Ontem fiz uma viagem aérea ao lado de uma
jovem intérprete de conferências. Falámos da sua profissão e explicou-me que
viaja por todo o mundo para colaborar em vários eventos, sendo que um dos seus
grandes clientes é, imagine-se, a Fifa!
O meu respeito pela profissão de intérprete é
imenso. Trata-se de uma atividade de grande responsabilidade, que exige uma
elevada qualificação técnica e que é extremamente exigente em termos físicos e
mentais. Fazer interpretação simultânea (o que é uma coisa totalmente diferente
de fazer tradução escrita de textos) é uma tarefa muito cansativa, razão por
que muitas vezes vemos reuniões terem de terminar mais cedo por exaustão dos
intérpretes.
A meu primeiro contacto com esta realidade foi
na Noruega, em 1980, durante uma visita de Estado do presidente Ramalho Eanes.
No termo da visita, estava prevista uma conferência de imprensa do presidente,
no hotel SAS, em Oslo. Embora me recorde que outros temas conjunturais acabaram
por se sobrepor, a ideia original era dar conta à comunicação social norueguesa
da avaliação do chefe de Estado português sobre os importantes programas de
cooperação que a Noruega desenvolvia, à época, em Portugal.
(Depois da Revolução de 1974, os governos
trabalhistas noruegueses levaram a cabo um vasto conjunto de programas de
solidariedade para com a nova democracia portuguesa, desde o apoio aos
"retornados" das antigas colónias a diversas contribuições em setores
técnicos, de que foram exemplos os setores da saúde, da investigação marítima, etc.
Fico com a sensação de que o nosso país nunca prestou um suficiente testemunho
da gratidão devida à Noruega por estes gestos materiais de grande
solidariedade, num tempo difícil para nós.)
Porque a conferência de imprensa do presidente
Eanes se situava fora do programa oficial da visita, coube à nossa embaixada
organizar a logística do encontro com os jornalistas. Havia assim que prever um
intérprete para fazer "chuchotage" (interpretação em voz baixa, ao
ouvido) do presidente, fazendo-o entender as perguntas da imprensa, e outro
para, numa cabine, traduzir para os jornalistas, em norueguês, as respostas de
Ramalho Eanes. Para a primeira função escolheu-se Joelle Bastviken, uma
luso-norueguesa que já acompanhava em permanência o casal presidencial,
infelizmente já desaparecida. Para a segunda, e no "deserto" que
então era o mundo dos noruegueses com conhecimentos de português, decidimos
encarregar da tarefa o tradutor da embaixada, Johan Jarnaes.
Jarnaes era professor de português na
universidade de Oslo e pensámos que, se o seu conhecimento da nossa língua era
suficiente para nos fazer pequenos resumos da imprensa local ou traduzir
cartas, talvez fosse capaz de passar para norurguês as respostas do presidente.
Com grande boa vontade, Jarnaes voluntariou-se para a tarefa, não sem que
antes, com toda a honestidade, me tivesse avisado das dúvidas que tinha sobre
se estaria à altura da função. Animei-o, com a inconsciência de quem não tinha
outra solução.
Fui com ele para a cabine de interpretação,
para atenuar o nervosismo de que dava mostras e, talvez, também por um
pressentimento de que as coisas poderiam não correr bem. Como não iriam correr,
de facto.
Logo às primeiras respostas de Eanes, cujo
discurso, como é sabido, tende a ser rebuscado e pouco direto, para além de
assente numa verbalização alcainense menos fácil para um ouvido estrangeiro, o
nosso Jarnaes começou a gaguejar, a suar em bica e, num certo momento, bloqueou
por completo. O facto de Eanes debitar longas frases e encadear o discurso, sem
pausas, justificava o "pânico" em que Jarnaes entrara que me fazia
sinais desesperados de que não conseguia prosseguir. Do alto da cabine, eu
olhava para a sala e constatava a perplexidade na cara dos jornalistas
noruegueses, que olhavam uns para os outros, dando voltas ao aparelho da
interpretação, acreditando que o silêncio que lhes passara a ser oferecido se
devia a alguma avaria técnica.
Foi então que decidi correr um imenso risco,
com vista a ultrapassar o embaraço em que estávamos. Arranquei o microfone a
Jarnaes e passei a fazer eu a "interpretação" , mas, desta vez, para
inglês, língua que todos os jornalistas noruegueses compreendiam. Aqui para
nós, tenho hoje a sensação que improvisei imenso, que coloquei na boca do
presidente muitas coisas que ele, na realidade, não disse (como, no dia
seguinte, vi nas citações de imprensa que lhe foram atribuídas). A verdade é
que também eu era incapaz de seguir o ritmo das palavra de Eanes, pelo que fui
avançando com frases que pressenti se colavam, mais ou menos, àquilo que eu
sabia ser o pensamento do presidente, pelo que dele conhecia através da
imprensa. Foi uma grande irresponsabilidade? Talvez, mas era necessário salvar,
ainda que modestamente, a situação criada. Até porque dela eu era o principal
responsável...
No fim daquele esforçado e penoso exercício,
recebi um abraço de agradecimento do assessor diplomático do presidente, embaixador Luis
Martins, que se apercebera da súbita complicação surgida e do meu ato de
"desenrascanso". Mas, devo confessar, aqueles quinze minutos foram dos
mais longos da minha vida e, para sempre, fiquei a ter um imenso respeito pela
dificílima tarefa dos intérpretes profissionais.