segunda-feira, junho 29, 2015

Sobreviver no terror

 
Há dias, um amigo chamou a minha atenção para o facto de, nos últimos anos, se ter adensado uma infernal rede de controlo dos dados pessoais dos cidadãos, seja no fisco, na segurança social ou nas múltiplas áreas deste admirável mundo novo informático, onde uma simples busca no Google nos atulha de sugestões publicitárias subsequentes, também por via da geolocalização. Ele concluía que, por ora, como ainda somos servidos por um modelo democrático, permanecem alguns controlos de natureza jurisdicional que permitem atenuar o caráter "kafkiano" do processo, para concluir: "imagine que, de um momento para o outro, se implantava um regime autoritário e com menos garantias. Com o aparato já criado, os cidadãos ficavam totalmente nas mãos de um sistema infernal, como nunca aconteceu no passado".

Há cerca de duas semanas, com mais três convidados, fiz parte da mesa de oradores de uma conferência organizada pela Comissão Nacional de Proteção de Dados sobre esta temática. Devo dizer que foi para mim uma agradabilíssima surpresa verificar que a entidade que nos convidava cultivava uma saudável preocupação quanto à necessidade de uma consciência pública que esteja muito alerta para estes problemas. Foi um debate muito interessante em que um dos oradores, José Pacheco Pereira, deu alguns exemplos chocantes do modo como o controlo se começa a "apertar" em torno dos cidadãos e alertou para diversas dimensões desse novo mundo "orwelliano" que por aí anda, às vezes sem que disso tenhamos uma clara consciência.

Pela minha parte, embora tivesse centrado o que disse em algumas dimensões internacionais do problema, não me coibi de denunciar aquilo que considero um grave erro do "centrão" político (PS e PSD), ao dar sinais de partilhar a ideia da fusão dos dois serviços de informação existentes e, muito especialmente, ao ter permitido um aligeiramento da proteção do tratamento dos dados pessoais acessíveis aos serviços de informações, embora num modelo embrulhado em supostas garantias dadas por um punhado de magistrados. Lamento, em particular, que os socialistas, que entre nós deveriam estar na primeira linha de uma cultura estrita de liberdades, tenham sistematicamente nestes domínios uma tentação de se mostrarem "responsáveis", a armar ao "sentido de Estado", não percebendo que são utilizados como inocentes úteis para dar uma caução de esquerda a medidas fragilizantes dessas mesmas liberdades públicas. Não deixa de ser irónico que os cidadãos que se preocupam com estas questões se vejam obrigados a dar razão às objeções colocadas pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, que a mim me parecem totalmente pertinentes.

Na minha intervenção, também não deixei de destacar a incoerência em que incorremos ao darmos aval, sob pressão de uma agenda securitária movida pelo primado absoluto da luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada internacional, à partilha de dados com Estados e sistemas que, não só não têm "standards" mínimos em matéria de garantias, no que respeita ao grau de "intrusão" na vida privada dos cidadãos, como levam mesmo a cabo - como agora se viu pelas escutas telefónicas americanas denunciadas pelo Wikileaks - ações de espionagem dos próprio parceiros internacionais que com eles colaboram. Se isto não é masoquismo político, não sei bem o que será.

Quem aceitar que, no binómio segurança-liberdade, "vale tudo" sempre em favor do primeiro elemento, acabará por dar razão aos métodos de Guantanamo ou, no caso da paróquia, às torturas preventivas a que Salazar chamava "abanões a tempo".

Volto ao que disse o amigo que referi no início deste texto. Se, sob a pressão dos atos terroristas, que devemos combater com firmeza, nos deixarmos colonizar por uma onda securitária obsessiva, onde as liberdades passem a ser uma espécie de luxo instrumental para os dias menos preocupados, acabaremos por criar sociedades "impossíveis", talvez mais seguras, mas onde viver passará apenas a ser sinónimo de sobreviver.

10 comentários:

CORREIA DA SILVA disse...

Quem não deve, não teme.

Anónimo disse...

Sr. Embaixador,

Em primeiro lugar, creio que sabe que existe software aberto e que pode ser instalado em qualquer máquina que lhe permite "fintar" em parte esse tipo de controlo.

Posto isto. Muito me surpreende que não defenda a fusão dos serviços.

Como sabe, as relações internacionais mudaram muito nas últimas décadas. Hoje, já não existem dois lados. Existe uma teia de relações com o surgimento de novos actores (ong´s; grandes empresas transnacionais, etc.) que faz com que não se possa falar em segurança interna ou externa. Hoje, a segurança nacional é um todo. Um evento externo pode ter muita relevância internamente. O caso da Grécia é um exemplo.

Os serviços ao serem unificados agilizam a troca de informação e o seu serviço pode melhorar consideravelmente.

Não se pode ver a fusão dos serviços como um maior controlo sobre os cidadãos, mas como uma forma de melhorar o serviço prestado ao País.

Defreitas disse...

O comentário do Senhor Correia da Silva demonstra bem como os homens não têm memória. Quem não deve......Não leu se calhar a história daquele democrata alemão que nos primeiros meses do nazismo pensava como ele! Não era judeu, não era comunista nem socialista, não fazia política, mas um dia vieram busca-lo também. Mas era tarde demais para protestar e já não havia mais ninguém para o ouvir...

Anónimo disse...

Quem é mãe ou avó, quem tem filhos ou netos, pequenos ou adultos, naturais ou adotados, está disposta a pagar um preço elevado pela sua segurança e terá, só por isso, uma opinião diferente da de quem sabe que é o fim da linha e nada mais o preocupa.
Lamento este comentário da forma como lamento o egoismo do seu texto, Sr Embaixador. Concordo muitas vezes consigo, mas hoje não.
Maria J.R.

Anónimo disse...

Os dois comentários anteriores são deveras interessantes por razões diferentes.

O primeiro pq revela a ingenuidade delirante de quem lhe basta não se considerar uma criminoso para se sujeitar a ser tratado como tal ( como sucede qd faz o chek-in em qq avião ) . A quem o escreve apenas desejo sinceramente que nunca se veja na situação de estar no sitio errado à hora errada e obrigado a demonstrar que aquilo que parece afinal não é.

O segundo comentário é um excelente exemplo do dogmatismo prático que constitui o caldo de cultura dos bons burocratas. Eles esquecem-se com imensa facilidade que entre a eventual bondade do "espirito" que posssa presidir à tomada de certas medidas e os critérios concretos da sua aplicação prática, existe sempre a mediação de seres imperfeitos.

MRocha

Anónimo disse...

Os burocratas sempre egoístas, do passado continuam no presentes com as "suas" boas "vontades".....

Actualmente o que se passa é pior que o nazismo/fascismo/comunismo, é uma guerra contra o Ocidente judaico /cristão.



CORREIA DA SILVA disse...

Olhe que não, doutor Joaquim de Freitas...
Olhe que não !!!


Anónimo disse...

O racicocínio que se apresenta no comentário das 8:56 é de uma atualidade relevante e baseia-se em alguns princípios provenientes dos EUA, mas esquecendo que não temos a mesma dimensão nem o mesmo quadro jurídico. De entre eles, destaco: os fins justificam os meios; o quadro constitucional deve adaptar-se às necessidades operacionais; o combate ao terrorismo e à criminalidade organizada transnacional deve ser eficaz e não tem que ser feito através dos Tribunais.

Desenvolvendo aquele raciocínio poderemos também juntar Forças Armadas e Polícias, todos a tratar da segurança global.

Não somos "polícias do mundo"!

Que os partidos políticos raciocinem em termos de obterem o poder, diz o Prof. Freitas do Amaral que se justifica porque consideram que os seus programas são os que melhor se aplicam ao País.

Triste é que os Serviços Públicos façam o mesmo racicocínio de poder em lugar de se preocuparem com o que melhor serve os interesses do Estado e dos cidadãos.

Mas a verdade é que o Sr. Embaixador também tem contribuído para este raciocínio, em grupos de trabalho em que tem participado. Daí a surpresa.

Melhores cumprimentos.

carlos cardoso disse...

Como parece que disse Benjamin Franklin: "People willing to trade their freedom for temporary security deserve neither and will lose both".

Anónimo disse...

E curioso que em frança nunca é utilizado o argumento de uma eventual vitoria de marine le pen nas eleicoes quando se fala sobre a nova lei sobre a informacao.

o patriot act a francesa como dizem por ca permite que os dados de qualquer cidadao possam ser coligidos aleatoriamente sem autorizacao de um juiz ou de quem seja e o mesmo pode ser estimado como perigoso atraves de um algoritmo (um tipo algo ritmicamente perigoso...)

houve uma amenda, entretanto desaparecida, que ao parece afirmava que todo o estrangeiro em territorio frances deveria ser espiado..

imagine-se isto como uma vitoria da marine... bom mas entre a marine e os barbudos...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...