenuadas pela necessidade de arrebanharmos todas as vozes contestatárias. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o entusiasmo quase “anarca” do João "Bouquet", a grande alma da logística da CDE de Vila Real. E algumas outras figuras (não éramos muitos…) que não cabe aqui elencar.
Esse mês de Agosto de 1969 e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas, discussões épicas na Gomes (o principal café da cidade), chamadas à polícia, censura de artigos na imprensa, dificuldades nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, colagem de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas por parte de turiferários do regime, a necessidade de fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral preparava então os seus próprios boletins, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar pessoalmente a cada eleitor, porta-a-porta, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.
Foi um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer.
domingo, agosto 09, 2009
Paris Plage
Caçadores Cinco
Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".
A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.
Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".
Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.
E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".
A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...
sábado, agosto 08, 2009
Raul
Solnado foi uma das grandes figuras do humor português, que marcou gerações. Hoje, pelos jornais, rádios e televisões, muitos lembrarão as suas divertidas histórias em disco, as revistas do Parque, o Zip-Zip, a Cornélia, o Villaret e outras tantas aventuras de uma vida rica que a Leonor tão bem descreveu na sua biografia. Pode dizer-se que, com a sua palavra, o Raul acabou por se transformar, por assim dizer, num amigo íntimo de muitos portugueses, ao longo dos muitos anos que lhes entrou em casa. Para os mais novos, há também um Solnado televisivo e o seu magnífico retrato do polícia Covas em "A Balada da Praia dos Cães". E há, ainda, o Solnado da Casa do Artista, uma obra grande a que tanto se dedicou. E gostava de notar que, no Brasil, por onde andei uns tempos, encontrei sempre um imenso respeito em torno do nome de Raul Solnado - um dos poucos nomes da cultura contemporânea portuguesa que lá dispõe de grande popularidade.
Uma nota mais pessoal. Há muitos anos que o Raul era um dos nossos comparsas da "mesa dois" do Procópio, esse bar lisboeta onde actualizamos o país, numa tertúlia assumidamente irresponsável, marcada pela ironia e pela amizade. Tive a honra de ser, com ele e outros, co-autor da "biografia" editada do Procópio, onde procurámos desenhar as décadas de boa disposição que o "Retiro da Dona Alice" nos proporciona e a que o Raul tanto ajudou. Tivemos o Raul como integrante dos jantares que, em cada Dezembro, juntaram o pessoal da "dois" e que, este ano, se irá fazer sem ele. Na "dois", onde fica para sempre o seu retrato, desenhado pelo Chico Caruso, vamos agora perder, pelas noites, as suas belas historietas. E, mais do que isso, a sua amizade e ternura. Sem o Raul, as coisas passam a ter muito menos graça.
sexta-feira, agosto 07, 2009
O chapéu
O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos factores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.
Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete" , num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.
A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que no início dos anos 60.
Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala" na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não do chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?".
Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos. O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, experiente, adianta: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, isso lhe dará uma grande elegância".
Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recorda-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", vai mesmo comprar um.
Nesse instante, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora: você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E, em Londres, onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita? Você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu".
O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o rápido convencimento e uma subliminar intimidação, e concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.
De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu encomendado, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. Já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."
Guantánamo
No comunicado há momentos emitido, Portugal anuncia que vai conceder a estes dois ex-detidos um visto especial, no quadro da sua legislação nacional. E adianta que o encerramento de Guantánamo, onde a anterior administração americana encerrou os "combatentes inimigos" a quem se recusava conceder os direitos previstos nas Convenções de Genebra, é "uma vitória para todos os que defendem e promovem o respeito pelos Direitos Humanos no quadro da luta contra o terrorismo".
Gostava de recordar que o Governo português foi o primeiro, no seio da comunidade internacional, a anunciar a sua disponibilidade de ajudar os Estados Unidos da América a pôr fim à base de detenção de Guantánamo.
Com este gesto, Portugal demonstrou saber assumir plenamente as suas responsabilidades políticas no quadro internacional e, em especial, os interesses da comunidade política e de valores que regem a relação transatlântica.
quinta-feira, agosto 06, 2009
Benfica
Só que o caso do Benfica tem, apesar de tudo, uma característica diferente. Durante muitas décadas, a equipa da Luz orgulhava-se de nunca ter recrutado jogadores estrangeiros e terá sido, em Portugal, a última a abandonar essa prática. É claro que eram outros os tempos, tempos em que o pé-de-obra colonial trazia por aí Eusébios, Colunas ou mesmo Costa Pereiras, quase a preços de saldo. A "exploração colonial" tinha estas dimensões mais benévolas.
Neste contexto, seria agora interessante reflectir sobre o que significa este fenómeno da adesão a um emblema, seja quem for que o esteja a representar. Trata-se de um curioso mas complexo processo de construção de afectividade, que deriva de uma total irracionalidade, embora favorecida por factores de natureza conjuntural (região, família, grupos). Aliás, a prova mais irrefragável dessa mesma irracionalidade, assumida frequentemente com ares de seriedade, é detectável na substância do "argumentário"- esse sim, caricatural e supostamente racional - com que o facciosismo pretende explicar as motivações profundas de uma qualquer opção clubística.
Este é um tema fascinante, com a única garantia de ser, como sabemos, o início de uma discussão sem fim.
quarta-feira, agosto 05, 2009
Música
Naquele ambiente por regra agitado, onde intimamente vivemos na permanente angústia de poderem ter mudado a hora e a porta de embarque, em que somos tentados a queimar tempo e dinheiro com uma nova revista internacional que (não) vamos ler ou com a compra de um perfume que (não) nos faz falta, que bom que foi perder (ou ganhar, depende da perspectiva) um quarto de hora para ouvir dois intérpretes de música portuguesa.
Curiosamente, tive muitos poucos companheiros nesta sessão, com a maioria dos passageiros a olharem à distância, como que desconfiados e temerosos de que, no final, lhes viessem estender um boné para recolha de moedas.
Da próxima vez que um atraso me apanhar no Porto, lá estarei à espera que me dêem música. Desta vez foi uma guitarra e uma viola, há meses ouvi por lá jazz e há ainda no local um piano que abre interessantes pespectivas. Humanizar lugares por natureza desumanos é uma nobre iniciativa.
Portugueses
Este tipo de ocorrências tornou-se quase como uma sina anual dos nossos emigrantes, no seu regresso sazonal ao país. Ao longo de décadas, um imenso número de portugueses deixou o seu sonho de vida, e o dos seus familiares, pelas estradas de França, Espanha e Portugal, por razões diversas, e às vezes cumulativas, que vão desde a velocidade, a imperícia, o cansaço e outros estados físicos impróprios para a condução, bem como deficiências nas viaturas.
Campanhas de advertência têm sido levadas a cabo por entidades francesas ou da comunidade portuguesa - como foi o caso da "Cap Magellan" -, mas os seus efeitos são sempre limitados. É que alguns pensam que estas coisas acontecem apenas aos outros.
À noite, no meu regresso de Limoges, desembarquei na Gare de Austerlitz. E não pude deixar de lembrar-me que estava a chegar a Paris pela mesma estação ferroviária onde, há algumas décadas, muito provavelmente, haviam desaguado, pela primeira vez, alguns daqueles que agora desapareceram. Ironias deste destino português em França.
terça-feira, agosto 04, 2009
Memória de Agostos (I) - 1967
segunda-feira, agosto 03, 2009
Fome
Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças local não havia meio de aparecer. Comecei a detectar alguma inquietação no seio da delegação portuguesa, tanto mais que o jovem político era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.
A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de ter dito ao embaixador que seria importante passarmos à mesa. “Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquiu-me, embaraçado. Eu compreendia que era uma pena perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. “Vou telefonar ao ministro!”, disse. Ora aí estava uma excedente ideia. E lá desapareceu para uma sala anexa.
Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. O jovem político, pouco dado a absorver contrariedades, mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente. E o jantar acabou por correr bem.
No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. E o nosso embaixador, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.
No contacto, perguntou ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite. A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um político português e que estava muito grato por ter sido convidado. Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...
domingo, agosto 02, 2009
Camarões
Não peçam para descrever a cara do camaronês...
sábado, agosto 01, 2009
Ásia
A imagem que um país e os seus cidadãos provoca nos outros é um importante factor constitutivo da sua identidade internacional. Por isso, quando positiva, torna-se num valor imaterial sem preço, porque, na maioria dos casos, não resulta de uma criação artificial, mas de uma longa decantação da História. E, por essa razão, é um fenómeno mais genuíno e mais duradouro.
Falo hoje desta questão porque, numa conversa, há dias, alguém me referia o facto de, aparentemente, não ter havido celebrações condignas dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Sri Lanka. E de se aproximar, a passos largos, idêntica data relativa à Tailândia. E, ainda ontem, um amigo me falava, com entusiasmo, do que encontrou de referências portuguesas, numa sua ida recente ao Japão.
Portugal é um país cuja riqueza histórica é incomensuravelmente superior à sua capacidade de a projectar no mundo contemporâneo. Não temos meios financeiros para provocar a produção de filmes, publicações, cátedras, visitas e outras medidas de "promoção", à altura da qualidade daquilo que ficou inscrito no nosso passado. Veja-se o que fazem os espanhóis com Cristóvão Colombo, para termos um termo de comparação.
No tempo da ditadura, a História portuguesa foi utilizada como instrumento de adubamento da ideologia do regime. A hagiografia em torno de certas figuras, por vezes com um exagero que roçou o ridículo, bem como a hiperbolização megalómana dos feitos gloriosos do nosso passado foi feita, durante algumas décadas, de uma forma tão caricatural e simplista que, não raramente, acabou por afastar as pessoas do apreço que lhe era realmente devido. O papel da História portuguesa no imaginário nacional sofreu imenso com esse descarado oportunismo político e, a meu ver, isso ainda se faz sentir em muitos sectores da sociedade portuguesa.
Voltando ao que interessa: a Ásia actual, a meu ver, continua a ser um terreno magnífico para assentar uma redescoberta serena dos tempo em que os portugueses por lá andaram.
sexta-feira, julho 31, 2009
Luas
Estávamos em 1957 e a União Soviética anunciara a colocação em órbita do seu primeiro satélite, o Sputnik. Este primeiro passo na aventura espacial, hoje considerado decisivo para tudo o que se lhe seguiu, não foi muito bem visto por alguns sectores oficiais portugueses, quiçá tementes que, com esse êxito, as doutrinas políticas que emanavam de Moscovo pudessem ter o seu caminho facilitado no nosso país.
Ora uma voz da “ciência” portuguesa, o astrofísico professor Varela Cid, concluíra uma teoria sobre o tema que agradava ao regime. E recordo que aí tivemos, com direito a quadro negro e explicações a giz, a demonstração pelo nosso “sábio” luso, na nascente RTP, da "impossibilidade" prática de um satélite poder ser posto em órbita.
quinta-feira, julho 30, 2009
Assinatura
quarta-feira, julho 29, 2009
Estátuas
segunda-feira, julho 27, 2009
Bela definição
domingo, julho 26, 2009
"Literatura"
sábado, julho 25, 2009
Ártico
Estávamos num campo de treino da NATO, organizado pelas tropas norueguesas, em 1980. O dia fora longo e eu partilhava o espaço com dois colegas, um belga e um turco. Chegados à nossa tenda, enfiei-me logo no meu saco-cama, saquei de uma lanterna de bolso, que prudentemente levara comigo, e pus-me a ler o "Herald Tribune" do dia. Acompanhava-me uma pequena garrafa metálica com um belo whisky de malte, em cuja tampa, com esmero, coloquei algum gelo que raspei do chão. As recomendações NATO tinham sido estritas - nada de alcool! -, mas achei que uma pequena excepção podia ser admissível para o civil inverterado que eu era. E nem a proximidade do Pólo Norte tinha o condão de me afastar de alguns comezinhos prazeres mais cosmopolitas...
Notei que o meu amigo belga adormeceu logo e estranhei ver o turco a tentar fazê-lo fora do saco-cama. Disse-me que estava com calor e que ficaria bem assim...
Acabadas a minha dose de whisky e a leitura, adormeci também. Acordei, creio que cerca de uma hora depois, alertado pelo belga. O nosso colega turco, imprudente, ao ter-se deixado dormir fora do saco-cama, estava agora enregelado, sentia-se mal e não conseguia aquecer, nem sequer aproximando-se do aquecedor.
Que se podia fazer? Sair da tenda, à procura de ajuda, na gélida e ventosa noite ártica, era quase suicida. Adiantei uma ideia: porque não bebia o nosso amigo turco um bom trago do meu whisky? Seguramente que isso poderia ter um efeito-choque, ajudando à sua recuperação. O belga concordou que era uma boa sugestão. E é aí que o turco nos surpreende: "não posso beber álcool. Sou muçulmano". E continuava a tremer de frio.
Com diplomacia e poder argumentatório - estávamos entre diplomatas - tentámos convencê-lo de que os ditames religiosos, com toda a certeza, eram passíveis de pontual derrogação quando estava em causa a salvação da vida. O whisky podia assim ser considerado, no caso vertente, como um mero medicamento - "embora bem mais saboroso do que é habitual", lembro-me de ter pensado. O turco, já um pouco em pânico, acabou por concordar em seguir a opção que lhe era oferecida: bebeu uma boa dose do meu velho malte e até repetiu... E lá aqueceu, como previsto, conseguindo dormir.
Pergunto-me, até hoje, se a minha leitura das regras religiosas muçulmanas esteve ou não correcta. E será que me posso considerar culpado se acaso o meu amigo turco, por via da minha sugestão, mudou de hábitos de vida?
Isabel Meyrelles
Começou a dedicar-se à escultura no Porto, com 16 anos. Pertenceu ao famoso grupo intelectual do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa. Veio para Paris em 1950. Estudou escultura, na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts, e literatura, na Sorbonne. Foi tradutora para francês, entre outros, de Jorge Amado e organizou e publicou, na Gallimard, uma interessante Antologia da Poesia Portuguesa do século XII ao século XX. Tem editadas em Portugal as suas "Poesias", nas Edições Quasi (2004). Considera-se mais uma escultora que uma poeta.
Devo dizer que, à excepção de alguns textos numa antologia, e de fotografias de algumas das suas esculturas, desconhecia, quase por completo, a sua obra. E, pessoalmente, talvez apenas nos tenhamos encontrado em algumas noites do "Botequim", em Lisboa, o bar que dirigiu com Natália Correia, ente 1971 e 1977. Fomos apresentados em Paris, há dois meses, numa exposição de pintura, e, posteriormente, deu-me o prazer de aceitar o convite para vir à Embaixada, na data da nossa festa nacional.
Nesse mesmo dia, o Estado português decidiu conceder-lhe uma condecoração - Comendadora da Ordem de Sant'Iago da Espada - que consagra a sua figura de intelectual e o conjunto da sua obra, distinção cujas insígnias lhe entregarei pessoalmente, aqui em Paris, daqui a algum tempo. Saiba mais sobre Isabel Meyrelles aqui.
quinta-feira, julho 23, 2009
Cristina Branco
Era um modo diferente de interpretar o fado, que combinava a forma clássica com algo de novo, que era indefinível para um mero leigo, como eu era e sou nestas áreas. Julgo não ter falhado nenhum dos seus discos (tenho mesmo uma edição holandesa) e, se bem que tenha frequentemente enveredado por outros caminhos musicais, a sua voz continua a ser excepcional.
Saiu há poucos meses em França o seu novo trabalho, Kronos, que apresentou numa bem sucedida "tournée" em França. Ouça-a aqui em "Se a alma te reprova".
Patten
Como era de regra, um membro do governo do país que detinha a presidência respondia, na bancada do Conselho, às perguntas dos deputados. Um dia falarei de aspectos desse ritual, que tem muito de teatral, a somar-se a algo de criativo.
Para o que aqui hoje interessa, importa recordar que, na bancada em frente, estava o Comissário Europeu encarregado das Relações Externas, Chris Patten. Patten é uma figura simpática, serena, um homem de bem que se portou com grande dignidade quando teve de gerir a difícil transição de Hong Kong, das mãos britânicas para a China. Antigo ministro da senhora Thatcher, é um europeísta convicto, embora "à inglesa". Escreveu, sobre a sua experiência europeia, um livro que recomendo, intitulado significativamente "Not Quite the Diplomat". É, além disso, um homem que olha para a vida com humor, que sabe dar uma boa gargalhada e que atribuiu aos seus cães dois nomes significativos: "Whisky" e "Soda".
A presidência portuguesa havia sempre podido contar com Chris Patten como um aliado fiel dentro da Comissão. Jaime Gama e eu próprio havíamos conseguido, não sem alguns "truques", equilibrar os papéis relativos, com inegáveis "zonas cinzentas" e potencialmente conflituais, de Patten e de Javier Solana. A contento médio dos dois, julgo eu.
Nessa tarde, a última em que eu tinha de dirigir-me ao plenário em nome da presidência, recordo o meu grande cansaço, que se terá revelado na impaciência e eventual rispidez de algumas das minhas respostas, nas mais de duas horas desse interminável e muitas vezes inglório exercício. Patten tê-lo-á notado e, num determinado momento, pelas mãos de uns dos fâmulos vestidos de pinguim, que contrastam vivamente com a modernidade do areópago, chegou-me um bilhete, que guardei: "Coragem, Francisco. Falta pouco! Daqui a semanas, andarás pela 5ª avenida a respirar o ar do Novo Mundo. Entretanto, este teu amigo terá de ficar por aqui mais uns anos. Lembra-te dele! Amigavelmente, Chris".
Patten referia-se à minha saída do governo e ida para embaixador junto das Nações Unidas, em Nova Iorque. Nenhum de nós sabia que eu acabaria por ficar por lá, como embaixador, ainda menos tempo do que o que a ele lhe restava como Comissário Europeu. Como alguém dizia, é a vida!
quarta-feira, julho 22, 2009
Mercedes
Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.
Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.
O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!