sábado, março 20, 2021

Um homem solidário


Do nosso terraço, naquele final dos anos cinquenta do século passado, lá por Vila Real, via-se, ao longe, uma moradia branca a que eu ouvia chamar “a casa de saúde do doutor Otílio”. Que me conste, felizmente, nunca ninguém da família teve necessidade de lá ir parar. 

“É ali que opera, todos os meses, vindo de Coimbra, o Bissaya”, também escutava, desde sempre, num registo que traduzia alguma admiração. Alguém vir, de fora, para operar doentes em Vila Real, naquela época, devia ser obra. E só com o tempo é que vim a saber que “o Bissaya”, Bissaya Barreto, era então um confidente muito próximo de Salazar.

Curiosamente, o dr. Otílio era conhecido como um declaradoopositor do ditador. Porém, não obstante as discordâncias políticas que os separavam, sabia-se que os dois médicos eram bastante amigos. Como grande amigo de Otílio Figueiredo era também o meu tio Humberto de Carvalho, que, ao tempo, na cidade, era uma proeminente personalidade da “situação”.

A primeira imagem que tenho da figura de Otílio Figueiredo é a de alguém que se passeava por Vila Real, muito esticado, cabeça levantada, com uma larga cabeleira, um “cabelo à poeta”, como então se dizia. Tinha um fácies grave, como à época era de bom tom ser afivelado pelos cavalheiros com peso na urbe. Embora sem nunca o ter conhecido pessoalmente, recordo que tinha dele uma ideia simpática, ao vê-lo com a sua bigodaça de estilo.

Ouvia dizer que, para além da profissão, escrevia literatura, coisa comum a médicos e a alguns advogados, um jeito muitas vezes trazido de Coimbra. Na minha família, unanimemente, “o Otílio” era visto como “um homem de bem”, politicamente “muito direito” (o que, na boca do meu pai, era altamente elogioso) e “muito boa pessoa”, como sempre ouvia dizer, ao meu tio e seu grande amigo.

Otílio Figueiredo, como se disse, era uma personalidade destacada do “reviralho” local. E a sua família também. Lá por casa, comentava-se: “Os filhos do Otílio têm ideias avançadas!”, um qualificativo que, à época, dizia tudo. Um dia, imagino, ter-se-á registado o rumor (que, afinal, era uma certeza) de que um dos filhos do médico oposicionista, o Eurico, tinha ido para o estrangeiro, para fugir à Pide. 

Tinha pouco mais de 20 anos, quando conheci pessoalmente Otílio Figueiredo. Num final de tarde de agosto de 1969, o meu amigo António Leite, numa mesa da Gomes, disse-me ter tido lugar, poucos dias antes, na sala de “explicações” da sua avó, a professora dona Dirceia, uma reunião preparatória da criação de uma lista oposicionista, para concorrer às eleições legislativas de outubro desse ano. O meu nome fora então mencionado para ser convidado a juntar-me ao grupo, tendo ele ficado encarregado de me contactar.

Eu era então um estudante universitário em férias. Meses antes, tinha tido o meu banho de iniciação política: a eleição da lista associativa de que eu fazia parte, numa posição modesta, tinha sido “não homologada” pelo governo (não por minha causa, claro!). Depois disso, em Lisboa, tinha andado envolvido em algumas movimentações políticas, embora sem grande significado. Sem partido, eu era então um radical, numa aprendizagem acelerada do marxismo. 

Ironicamente, tinha acabado de passar férias em França com o meu tio Humberto de Carvalho, o tal homem local do regime.

Antigo presidente da Câmara Municipal, esse meu tio tinha, nos últimos anos, regressado à sua vida de engenheiro. Porém, nesse ano de 1969, não tinha resistido ao apelo da “primavera marcelista” e preparava-se para ser o cabeça de lista da União Nacional ao ato eleitoral que se aproximava. Tinha-me falado nisso, em confidência, numa conversa em Biarritz, durante as férias. Ainda antes, e para poder acompanhá-lo, e porque eu estava na idade “da tropa”, tínhamos ido ver o governador civil, Torcato de Magalhães, que, sob a fiança da sua palavra, ordenou ao secretário do Governo Civil, o meu amigo José Aguilar, para emitir o documento que ia permitir a minha viagem.

Não obstante esse facto, decidi aceitar o convite transmitido pelo António Leite. Numa noite, no carro de Délio Machado, fui com ele à casa de Otílio Figueiredo.

Com grande simpatia, explicou-me o propósito da Comissão Democrática Eleitoral: ser uma frente unitária, que congregasse todos os oposicionistas locais. Não o disse, mas eu entendi: do “reviralhismo” republicano tradicional, aos (poucos) comunistas que por ali havia, passando naturalmente por figuras próximas do grupo de Mário Soares, como era o próprio Délio Machado. E, somando a tudo isso, havia um velho amigo, a figura do João Bouquet, a grande alma organizativa da CDE. Ou melhor, da CDEVR, porque a sigla pretendia ser uma marca distintiva das CDE de Lisboa, Porto e Braga, bem mais radicais. O João era então, entre nós, um homem difícil de qualificar politicamente: era simplesmente a alegria revolucionária em pessoa.

Começou nessa noite uma bela aventura, sob a liderança de Otílio Figueiredo. Poucos dias depois, com ele e com Délio Machado, fiz parte do trio que foi fazer entrega ao Governador Civil da lista oposicionista do distrito, que tinha Otílio à cabeça. Ainda estou a ver a cara de espanto de Torcato de Magalhães, ao deparar comigo - a mesma pessoa que, menos de dois meses antes, ali tinha vindo com o líder da União Nacional pedir um passaporte... Nunca tive por ingénuo o gesto de Otílio Figueiredo e de Délio Machado ao convocarem-me para esta cena. E sempre registei o “fair play” do meu tio, ao aceitar, com naturalidade, que eu tivesse decidido ir por um caminho político diferente do seu.

Otílio Figueiredo era um líder incontestado, mesmo a nível distrital. Paciente, bem humorado, aturava algumas ideias mais “avançadas” que eu propunha, e que traduzia em textos enviados para a imprensa em nome da CDEVR, textos que, as mais das vezes, nos dias seguintes ao envio para publicação, víamos selvaticamente cortados pela censura.

As reuniões, naquele andar de topo do prédio da Gomes, eram sempre momentos políticos interessantes.

Para a pequena história divertida, ficou uma cena com um velho “reviralhista”, que acumulava com o facto de ser um insuportável chato, a quem Otílio, já exasperado, pediu, a certa altura: “Olha lá! Não te importavas de ir ali ao Bragança comprar meia folha de papel selado?”. Perguntado, após a saída do homem, se estava a pensar fazer algum requerimento, fez um gesto de cansaço: “Nada disso! É que eu já o não conseguia aturar. E assim ganhamos uns minutos de sossego!”

Foram muitos os episódios que vivemos juntos, nessas semanas intensas e excitantes.

Numa noite, a decisão de nos associarmos, ou não, a uma posição coletiva da Oposição, a nível nacional, na resposta a um telefonema de Lisboa, de Mário Sottomayor Cardia, obrigou a uma reunião de emergência, em casa de Otílio.

No auge da discussão - na qual ele procurava ser a bissetriz entre duas alas, sobre a questão colonial, representadas pelo meu radicalismo e pela moderação de Délio Machado - tive um ataque de riso, sem o poder explicar: é que o bizarro e inenarrável pijama às riscas de Otílio de Figueiredo, que se tinha levantado da cama para moderar a decisão, me pareceu, num determinado momento, não “rimar” com a gravidade do tema. Não sei como me contive, por entre as gargalhadas que travava.

Desse belo tempo de 1969, recordo, finalmente, aquela que terá sido a minha única, se bem que educada e respeitosa, altercação com Otílio Figueiredo.

Foi nas horas subsequentes ao comício oposicionista no Teatro Avenida. Furibundo com o facto de um dos membros da nossa lista eleitoral, no seu discurso, ter afirmado que “o Ultramar deve continuar a ser português”, apresentei a minha demissão e recusei-me a integrar a delegação da CDEVR a uma reunião da Oposição a nível nacional, que teria lugar horas depois.

Otílio Figueiredo achou despropositada a minha reação, e disse-mo. Eu afirmei, com ênfase, que contestar a posição anti-colonial era uma linha vermelha a que eu não podia associar-me. Demiti-me, assim, da CDEVR, a poucas horas da votação.

A nossa oposição vila-realense não teve um resultado brilhante. Nenhum dos nossos candidatos foi eleito. Nada que nos surpreendesse muito. Assim ocorreria também em todo o país, onde, como em todos os arremedos de eleições que a ditadura encenava, a oposição não iria conseguir eleger ninguém.

Porque a política local era, então, algo de muito peculiar, deixo registado que, semanas depois do ato eleitoral, organizado pelo Rotary Clube, teve lugar um jantar de homenagem conjunta a Otílio Figueiredo, o líder oposicionista derrotado, e ao meu tio Humberto de Carvalho, líder da lista eleita e futuro deputado.Dois amigos que nunca deixaram de se abraçar, até ao fim das suas vidas.

No meu caso, a vida iria afastar-me bastante da cidade. E, por algum tempo, só casualmente voltei a cruzar-me com Otílio Figueiredo, com o qual mantinha um registo de mútua simpatia e amigo apreço.

Imediatamente após o 25 de Abril, integrei, com o meu pai, uma manifestação junto ao regimento de Infantaria 13, de apoio à indicação de Otílio Figueiredo para Governador Civil de Vila Real. Não viria a sê-lo, porque a relação de forças partidárias na região começava a ser desfavorável àquilo que ele representava em termos de ideias.

Depois, por muito tempo, o “Setentrião”, a sua livraria no Cabo da Bila, passou a ser uma das minhas regulares “capelinhas” de romagem, nas visitas que fazia a Vila Real.

Otílio era de uma grande simpatia e generosidade para comigo, visivelmente atento ao meu percurso profissional, refletindo sempre comigo sobre os tempos da política nacional, a que percebi estar sempre muito atento, embora não raramente dela refletisse algum desencanto.

Tenho saudade desse cidadão de exceção que foi Otílio Figueiredo. Foi uma figura distinta de profissional médico, um intelectual de mérito, um grande democrata e, acima de tudo, um homem solidário que soube estar à altura dos desafios dos tempos que lhe coube viver.

(Texto que publiquei no “In Memoriam de Otílio Figueiredo”, que acaba de ser editado pelo Grémio Literário de Vila Real)

sexta-feira, março 19, 2021

Qualificação (2)


Desta vez é criatividade lexical nordestina que se mostra, a pretexto de Jair Bolsonaro.

Montarroio


A Sampaio Bruno foi, por muitos anos, uma rua marcante na Baixa do Porto. Começa num entroncamento atravessado por uma das ruas mais nobres da urbe, a Sá da Bandeira, para o qual convergiam duas artérias que já foram muito estimáveis referências gastronómicas: a rua do Bonjardim e a Travessa dos Congregados. Começando no banco que foi Pinto de Magalhães e na Casa da Sorte, termina numa bela tabacaria, com basta imprensa internacional, tendo à frente o café Embaixador.

Hoje, por ali, numa cidade fechada e triste pela pandemia, deparou-se-me esta imagem. 

A casa que se vê do lado direito foi, a certa altura, um ponto de modernidade no Porto. Era ali o Montarroio, um dos primeiros locais a servirem café de máquina, com as famosas “La Cimbali”, que ficaram no nome do “cimbalino”. Nesse tempo, há mais de meio século, o snack-bar (a própria expressão traduzia novidade) Montarroio tinha uma zona de comércio e bebida de cafés ao nível da rua e, numa cave a que se acedia por uma escada muito estreita, tinha um balcão onde se serviam refeições leves. Era um local simpático e chegou a ser bastante “in”.

Nos dias de hoje, é o que se vê. E, infelizmente, vê-se bastante disto por esta zona do centro do Porto. Melhores dias virão!

In Memoriam de Otílio Figueiredo

 


Trabalhar o futuro


Vai para uma década, estive envolvido num exercício para a definição do novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Uma vintena de personalidades, empossadas pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, sob a coordenação de Luís Fontoura, produziram, ao longo de alguns meses, um extenso e muito detalhado trabalho.

Ele havia sido antecedido pela elaboração de diversos documentos temáticos, preparados no âmbito do Instituto de Defesa Nacional, que ajudaram a estruturar a nossa reflexão.

Após a entrega ao governo do nosso trabalho, o poder político extraiu dele o que entendeu e publicou-o, sob a sua responsabilidade, em Diário da República. Como é da natureza destas coisas, nem tudo aquilo que havíamos recomendado foi seguido, mas a legitimidade política existe, precisamente, para poder ser exercida no domínio das escolhas a fazer.

Pela parte do grupo, bem heterogéneo e diversificado, que havia estado envolvido no trabalho, houve a consciência de que tínhamos contribuído, da melhor forma que nos fora possível, para essa tarefa de interesse nacional, sem outra retribuição que não fosse o gosto de tentar sermos úteis ao país.

Os Estados têm obrigação de produzir uma reflexão regular sobre os principais eixos em que, com realismo e responsabilidade, assentará o futuro coletivo.

Desejavelmente, essa análise deve ser produto de um largo consenso, envolvendo atores oriundos de setores diversos de pensamento. Essa é uma regra básica para evitar o risco de que a reflexão redunde numa visão sectária, rebatível por perspetivas opostas, assim desvalorizando o que tiver sido produzido.

Nenhum texto desta natureza resiste ao desgaste do tempo e, muito em especial, às alterações de conjuntura, em particular daquelas nas quais o próprio Estado não consiga ter um papel determinante.

Para uma entidade internacional como é Portugal, um país com uma larga inserção externa - bastante maior do que a de muitos Estados com a sua dimensão - mas com limitados meios para poder garantir eficácia à sua voz, o principal esforço neste tipo de exercícios é começar por definir os valores que entendamos dever preservar, numa leitura atualizada da nossa soberania.

Daí decorre a definição dos factores e riscos que, num horizonte razoável, possam surgir como limitativos ou condicionantes do património de interesses a preservar. A isso se agrega, como lógico corolário, a definição de linhas orientadoras que devem ser observadas pelas políticas públicas nacionais, por forma a garantir a aplicação ótima dos recursos.

Este tipo de trabalhos processa-se sempre entre dois riscos: o de ser limitado por um pensamento conservador, que dê por adquiridos e imutáveis alguns paradigmas, e o da irresponsabilidade imaginativa, descolada da realidade, fruto da vontade de colocar tudo em causa. Descobrir o ponto certo de equilíbrio é a chave do sucesso destes exercícios, cuja real utilidade é sempre medida pelo modo como os governos traduzem esse quadro referencial em decisões no seu dia-a-dia.

Sem pretender ser polémico, limito-me a constatar que, entre nós, a governação costuma ser muito pouco sensível a visões estratégicas que abranjam mais do que a esquina do fundo da rua por onde caminha, isto é, a próxima eleição. Quero crer que nenhum executivo esteve disposto, até hoje, a proceder a uma aferição sobre o modo como a sua ação teve ou não em consideração aquilo que tinha sido definido nos “conceitos estratégicos” que, supostamente, os deviam ter orientado.

Lembrei-me disto ontem, ao terminar a leitura de um documento divulgado, ainda esta semana, pelas autoridades britânicas, em que é feita uma reflexão sobre os desafios que se colocam ao Reino Unido nas áreas da Segurança, Defesa, Desenvolvimento e Política Externa.

É muito refrescante poder apreciar um pensamento contemporâneo sobre o destino de um país antigo, que avalia o seu futuro com ambição e otimismo. Recomendaria que aquele estudo fosse bem lido entre nós.

Mais do que “chover no molhado” sobre o presente, a nossa grande responsabilidade é conseguir preparar o futuro. Nem que seja por mero egoísmo geracional: é que o futuro é o lugar onde “quem cá está” já vai passar o resto dos seus dias.

A raça na corte


Quando, em 1910, a República foi implantada em Portugal, apenas o caso óbvio da França e o modelo particular da Suíça destoavam, num mar de regimes monárquicos que submergiam a geografia política do continente.

Com o passar das décadas, os conflitos, as secessões e a emergência de radicalismos de sinal diverso marcaram o destino de muitas dessas Monarquias.

Parte delas viria a falhar no teste da sua compatibilidade com a onda de prevalência da soberania popular que foi varrendo o continente.

As Monarquias que se mantiveram enquanto tal, na sua maioria tituladas por descendentes de figuras que se tinham prestigiado como símbolos de unidade em tempos nacionais de extrema dificuldade, como foi o caso da Segunda Guerra mundial, aceitaram o compromisso de anular a sua capacidade de influenciar a gestão política dos respetivos países.

Aos reis é hoje pedido que sorriam e representem com dignidade o Estado de que são um símbolo. Quando a conjuntura os obriga a intervir pontualmente na coisa política, exige-se-lhes um imenso bom senso.

Ora o bom senso não nasce necessariamente com as pessoas - e os reis são pessoas. Viu-se isso, há pouco tempo, em Espanha, onde o antigo monarca desbaratou, por insensatez de comportamento, o capital de prestígio que tinha acumulado numa transição política tida por exemplar.

Com uma parte significativa das opiniões públicas - mais nuns países do que em outros - a colocar progressivamente em causa o princípio dinástico da chefia do Estado, os monarcas e as suas famílias vivem sob uma atenta observação. Alguns parece estarem mesmo sob uma implícita aferição pública da sua “utilidade”, numa relação custo-benefício, a qual, porque decorrente da progressiva dessacralização das suas funções, se torna, dia a dia, mais exigente.

Passado que foi, já há muito, o tempo da sua intocabilidade pela comunicação social, os soberanos e suas famílias têm de aguentar esse forte escrutínio, porque parte das sociedades democráticas não olha com bons olhos os privilégios e as mordomias, obrigando-os assim, cada vez mais, a seguirem uma vida que se assemelhe à do comum dos cidadãos.

Os gastos com as famílias reais ou similares são hoje objeto de um forte debate, sendo a sua expressão social seguida com um interesse que vai da medíocre coscuvilhice tablóide à compreensível exigência ética.

As cortes, no seu esforço de sobrevivência institucional, têm assim de ter inteligência para se adaptarem às mudanças da sociedade, às tendências da contemporaneidade. Com um grau de aceleração sem precedentes, isso envolve hoje linguagens, padrões comportamentais e a observância de uma multiplicidade de outros sinais.

O que se terá passado recentemente na corte britânica, com acusações de cedência a estereótipos racistas e discriminatórios, toca uma preocupação que atravessa o mundo, a que as novas gerações são particularmente sensíveis.

Da mais “profissional” das Monarquias europeias não era expectável um erro tão grosseiro. Mas, como diz o povo, no melhor pano cai a nódoa.

quinta-feira, março 18, 2021

Qualificação


É difícil exceder em imaginação qualificativa aquilo que esta cronista da “Folha de São Paulo” ontem escreveu sobre o presidente Bolsonaro.

Vou confessar o que nunca tinha lido: Basculho, jacodes, enxurro, infando, estrupício, broxável, capiroto, pequi roído. Mas o mais delicioso vocábulo é, sem a menor dúvida, o criativo “excrementíssimo”.

“A Arte da Guerra”


Em conversa com António Freitas de Sousa, no “Arte da Guerra”, do “Jornal Económico”, abordamos hoje em video as próximas eleições legislativas em Israel, as pressões chinesas sobre Hong-Kong e a profunda crise político-social em que está mergulhado o Líbano.

Pode ver aqui.

quarta-feira, março 17, 2021

Poluição visual

É um cruzamento, relativamente estreito, entre a rua das Praças e a rua S. João da Mata, na Lapa, em Lisboa.



Podia ser um recanto interessante de uma Lisboa de um certo tempo, com casas de época, que a vista poderia desfrutar.




Nos dias de hoje, neste pequeníssimo espaço, há esta floresta de placas rodoviárias. Contem-nas! São 14 ou 15! 




Não pode ser diferente? É mentira. Em outros países, bem mais desenvolvidos, cívicos e organizados, há bairros onde não há este inferno de latoaria, onde à entrada do bairro é dada uma indicação geral. E é tudo!






Por cá, deve haver uns especialistas que entretêm a vida com isto. E nós que aguentemos! (Faltam várias das placas nas fotos, mas não tive coragem de fotografar mais. Já havia vizinhos a espreitar pelas janelas...)

terça-feira, março 16, 2021

Óscares


Pedro Gomes Sanches explica, no Expresso, os critérios para atribuição os Óscares, a partir de 2024. Leiam:

Para ser elegível a Oscar a partir de 2024, o filme tem de cumprir dois de quatro standards. O primeiro standard é assegurar que uma das três condições seguintes é verificada. Primeira condição: o actor ou actriz principal ou um dos principais actores secundários tem de ser asiático, hispânico ou latino, negro ou afro-americano, indígena, americano nativo ou nativo do Alaska, do médio-oriente ou do norte de África, nativo do Hawai ou de uma ilha do Pacífico ou de outra raça ou etnia subrepresentada. Segunda condição: pelo menos 30% dos actores secundários têm de ser de pelo menos dois dos grupos subrepresentados; a saber: mulheres, grupos étnicos ou raciais, LGBTQ+, ou pessoas com deficiências físicas ou cognitivas ou surdos. Terceira condição: a história principal deve ser sobre um dos grupos subrepresentados (os mesmos referidos na condição anterior). O segundo standard deve cumprir uma de duas condições. A primeira é que dois dos directores de departamento (de casting, cinematografia, composição, adereços, cabeleireiro, etc.) sejam de um dos grupos subrepresentados. A segunda é que pelo menos um respeite a primeira condição do standard.

A imagem é do cartaz dos Óscares 2021.

Zero três


“E tens um carro para ti”. Esta frase, que me chegou a Oslo, em cuja embaixada de Portugal eu trabalhava, numa carta, pela mala diplomática, algures no início de 1982, alegrou-me um pouco o espírito. Era escrita por um colega da embaixada em Luanda, para onde eu acabara de ser transferido. Explicava que se tratava de um Volkswagen deixado pela “tropa” portuguesa, que eu ia ter direito de utilizar, quando chegasse ao novo posto. 

Por esses dias, eu não andava muito animado, “to say the least”, pela minha colocação em Luanda.

Três anos antes, sem ser candidato a nada e nem sequer ter sido consultado previamente, como era de regra, o ministério tinha-me enviado para Oslo, para o meu primeiro posto diplomático no estrangeiro. Ao que parecia, tinha sido essa a solução que, no Conselho do Ministério (hoje, Conselho Diplomático), órgão que determina as colocações e promoções, o meu diretor-geral, Alexandre Lencastre da Veiga, havia conseguido descortinar para evitar que eu fosse colocado em Bagdad, para onde o secretário-geral de então, Caldeira Coelho, me queria enviar. No seu entendimento, o meu perfil funcional merecia outro destino. Mas o chefe da carreira, que me “tinha no radar”, ao que deduzi por razões políticas, para utilizar uma expressão um dia ouvida a quem dele esteve próximo, teria mesmo ironizado, em conversa com o diretor-geral, com a proposta que tinha acabado de fazer para eu ir para a cidade de Saddam Hussein: “Ele parece gostar desse tipo de regimes!”

Três anos depois, era Luanda que me surgia no horizonte. Um outro diretor-geral, com o pelouro do pessoal a seu cargo, tinha-me telefonado para Oslo, inquirindo sobre se eu tinha “alguma objeção em ser colocado em Luanda”. Segundo me disse, o meu nome era um dentre quatro que o Conselho estava a considerar.

Quando ele me referiu os restantes três nomes, percebi logo que seria eu o designado: um deles tinha feito o serviço militar por lá, outro tinha crianças pequenas, outro alegava, há anos, uma doença do foro psicológico, o que já lhe tinha permitido escapar a outros postos difíceis. Com o destino marcado, pedi que fosse dito, da minha parte, ao Conselho: “Informo que não tenho interesse em ir para Luanda mas, se me mandarem, vou”. Não sei se ele o disse. E, é claro, fui. Pela pressa com que me enviaram, quase sem me deixarem completar três anos no posto nórdico, quase posso dizer que fui “para Angola, rapidamente e em força”.

A capital angolana era, então, um posto de categoria D, a mais baixa, isto é, aquilo a que os ango-saxónicos chamam um “hardship post”. Em plena guerra civil, com recolher obrigatório, quase sem lojas, com uma extrema dificuldade para se adquirirem bens alimentares, Luanda era então uma cidade muito difícil para se viver. Oslo já tinha sido um posto de categoria C, o que significava que eu começava a minha carreira a andar “pelo fundo da tabela”. Mas o que tem de ser tem muita força.
  
Se tivesse dinheiro ou alternativa, teria saído então da profissão, que parecia estar a tornar-se madrasta para mim, prenunciando um percurso futuro nada promissor. Mas, como vivia apenas do meu trabalho, a necessitar do salário ao fim do mês, com a minha mulher a prescindir da carreira dela para poder acompanhar-me, tive de aceitar. 

Ia para Luanda, aliás, arruinado financeiramente, porque a Noruega tinha sido caríssima e, mesmo com uma vida relativamente modesta, não conseguira aí poupar um tostão, ou melhor, uma coroa. Saí mesmo como uma dívida a um banco norueguês, com o meu embaixador por fiador, que paguei já só em Angola. São estes, para que constem, os salários “dourados” da diplomacia, de que às vezes a inveja fala através da imprensa.

Eu ia levar um VW Golf para Luanda, mas demoraria meses a chegar, por barco, com a minha bagagem. Ter ali um carro, desde o primeiro dia, particularmente indo morar na Avenida Marginal e tendo de ir trabalhar na parte alta da cidade, era essencial.

Mal eu sabia, contudo, que, quando chegasse a Luanda, o apartamento que me era destinado se tinha “eclipsado”, tomado pelas autoridades locais, com estranhas cumplicidades lusitanas à mistura. Iria ser então obrigado a viver, por quatro meses, num hotel próximo do limite do aceitável, para depois ter de ir ocupar, no edifício da embaixada, um minúsculo apartamento, com torneiras na parede... mas sem canos por detrás. 

Mas lá me foi apresentado o carro que me era destinado. Era um carocha preto, com um motor terrível, bancos que tinham sido de napa em tempos áureos, com um buraco do chão, por onde entravam as baratas. Sem chave nas portas, claro. As latas do carro abanavam por todo o lado, conferindo ao diplomata condutor um estatuto de duvidoso prestígio.

Era o “Zero Três”. Porquê esse nome? Porque a matrícula era MX-42-03. E eu era o nº 3 da embaixada. O carro do ministro-conselheiro, o segundo da hierarquia, era um Mercedes a cair da tripeça, com a matrícula a acabar (claro!) em 02, e o do meu colega que se seguia na linha da casa, era outro Carocha, o 04. Tudo óbvio.

Antes da chegada do meu Golf, meses depois de mim, e também ainda antes da ida da minha mulher para Luanda, o 03 iria dar-me imenso jeito, para me transportar pelas ruas de cidade e para ir para a praia, “off-season”. É que eu teimava sempre, para horror dos meus amigos angolanos, em frequentar as praias da ilha de Luanda no tempo do “cacimbo”, gozando, nos fins de semana, de uma magnífica solidão para ler e ouvir música. Para quem vinha da Noruega, o “cacimbo” ali era puro verão...

Por que é que me lembrei disto agora? Porque, há pouco, num número da revista brasileira “Piauí”, que acabo de receber como assinante que sou, relembrei que Jair Bolsonaro designa os filhos, por ordem decrescente de idades, como 02, 03 e 04.

Ao ver esta referência, senti alguma nostalgia daqueles tempos complicados de Luanda. Terra onde, afinal, acabei por ser feliz, porque a felicidade, tal como o Natal para os homens, é onde nós quisermos - e, vá lá!, onde pudermos e soubermos ser.

segunda-feira, março 15, 2021

José Paulo Fafe


Por anos, só o conhecia “de ouvido”: dizia-se, unanimente, ser um “enfant terrible”! Era uma imagem irrequieta, polémica, que me ia chegando por várias vias, sempre a contrastar, nesse registo, com a figura serena e calma do pai, um grande senhor e um imenso democrata, que deixou muito boa fama pelos claustros das Necessidades e que ainda tive o privilégio de cruzar pelo mundo. O António Silva e o Nuno Brederode, dois amigos comuns que o tempo já nos levou, iam-me, entretanto, dando dele uma imagem divertida e risonha. Eu, que o via frequentemente misturado com figuras políticas que estavam longe de ser “my cup of tea”, ia guardando o meu juízo final. Lia-lhe a escrita, trazia “no sapato” uma partida que ele me tinha feito num espécie de “Gente” com que o “Tal & Qual” de outros tempos se divertia, olhava-o sempre à distância - intermediado pelos jornais ou revistas ou pelas redes sociais. Um dia, uma aventura improvável que a pandemia deixou a meio, levou-nos, por iniciativa dele, a algumas almoçaradas e reuniões, com outros comparsas. Foi o bom e o bonito! Só a muito custo conseguíamos, por entre mil historietas e notas contemporâneas, tratar do tema que ali nos convocava. E, nesse caminho de conversa, de gargalhadas e ironias, fomo-nos dando - uma expressão de que gosto muito. Cada vez mais, num percurso de entendimento que chegou à amizade. Desses tempos saiu o convite que me fez para escrevinhar uma introdução a um dos anos de uma recolha da sua escrita no Facebook. 2015, ano do “finis Cavaco”, da Geringonça e do início da nova era socialista-marcelista, coube-me em rifa. O texto lá está, quase a abrir o “Um Homem é um Homem, um Gato é um Bicho” (2015/2020), o livro de José Paulo Fafe que a Âncora agora “deu à estampa” (gosto desta fórmula clássica). Aconselho que o leiam, com proveito, abrindo ao acaso as suas páginas, porque a graça de um produto desta natureza é ser feito de textos, umas vezes curtos outras mais longos, onde se fala de tudo e, principalmente, de mais alguma coisa.

domingo, março 14, 2021

"Lá na rua da Vitória...


"Candeeiros bem bonitos
modernos, originais,
compre-os na Rádio Vitória,
não se preocupe mais.

Lá na Rua da Vitória
quarenta e seis quarenta e oito
satisfaz-se plenamente
o cliente mais afoito.

Porque na Rádio Vitória
Embaixada do bom gosto
Quem lá vai é bem servido
e sai sempre bem disposto"


Eu decorei isto por causa da "embaixada", aposto.

O meu amigo Vidal


"Para o meu amigo, se não há mesa, inventa-se!", dizia-me, em anos idos há muito, o meu amigo Vidal, que nos apresentava pratos de inspiração galega no Muni.

Confirmado hoje ...


 ... que não fazem “take-away”!



“Observare”


Observare: investimento estrangeiro em Sines, EUA reúne com aliados asiáticos, acordo UE-Mercosul e oposição bielorrussa.

Pode ver aqui

Rapidamente e em força

Se acaso eu fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

Como o haviam sido, desde o século XIX, os republicanos, os combatentes contra a ditadura, os anti-fascistas. Ser colonialista, ser adepto da manutenção do império colonial era um desígnio nacional, patriótico. Os republicanos puseram o país a ferro e indignação porque a “pérfida Albion” nos não deixou executar o sonho do “mapa cor-de-rosa”.

Portugal teimou, depois, em ir para a Grande Guerra para defender as suas possessões ultramarinas, as suas colónias. Cunha Leal, expoente da luta contra Salazar, era um ferrenho colonialista. Norton de Matos, antigo governador-geral de Angola, pedia meças ao ditador de Santa Comba no interesse em manter a nossa África nossa.

Nos anos 50, até o movimento descolonizador ter começado a abalar as anteriores certezas da esquerda portuguesa, as colónias eram “nossas”. Repito o que disse, com total convicção: se acaso fosse democrata e adulto nos anos 40 e 50 do século passado, teria sido um orgulhoso colonialista.

A legitimidade da “posse” colonial só começou a ser posta em causa, em Portugal, pelo PCP. Honra lhe seja! Fê-lo, naturalmente, porque a opinião de quem o guiava (leia-se, Moscovo) tinha entretanto mudado. 

Já havia tido lugar, entretanto, a Conferência de Bandung. A China de Mao, ainda antes do cisma sino-soviético, já tinha cheirado “l’air du temps” e pressentido que o “terceiro-mundo”, a Tricontinental, o suposto “não-alinhamento”, eram a nova fronteira de um Norte-Sul inevitável.

Por cá, bem cedo, os maoístas afirmaram o anti-colonialismo com força e coerência. Honra a Francisco Martins Rodrigues, de quem (quase) todos eles são filhos, por muito bastardos que sejam ou mereçam ser. À parte o PCP e os maoístas, só os católicos “progressistas” os seguiram. Honra também lhes seja.

Os socialistas, presos ainda a um pensamento fora do tempo - que, deles afastados, a Ação Democrato-Social se encarregou de preservar, como num museu, até que se dissolveu no PPD -, demoraram bastante, até perceber que o vento tinha mudado e o império não tinha sentido.

Resumindo: tive a sorte temporal de já poder ser adolescente e adulto a tempo de ter uma atitude anti-colonial. Nunca defendi o “Angola é nossa”, embora saiba de cor a letra do hino, porque o debitava no Canto Coral do liceu. (Como cantava, e ainda sei, o hino da Mocidade Portuguesa - e não tenho a menor vergonha disso, diga-se!) Cada um vive o seu tempo e eu vivi o meu e não o disfarço.

E digo isto, porquê? Porque, nunca tendo sido colonialista - melhor, tendo sempre sido anti-colonialista, porque a isso me ajudou o tempo em que vivi - acho sem o menor sentido, entendendo que não leva a nada e que pode mesmo ser muito negativo para o nosso futuro, a evocação obsessiva das barbáries ocorridas nas guerras coloniais que está a emergir por aí - como a que a “Sábado” desta semana e o “Público” de hoje se dedicam.

A cada tempo corresponde um tempo, uma determinada maturação da consciência, uma certa racionalidade. Pensarmos que a nossa, a do dia que corre, é moralmente superior àquela que outros tinham no passado é mostra de uma arrogância imbecil. Por isso, nunca entendi muito bem o objetivo da auto-flagelação histórica com que alguns se comprazem, como se escavar na memória, de forma divisiva, trouxesse algum bem ao nosso futuro coletivo. O passado foi quando foi. Julgá-lo, à luz dos valores de hoje, é dar ares de possuirmos, só nós, a verdade incontestável, que se lhe sobrepõe. 

Apetece-me dizer a essa gente: coragem era ser anti-colonialiasta quando havia colónias. Sê-lo hoje, retrospetivamente, é uma arrogância saloia.

sábado, março 13, 2021

O cronista

Chama-se Alberto Gonçalves e é um dos mais badalados cronistas do jornal digital “Observador”, pago por esse órgão de comunicação social para escrever coisas como estas:

”Desde há um ano, ou seja, desde que começou esta experiência social, que faço o que me apetece, excepto quando o que me apetece colide com a submissão alheia à repressão em curso. Por exemplo, não posso ir a restaurantes se estes estiverem fechados. Mas nunca me passou pela cabeça respeitar as limitações de circulação e os horários de recolhimento, os quais de resto desconheço. No último fim-de-semana, à semelhança de boa parte dos anteriores, cruzei uns 90 municípios, sem “autorizações” escritas ou desculpas preparadas para criaturas que não têm o direito de as exigir em circunstâncias assim. Se quero “circular”, circulo. Se quero estar com amigos, estou. Se quero ficar em casa, fico – porque é a minha vontade e não porque o prof. Marcelo, o dr. Costa, a orquídea da DGS, uma dúzia de “especialistas” em fancaria estatística e um estúdio de televisão repleto de idiotas o recomendam. Se me apanharem a desobedecer, multem-me. Se me apanharem a obedecer, internem-me. Respeitar ordens implica aceitar a legitimidade das mesmas e de quem as decreta. Há muito que não respeito essa gente, e há muito que as decisões dessa gente são ilegítimas.”

O texto, no antepenúltimo parágrafo, tem a lucidez de dar uma sugestão com algum sentido.

10 sítios de que sinto falta (10)

 


... e da varanda da minha casa, em Vila Real

10 sítios de que sinto falta (9)


Restaurante Cozinha do Manel, Porto

10 sítios de que sinto falta (8)


Restaurante do Rio, em Sol Tróia, na “saison”, e Tasquinha da Arlinda, durante o resto do ano, em Darque

10 sítios de que sinto falta (7)


Pousada de São Bartolomeu, Bragança

10 sítios de que sinto falta (6)


Restaurante São Gião, Moreira de Cónegos

10 sítios de que sinto falta (5)


Miradouro de Nossa Senhora do Folguedo de Cima, Mangalhona

10 sítios de que sinto falta (4)


Restaurante Vallecula, Valhelhas

10 sítios de que sinto falta (3)


Pousada de Santa Luzia, Viana do Castelo

10 sítios de que sinto falta (2)


Restaurante Lameirão, Vila Real

10 sítios de que sinto falta (1)


Pousada de Belmonte

sexta-feira, março 12, 2021

Do meu bairro (6)

 




A fome


Acabo de ler que morreu Carlos Costa, o fundador do Trio Odemira. Desde os anos 50, o grupo musical foi muito famoso entre nós e atuava, com frequência, junto das comunidades portuguesas no mundo.

Não me admirei, por isso, em 1988, em deparar com o Trio Odemira em Kinshasa, no Zaire, onde eu tinha ido integrado numa missão chefiada, pelo jovem secretário de Estado Durão Barroso. Era, recordo-o, a primeira visita de Barroso a África. 

Numa das noites, o embaixador português no Zaire, Álvaro Guerra, oferecia um jantar a Durão Barroso e à delegação. Era uma refeição com várias mesas redondas, naquele imenso edifício da nossa embaixada que, nas vezes em que lá voltei, sempre me dava ares de um Palácio da Justiça do tempo do Estado Novo.
 
Convidados para o repasto estavam alguns dos interlocutores locais de Barroso e figuras da importante comunidade portuguesa no Zaire. Álvaro Guerra tinha perguntado se também podia juntar os integrantes do Trio Odemira, a quem queria fazer um gesto de simpatia. O secretário de Estado anuiu, claro.

A mais ansiada presença no jantar era, contudo, a de um homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita ao país então ainda presidido por Mobutu. É que a resolução de uma determinada questão bilateral passava por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante, para permitir “deixar cair uma palavra” sobre o assunto, como costumamos dizer nas Necessidades. Lembro-me de que Barroso não queria regressar a Lisboa sem ter um sinal sobre esse dossiê financeiro que muito nos interessava.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças não havia meio de aparecer.

Comecei a detectar algum desagrado em Durão Barroso, que era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de que, quer o chefe de gabinete de Barroso, o meu colega António Monteiro, quer eu, termos dito ao Álvaro Guerra que seria importante passarmos à mesa. 

“Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquia o Álvaro, cada vez mais embaraçado. Era uma pena, de facto, perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. O atraso do jantar começava a ser insustentável.

“Vou telefonar ao ministro!”, disse Álvaro Guerra, a certo ponto. Ora aí estava uma excedente ideia! E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou, a alguns de nós, que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. Barroso mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente.

Recordo que fiquei numa mesa onde também estavam os membros do Trio Odemira, entre os quais Carlos Costa, agora desaparecido, e o meu colega Manuel Lopes da Costa, que também se foi, há pouco tempo. Foi uma mesa com uma conversa extremamente animada!

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação oficial portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. 

O Álvaro Guerra, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, tinha perguntado ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite.

A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um governante português e que estava muito grato por ter sido convidado.

Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

quinta-feira, março 11, 2021

Do meu bairro (5)

 


Do meu bairro (4)

 



O pré-anúncio

Os jornalistas não se dão conta do ridículo que é especular, por horas, sobre quais são as medidas de desconfinamento? Não seria melhor deixarem-se de “bitaites” e esperarem pelo anúncio? E acham decente entrevistarem ao acaso sobre a boataria que corre sobre o assunto?

RT

O que esta malta sabe nas televisões sobre o RT ! Parecem as tias do Vasquinho e o esternocleudomastóideu.

quarta-feira, março 10, 2021

Do meu bairro (3)

 



Do meu bairro (2)

 


Do meu bairro (1)

 


O regresso de Lula


Numa conversa na TVI, com Ana Sofia Cardoso, abordo o ressurgimento de Lula da Silva e a sua possível recandidatura à presidência do Brasil.

Pode ver aqui.

“A Arte da Guerra”



Em “A Arte da Guerra” desta semana, no âmbito do “Jornal Económico”, falo com António Feitas de Sousa sobre a situação política alemã, sobre as divergências entre a União Europeia e o Reino Unido no tocante à dificuldade de implementação do acordado no Brexit e, finalmente, sobre o voto suíço contra o uso da burqa.

Pode ver aqui.

terça-feira, março 09, 2021

Palmas a Tomaz


“Queres ir à posse do presidente da República? Posso arranjar um convite para ti”. A pergunta foi-me feita, de forma sorridente e algo desafiante, durante um jantar em casa de família, em Lisboa, por um tio, casado com a irmã da minha mãe, deputado à Assembleia Nacional pelo círculo de Vila Real. 

Estávamos em 1972. Américo Tomaz era o presidente em questão. Tratava-se da sua segunda recondução. Em 1958, em compita com Humberto Delgado, num ato eleitoral, por sufrágio direto universal, de que a História acolheu para sempre as flagrantes fraudes, Tomaz chegara à presidência.

O regime havia aprendido bem as lições desse momento atribulado. E, para evitar sobressaltos democráticos, mudou a lei. O presidente deixou de ser eleito por sufrágio popular e passou a ser escolhido por um “colégio eleitoral” composto pelos deputados à Assembleia Nacional, pelos procuradores à Câmara Corporativa e por algumas figuras mais. O controlo do resultado do exercício ficava assim garantido. Já fora “reeleito” assim em 1965.

A saída de cena de Salazar e a entrada em funções de Marcelo Caetano não mudou as regras do jogo. Por isso, não obstante alguma movimentação por parte da “ala liberal” de Francisco Sá Carneiro, para encontrar um candidato alternativo, Tomas acabaria por ser “reeleito” de novo, em 1972. O irrequieto deputado não tardaria a fartar-se da cinzenta “primavera” marcelista e a resignar ao cargo, regressando ao Porto.

Ir ver a posse de Tomaz?! Tenho, em geral, uma visão muito lúdica das coisas. Ir à posse do presidente seria um “must”. Creio que disse logo que sim. 

Dois anos antes, eu tinha estado bem ativo na campanha da CDE de Vila Real, que combatera a lista da União Nacional, de que o meu tio tinha sido o primeiro candidato. Mas as nossas relações eram, e foram-no até ao final da sua vida, excelentes. A política não nos dividia, minimamente. Foi sempre um dos meus maiores amigos.

A família, à volta da mesa, estava imensamente divertida. Então o proclamado “esquerdista”, que tinha andado nas lides do associativismo universitário (à época, era estudante-trabalhador, como funcionário bancário), sempre a clamar contra o regime, não resistia a ir ser “voyeur” de um evento da “situação”?! A verdade é que a minha curiosidade estava a suplantar, pelo desafio, a minha coerência. Achava deliciosamente divertida, e irresistível, a possibilidade de observar, de perto, aquele espetáculo de pompa e protocolo.

E assim, dias depois, de casaco (tenho impressão de que, à época, não usava fatos) e gravata, com o convite na mão, lá me apresentei na porta lateral de S. Bento, num dia de agosto de 1972. Acabei numa galeria alta, sentado ao lado de gente que, de todo, não conhecia. Apenas me recordo de estar bem de frente para a cena.

O espaço, como toda a Assembleia, estava apinhado. Todo o regime, dos próceres aos turiferários (os dicionários alguma utilidade hão-de ter!), estava ali reunido. A certa altura, Tomaz entrou na sala, com Marcelo e alguns maiorais do regime, tudo de labita e condecorações.

As galerias, unânimes, levantaram-se e, por minutos, aplaudiram. Tal como o iriam fazer no termo dos discursos e das cenas formais que se seguiram, até ao final da cerimónia, de que deixo a única imagem que descobri, cheia de brumas (devem ser as tais “brumas da memória”!).

Deixo à imaginação fértil do leitor o que terei eu feito naquela situação, com toda a gente, à minha volta, a bater as mãos! Quem me tinha mandado a mim brincar com coisas sérias! 

Há horas, ao assistir na televisão à cerimónia de posse, na recondução de Marcelo Rebelo de Sousa, lembrei-me - confesso que era uma cena que já quase tinha esquecido, e eu costumo esquecer poucas coisas - esse meu dia de imenso embaraço, há mais de meio século.

Porém, que fique claro: se esta manhã eu tivesse estado em S. Bento, teria aplaudido. Desta vez, convictamente.

Descobri a cerimónia de 1972, há pouco, nos arquivos da RTP. Não sei se alguém ainda “aguenta” vê-la. Eu aguentei, mas só na época. Agora, se quiser, pode ver aqui.

“Chapeau!”

Que texto tão magnificamente escrito este que a casa real britânica emitiu sobre os príncipes tresmalhados:

The whole family is saddened to learn the full extent of how challenging the last few years have been for Harry and Meghan. The issues raised, particularly that of race, are concerning. While some recollections may vary, they are taken very seriously and will be addressed by the family privately. Harry, Meghan and Archie will always be much loved family members.”

Está ali tudo: falsa ingenuidade, hipocrisia, ”understatement” e um jogo tático extraordinário. Gosto, em especial do delicioso “while some recollections may vary”! Ah! E, claro, a leitura literal também é admissível. Mas quanto profissionalismo lá por Buckingham!

segunda-feira, março 08, 2021

Realmente

Quando os membros das famílias reais, em lugar de andarem a partilhar angústias e a expor desventuras, tiverem de arranjar emprego (ou poderem cair no desemprego), como quaisquer outros cidadãos, sem darem ar de estar sempre em férias na neve ou a bronzear-se de glamour ou a vestir-se de “griffes” finas, sem se pendurarem publicamente nos títulos nobiliárquicos e privadamente nas heranças, sabem o que acontecerá? As revistas “do social”, as televisões “voyeuses” e os tablóides entram em crise.

8 de março


Há 10 anos, neste dia, neste blogue, escrevi isto:

Faz hoje precisamente 10 anos. Lembro-me bem que desci a pé a rampa do palácio de Belém, depois do ato de transição, e fui beber uma bica, ali ao lado. Já sem horas, nem audiências. Acabara uma experiência política de mais de cinco anos. Sentia ter cumprido "com lealdade, as funções que me (haviam sido) confiadas", nesses quase 2000 dias! E voltava a poder fazer o que, decididamente, mais gosto e sei fazer.

Nesse dia, acabavam as infernais horas perdidas em aeroportos e aviões ("ao menos, aqui não há telemóveis"), as refeições à pressa, os insípidos quartos de hotel, a leitura ansiosa dos jornais ("olha! Há aqui uma crítica à nossa política europeia"), as maratonas bruxelenses, a análise, pela madrugada dentro, dos diplomas para aprovar "em Conselho", a agenda diária cada vez mais esgotante. Mas, também, as coisas conseguidas, os magníficos e dedicados colaboradores (em especial colaboradoras, já que a esmagadora maioria foram mulheres, e hoje é o dia delas!), os muitos amigos descobertos e conquistados, a certeza de que as posições portuguesas foram sempre defendidas tão bem quanto sabia e me foi possível, o privilégio de poder ter tido um "outro" olhar sobre o país.

Mas não se confunda nada disto com poder. Na maioria dos casos, neste tipo de posições, em termos de exercício efetivo de poder, o que se pode fazer é relativamente pouco: ou não há dinheiro, ou não há gente adequada e disponível, ou o peso do "sistema" nos impede, ou é a lei que não deixa. E, quase sempre, não se pode aplicar a máxima de Correia de Oliveira: "o que é legal faz-se por despacho, o que é ilegal faz-se por decreto". Não é assim, em democracia.

Olhando hoje para trás, sem a mais leve nostalgia, reconheço que foi um período muito interessante, embora, com toda a certeza, bem mais longo do que teria sido desejável. No geral, não me arrependo minimamente do que fiz, mas, em perspetiva, soubesse eu, à partida, o que sabia à saída, faria algumas coisas de uma forma bem diferente. Mas, em política, tal como no futebol, "prognósticos só no fim do jogo".

domingo, março 07, 2021

Chega?

 


Sarkozy ou a culpa


Há dias, como toda a gente, vi na comunicação social o anúncio da condenação de Nicolas Sarkozy. Outros processos correm contra ele, pelo que o antigo presidente francês não vai ter uma vida fácil, nos próximos anos. Lembrei-me então de um episódio ocorrido com ele.

Numa manhã de 2012, o presidente Sarkozy fazia um discurso num determinado local, nos arredores de Paris, para o qual o corpo diplomático (ou só alguns embaixadores, já não recordo) havia sido convocado. Apenas me lembro de que era um evento de natureza económica.

À entrada, estive uns minutos, de pé, à conversa sobre nada, com um membro do governo francês, a encher o tempo que antecedia a intervenção do presidente. A certa altura, Sarkozy entrou na sala e subiu, rapidamente, ao palanque. Toda a gente se sentou. De imediato, vi-me colocado na primeira fila do auditório, quase ao centro da cena.

Fiz um esgar de embaraço para a pessoa do protocolo que, à distância, comandava a coreografia, mas este encolheu, sorridente, os ombros, como que a dizer “deixe-se ficar por aí!”. E por ali fiquei eu, “sem saber ler nem escrever”, como se dizia na minha terra para os apanhados em ocasiões com que tinham pouco a ver. O meu lugar de regra seria bem lá para o meio da sala.

Por uma qualquer razão, tinha dormido muito mal na noite anterior. No carro, da residência da embaixada até ao local, já tinha passado “pelas brasas”, mas estas não se tinham extinguido por completo.

Sarkozy não costuma ser um orador chato. Nervoso, saltitante, enfático, olhá-lo na ação oferece sempre um lado de espetáculo. E eu, que nunca lhe achei a menor graça política, tinha e tenho um fascínio pelas suas “performances”. E já tinha assistido a algumas bem divertidas, até em contexto de reuniões reservadas, que a deontologia me obriga a guardar para sempre.

Nessa manhã, porém, a minha capacidade de atenção não rimava com o discurso do presidente. De quando em quando, dei comigo a cerrar os olhos, com a lenga-lenga da oração política a embalar-me os ouvidos. Estava desfeito de cansaço e, por muito que tentasse, não conseguia disfarçá-lo.

Julgo que terei começado a fazer o que toda a gente faz nessas circunstâncias, para conseguir despertar-me: mudar as pernas de posição, ajustar-me na cadeira e, o que é um clássico, pôr a mão em frente aos olhos, a dar um ar de reflexão.

Mas a pulsão para o sono revelava-se imparável. De quando em quando, lá olhava para o orador. Mas as minhas pálpebras continuavam declinantes, sentia a cabeça a pingar e tinha aquela espécie de sobressaltos nervosos espevitantes, como se tivesse sido atingido por um pequeno choque elétrico. Já não sabia o que havia de fazer! Não conseguia escapar à sonolência.

Foi então que algo me inquietou, ainda mais: pareceu-me que Sarkozy olhava regularmente para mim! Fixava-me, com aquele fácies sério, grave, “excessivement grave”, expressão que o meu colega Steinbroken crismou, para outras situações, nas noites do Ramalhete, ali às Janelas Verdes.

Com o debitar do discurso, e porque eu estava quase em frente a ele, fiquei com a ideia de que o seu olhar se concentrava, com cada vez mais regularidade, exatamente em mim. Pior: sentia que havia já nessa mirada uma censura, uma personalização severa de desagrado. Seria mesmo pela minha sonolência? Estaria ele a dar conta de que eu estava prestes a mergulhar no sono? Eu, sem êxito, tentava disfarçar.

Nos anos anteriores, tinha estado com Sarkozy em várias ocasiões, mas quase não tínhamos trocado palavras. Tinha-lhe apresentado as cartas credenciais, como tinha acontecido com dezenas de embaixadores. Tinha assistido, numa posição secundária, a algumas reuniões com ele, com dois primeiros-ministros portugueses. Ele deve ter-me dito: “Ça va, monsieur l’Ambassadeur? e eu devo ter “respondido”: “Monsieur le Président!”, sem uma palavra mais, porque é assim que as regras obrigam.

Conhecia ele a minha cara? Duvido. Ou melhor, sim e não. Ele sabia, pela certa, que me tinha visto algures. Se me encontrasse ao lado de um primeiro-ministro português, deduziria que eu representava Portugal por ali. Mas, se me encontrasse na porta do Flore ou à entrada da Lipp, não teria a menor ideia quem eu era.

Sarkozy faz parte daquele género de políticos para quem os diplomatas são figuras inexistentes, constituindo apenas parte do cenário das coisas oficiais. Constatei isso em diversas ocasiões. E, lendo-o, mais tarde, confirmei ser essa a sua postura. Nada que seja incomum na vida internacional, diga-se. Nem sequer criticável, convém notar. Como dizia um velho embaixador, os diplomatas são “expendable”.

Perante o que me parecia ser o olhar fixo que Sarkozy mantinha em mim, passei do embaraço ao sentimento de culpa. Ali estava o chefe "do" Estado (nós, por cá, dizemos sempre chefe “de” Estado, mas os franceses não) a perorar coisas definitivas e, à frente dele, alguém caía de sono, se calhar, de tédio.

E era o embaixador português! Nessas ocasiões, passa-nos pela cabeça que as pessoas sabem quem nós somos: logo o embaixador de Portugal! De Portugal, do país que ali tinha uma vasta comunidade, que passava o tempo “a pedir batatinhas” à França para ajudar a convencer a Europa, nas suas trapalhadas financeiras. Ia ser bonito!

Passei ao estado de aflição. Não me conseguia libertar do sono, por muito que espetasse as unhas de uma mão na outra. O olhos fechavam-se, esperava (mas como podia ter a certeza?) não ressonar ou emitir ruídos de dimensão equivalente, nem ousava olhar de viés o ministro que, à minha ilharga, fora responsável por aquele entorse ao protocolo. Que eu, afinal, “agradecia” assim, adormecendo perante a doutrina emitida pelo mais alto responsável da nação francesa.

E lá me ia tentando eu soerguer do adormecimento físico, procurando olhar nos olhos um Sarkozy que, agora sim, parecia fuzilar-me com a vista. E que olhar tem Sarkozy, quando dá mostras de ira!

Comecei a imaginar que as relações luso-francesas poderiam levar um abalo. Não digo sofrer uma quarta “invasão francesa”, mas não excluía uma retaliaçãozeca qualquer, num contrato que necessitasse do aval político do Eliseu.

O que uma noite mal dormida, como o bater de asas da tal borboleta da história climática, poderia desencadear! Por cólera, por raiva e, no fundo, apenas por sono.

Eu já tinha tido, na vida, duas experiências trágicas nessa matéria.

A primeira, em 1969, num dia em que Adriano Moreira convidou Gilberto Freire (esse mesmo, o da “Casa Grande e Senzala”!) para ir falar ao ISCSP, na Junqueira. Por mais esforços que fizesse, mesmo com cotoveladas do meu colega Hermano Carmo, não consegui evitar adormecer, na primeira fila do anfiteatro, durante a palestra de um dos mais eminentes intelectuais brasileiros no século XX. Há meio século que trago esta angústia “atravessada”. Tenho mesmo uma fotografia desse momento. Ainda acordado, porém.

A segunda, confesso, é bastante mais comprometedora. Fazia parte de um painel, com três outros oradores, num local que nem ouso revelar. O tema devia ser a Europa ou qualquer coisa de internacional, porque é sobre isso, para além da gastronomia, que alguém ainda quer ouvir-me. A cena do palco incluía uns sofás, num dos quais me enterrei. E sobreveio-me, logo, um sono de morte. À minha frente, no anfiteatro, mais de uma centena de pessoas. E eu, progressivamente, a esvair-me em sonolência. Os meus colegas de painel a dizerem coisas inteligentes e eu a dormir sobre elas. Até hoje me pergunto o que terei dito. Será que também contribuí para a assistência dormir? Que embaraço!

Voltemos a Sarkozy. Imaginei que, na semana seguinte, em Bruxelas, num Conselho Europeu qualquer, num daqueles momentos televisionados em que os líderes se tocam nos braços, o “petit Nicolas” (como o desenho, “avant la lettre”, o tinha crismado) agarraria o fato de Passos Coelho, dizendo-lhe: “Alors, Pedrô! Ton ambassadeur à Paris, j’ai remarqué qu’il dort quand je parle!”

E já antevia a cara do ocupante de São Bento, a ver a réstia da boa vontade de Paris a esvair-se pela valeta europeia, por culpa de um diplomata a cair de sono, que passara uma noite sabe-se lá onde, logo ele, um tipo que tinha a mania de pôr no currículo um passado fardado de “homem sem sono”.

Não fora a minha reforma aproximar-se inexoravelmente e já me estava a ver a ser chamado ao gabinete azulejado do “terceiro andar” das Necessidades, com Paulo Portas, a dizer-me, entre a audiência a um sheikh árabe e outra a um amigo de Rumsfeld: “Francisco, o governo acha que você tem o perfil certo para ir abrir a nossa embaixada em Ouagadougou. Mas pode escolher Ulan-Bator, se achar melhor”.

Estaria eu a sonhar com esses pesadelos, quando o discurso de Sarkozy acabou. Toda a sala se levantou. Eu acordei ao som das palmas, também das minhas, claro, com que tentei espantar o sono e perdoar-me. O ministro francês, que tinha estado ao meu lado, dando ares de não ter dado pelo meu declinar de atenção, cumprimentou-me, sorridente, e saiu disparado atrás do chefe.

Todos saímos para a rua. O ar fresco fez-me bem. Até à culpa. Sabia lá Sarkozy quem eu era!

O concerto da Júlia

Foi assim, depois do almoço de hoje. A pianista, com menos de 10 anos, chama-se Júlia.