Numa conversa telefónica com um jornalista do "Diário de Notícias", a propósito dos contactos entre diplomatas e espiões, relatei um episódio divertido, de que já quase me havia esquecido, passado em Angola, aí por 1985, quando estava colocado na nossa embaixada em Luanda.
Cuba tinha então uma posição muito importante em Angola, dada a presença de largos milhares de militares que ajudavam o poder em Luanda na guerra civil que o país atravessava. A eles se somavam muitos outros "cooperantes internacionalistas", que prestavam serviço em áreas civis, como a saúde, o ensino e vários outros setores técnicos.
Ao que me recordo, nem o embaixador português nem o seu "número dois" mantinham contactos regulares com a embaixada cubana em Luanda. A esse nível, eventuais encontros teriam um inescapável perfil político, inadequado para as circunstâncias que então se viviam. Assim, essa tarefa estava a cargo de funcionários de nível inferior, como era o caso do meu colega Júlio Vasconcelos e de mim próprio. Cada um de nós tinha um interlocutor cubano, embora não por nossa iniciativa, sempre por aproximações feitas por eles.
O teor das conversas havidas (como em geral acontecia nos contactos com contrapartes estrangeiros, em especial de países fora das nossas alianças tradicionais) era reportado ao embaixador e, como era de regra, se acaso delas viesse a redundar alguma coisa de interessante, seria depois feita uma comunicação para Lisboa. Tratava-se de uma tarefa de rotina, com a acrescida graça, entre mim e o Júlio Vasconcelos, pelo facto de procurarmos cruzar os discursos dos nossos interlocutores, tentando encontrar-lhes dissonâncias.
O "meu" cubano era relativamente jovem. Negro, muito bem preparado, havia estudado na União Soviética e falava um português magnífico. Nesse tempo, Luanda não tinha espaços "neutrais", como um bar, um café ou outro local onde, discretamente, se pudesse ter uma conversa. No meu caso, o diplomata cubano (que me parecia não ser um "espião" profissional, mas um simples funcionário de carreira) vinha ao meu gabinete, na embaixada, sempre que queria conversar. Nunca me passou pela cabeça ir à embaixada de Cuba.
As conversas tinham um "menu" pouco variado. Ele procurava obter a minha leitura sobre a situação político-militar, sobre o estado das nossas relações com Angola, sobre incidentes ou operações militares que houvessem sido divulgados e, aqui ou ali, sobre a evolução da situação política internacional. Naqueles tempos algo pesados de Luanda, aquele era um exercício interessante, em que o cuidado por parte dele era muito maior do que da minha parte, comigo sempre a dar-me ao luxo de uma abordagem mais aberta e mais ousada. Porém, embora a minha memória seja bastante boa, não retenho dessas conversas um único episódio ou revelação que tenha por significativo. Exceto um pequeno incidente.
Um dia, tive uma ideia que não correu muito bem. Recebi-o, comigo sentado à secretária, ele numa cadeira em frente. Como o meu gabinete não tinha sofás, essa era a logística natural. A má ideia foi eu ter decidido colocar sobre a mesa, em frente a nós, uma caixa (ou um envelope, já nem sei) de cartão, dentro do qual estava um pequeno gravador, que acionei uns segundos antes da chegada do diplomata cubano. Era uma maneira, pensava eu, de poder ser depois mais preciso no relato que faria da conversa.
Esta decorreu com toda a normalidade, por largos minutos (talvez demasiados...), até um certo ponto. De repente, de dentro do invólucro, ouviu-se aquilo que soou como um breve apito, seguido de um saltar da patilha de gravação. A situação não oferecia o menor equívoco e o meu interlocutor deve ter logo percebido de que estava a ser gravado.
No que me toca, imagino que devo ter ficado bem aflito! Recordo-me de ter aumentado a voz, na ingénua tentativa de cobrir o ruído. Mas era tarde, nada feito! Nenhum de nós se referiu ao assunto, embora a naturalidade com que a nossa troca de impressões estava a decorrer se tivesse alterado, pela mútua consciência de que algo de estranho se tinha passado. Ele teve a elegância de não abordar o incidente, eu fiquei "encavacado" e devo, por instantes, ter perdido toda a naturalidade.
No que me toca, imagino que devo ter ficado bem aflito! Recordo-me de ter aumentado a voz, na ingénua tentativa de cobrir o ruído. Mas era tarde, nada feito! Nenhum de nós se referiu ao assunto, embora a naturalidade com que a nossa troca de impressões estava a decorrer se tivesse alterado, pela mútua consciência de que algo de estranho se tinha passado. Ele teve a elegância de não abordar o incidente, eu fiquei "encavacado" e devo, por instantes, ter perdido toda a naturalidade.
Minutos depois, o cubano despediu-se, tendo-o eu acompanhado à porta. Devo dizer que eu não estava nada orgulhoso do "espetáculo" que, involuntariamente, a minha falta de cuidado "técnico" havia criado. Nunca mais esse cubano me voltou a contactar e só lamento que ele possa ter ficado com má impressão dos "espiões" portugueses...