Há dias, um amigo chamou a minha atenção para o facto de, nos últimos anos, se ter adensado uma infernal rede de controlo dos dados pessoais dos cidadãos, seja no fisco, na segurança social ou nas múltiplas áreas deste admirável mundo novo informático, onde uma simples busca no Google nos atulha de sugestões publicitárias subsequentes, também por via da geolocalização. Ele concluía que, por ora, como ainda somos servidos por um modelo democrático, permanecem alguns controlos de natureza jurisdicional que permitem atenuar o caráter "kafkiano" do processo, para concluir: "imagine que, de um momento para o outro, se implantava um regime autoritário e com menos garantias. Com o aparato já criado, os cidadãos ficavam totalmente nas mãos de um sistema infernal, como nunca aconteceu no passado".
Há cerca de duas semanas, com mais três convidados, fiz parte da mesa de oradores de uma conferência organizada pela Comissão Nacional de Proteção de Dados sobre esta temática. Devo dizer que foi para mim uma agradabilíssima surpresa verificar que a entidade que nos convidava cultivava uma saudável preocupação quanto à necessidade de uma consciência pública que esteja muito alerta para estes problemas. Foi um debate muito interessante em que um dos oradores, José Pacheco Pereira, deu alguns exemplos chocantes do modo como o controlo se começa a "apertar" em torno dos cidadãos e alertou para diversas dimensões desse novo mundo "orwelliano" que por aí anda, às vezes sem que disso tenhamos uma clara consciência.
Pela minha parte, embora tivesse centrado o que disse em algumas dimensões internacionais do problema, não me coibi de denunciar aquilo que considero um grave erro do "centrão" político (PS e PSD), ao dar sinais de partilhar a ideia da fusão dos dois serviços de informação existentes e, muito especialmente, ao ter permitido um aligeiramento da proteção do tratamento dos dados pessoais acessíveis aos serviços de informações, embora num modelo embrulhado em supostas garantias dadas por um punhado de magistrados. Lamento, em particular, que os socialistas, que entre nós deveriam estar na primeira linha de uma cultura estrita de liberdades, tenham sistematicamente nestes domínios uma tentação de se mostrarem "responsáveis", a armar ao "sentido de Estado", não percebendo que são utilizados como inocentes úteis para dar uma caução de esquerda a medidas fragilizantes dessas mesmas liberdades públicas. Não deixa de ser irónico que os cidadãos que se preocupam com estas questões se vejam obrigados a dar razão às objeções colocadas pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, que a mim me parecem totalmente pertinentes.
Na minha intervenção, também não deixei de destacar a incoerência em que incorremos ao darmos aval, sob pressão de uma agenda securitária movida pelo primado absoluto da luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada internacional, à partilha de dados com Estados e sistemas que, não só não têm "standards" mínimos em matéria de garantias, no que respeita ao grau de "intrusão" na vida privada dos cidadãos, como levam mesmo a cabo - como agora se viu pelas escutas telefónicas americanas denunciadas pelo Wikileaks - ações de espionagem dos próprio parceiros internacionais que com eles colaboram. Se isto não é masoquismo político, não sei bem o que será.
Quem aceitar que, no binómio segurança-liberdade, "vale tudo" sempre em favor do primeiro elemento, acabará por dar razão aos métodos de Guantanamo ou, no caso da paróquia, às torturas preventivas a que Salazar chamava "abanões a tempo".
Volto ao que disse o amigo que referi no início deste texto. Se, sob a pressão dos atos terroristas, que devemos combater com firmeza, nos deixarmos colonizar por uma onda securitária obsessiva, onde as liberdades passem a ser uma espécie de luxo instrumental para os dias menos preocupados, acabaremos por criar sociedades "impossíveis", talvez mais seguras, mas onde viver passará apenas a ser sinónimo de sobreviver.