Barack Obama afirmou um dia que a Rússia se tinha transformado numa potência regional. Tecnicamente, a “boutade” provocatória podia ter algum sentido, mas a região a que o antigo presidente americano se referia era então muito mais limitada do que aquela em que poder militar de Moscovo hoje se afirma. Por ironia, iriam ser as inconsequentes opções políticas do próprio Obama que acabariam por oferecer à Rússia um papel central numa área geopolítica onde a sua presença era até então bem menos relevante: o Médio Oriente.
Obama herdou um mundo em que os Estados Unidos vinham a tentar libertar-se do custo político-militar de uma ocupação arbitrária do Iraque, sem mandato internacional, com as desastrosas consequências que isso veio a ter no equilíbrio estratégico da região. As pessoas podem já ter esquecido o Estado Islâmico, mas essa sinistra organização, responsável por inomináveis barbáries e por um proselitismo fanático que a Europa sentiu na pele, foi uma óbvia consequência dos vazios de poder gerados por aquela ação. E o perigoso “tandem” entre os turcos e os curdos mais não é do que uma decorrência disso mesmo.
Em cenários de elevada tensão, a vida internacional há muito que ensinou que há equilíbrios em que é irresponsável tocar, sob pena do resultado de uma rotura poder vir a desencadear efeitos mais gravosos do que a situação precedente. No limite, há mesmo que ter o realismo de admitir que determinados problemas não têm uma visível solução. Nesse caso, a sensatez recomenda que nos habituemos a viver com a existência dos conflitos, apenas garantindo que a sua baixa intensidade é preservada, sem prejuízo de continuar a tentar resolvê-los.
Os Estados Unidos, contudo, parece não terem aprendido a lição do Iraque. Derrubar ditadores e provocar mudanças de regime é sempre uma opção tentadora e, em geral, traz aplausos fáceis. Mas o dia seguinte é imprevisível, como a História o tem demonstrado. George W. Bush colocou a América a cometer esse erro. E Obama repetiu, noutra escala: veio a dar cobertura ao grave erro estratégico de dois impulsivos líderes europeus que embarcaram numa acção na Líbia que, ninguém hoje o duvida, tornou a emenda bem pior que o soneto. O caos no Sahel e o agravamento exponencial do drama das migrações transmediterrânicas resultou diretamente daí.
Convirá recordar que a aventura líbia havia sido abençoada por um mandato do Conselho de Segurança da ONU, aprovado com luz verde da Rússia. Mas o facto dos poderes ocidentais terem ultrapassado tal mandato, que simplesmente previa a defesa da Cirenaica contra a agressão da Tripolitânia, aproveitando para se verem livres de Kadhafi, fez a Rússia aprender a lição. Por isso, quando Assad, na Síria, esmagou violentamente os alvores de uma “primavera” política, a Rússia não permitiu, com o seu veto na ONU, a repetição do cenário. Terá feito isso apenas por “amor” a Assad?
A Rússia não tem menos receio do que os ocidentais no tocante aos riscos do extremismo islâmico. Receia que uma eventual afastamento do poder de Assad possa vir a converter o espaço da Síria num terreno vizinho de instabilidade. Moscovo já percebeu que os EUA – e os seus aliados da NATO – vão deixar um caos no Afeganistão, onde foram à caça legítima dos responsáveis pelo 11 de setembro, e que isso acabará por sobrar para eles. Do Médio Oriente ao Cáucaso, que é a sua fronteira sul, a Rússia sabe que é um passo muito curto – e já viu o que sucedeu na Chechénia, no Daguestão e na Ossétia do Norte. O islamismo radical espreita também a Rússia na fragilidade da Ásia Central.
O poder em Moscovo explora o sentimento de humilhação que os russos sentem pela derrota na Guerra Fria. E usa bem o espetro de cerco que derivou da chegada da NATO e da União Europeia a escassas centenas de quilómetros da sua capital. Depois da descarada tentativa ocidental de instabilizar a Ucrânia em seu favor, a Rússia “empatou” o jogo por ali, criando um “conflito congelado”. Mas percebeu que vale mais ser temida do que respeitada. Já tinha testado os ocidentais na Geórgia, e ganhou. Tomou a Crimeia com um custo razoável – as sanções e o afastamento do G8. A Síria transformou-se agora na sua segunda fronteira.
Não perceber a Rússia é meio caminho andado para não a conseguir enfrentar.